27.9.09

Carta a J.

Chérie,
Não consegui responder de imediato, sua carta ficou me incomodando. Na verdade eu nem precisaria responder porque não foi endereçada a mim, mas você deixou espalhada então li, foi irresistível.
Nem sei direito se me lembro bem das palavras porque tem sido tantas coisas que... tão inúteis. Eu deveria me lembrar de cor e repetir até esclarecer aqui dentro, mas... tanta perda de tempo. E enquanto isso meu caderno está ali, em branco, dizendo que não sou obrigada a dizer nada: se não sei, posso calar-me. Já há besteiras demais no mundo, agora ainda incessantemente propagandeadas pela internet. As coisas têm feito barulho demais? Isso deve ser o segundo sinal da velhice, precisa ver como minhas pernas doem.
Não tenho entendido as aulas, sei que são discutidos assuntos fabulosos, prendo os olhos no professor a cada vez que pronuncia Matisse, é em vão. Desconfio que falavam na língua do pê ontem só para me provocar, tudo o que consegui fazer foi retirar-me e usar dos limpadores de para-brisas e lenços do porta-luvas para chegar até em casa consciente de que minha presença física ali não evitava minha ausência. Estou completamente exausta, não sei se mais cansada por ser quarta-feira ou por tanta precaução. Arrisco o segundo, sinto-me existencialistamente esgotada e isso é o máximo de beleza que eu enxergaria em algum lugar. O meu caso requer um reprocessamento cerebral.
Já o seu caso, minha querida, ah... As coisas são repetitivas sim, você é que não é. É tão bom deixar pra trás o que já não é mais, recomendo veementemente. Meu único medo em relação a isso é não ter fôlego para convencer os outros, eles lhe parecem muito acomodados onde estão? Vontade que tenho de sacudir pessoas, mas por que desejar a elas o incômodo que me assombra? Felizes os outros, na sala de jantar. Os outros não se tornam, eles sempre foram. O que acontece quando nos tornamos o que queríamos ser? Adoraria culpá-los, gritar com eles, expulsá-los daqui! Seguiria com tudo que joguei em cima deles berrando para o espelho. Se eu fosse burra nem perceberia, droga.
Vi que ele respondeu a sua carta e meu conselho de leitora intrusa é que você dê atenção às palavras dele – poder constatar que não mais ou não agora é um crescimento, não tivesse você vivido até aqui não teria discernimento para apreciar ou rejeitar o que lhe é oferecido, mesmo que tenha sangrentamente lutado por aquilo. Só alcançando somos capazes de não querer mais, sem birra ou ansiedade juvenil.
Calma, em breve voltaremos à mesa lotada. Nos juntaremos ao resto na pista de dança e de longe nem dará pra perceber que não estivemos ali o tempo todo. Por ora ficarei por aqui, estas poucas linhas já me causam dúvidas e só não as amasso porque me ajudaram a localizar o norte de novo. Nós estamos mesmo sozinhos. Eu só queria alguém que dissesse “estou aqui”. E sorrisse.

A tout a l'heure.

20.9.09

Keep Walking

É quase sempre assim: ali no cantinho direito o relógio avisa que se eu não for dormir agora amanhã vou me arrepender, e o silêncio da madrugada coloca as roldanas das minhocas para funcionar. O registro escrito é pura conseqüência. O amanhã chega sonado, mas a cada par de olhos que sorri ou se inunda ao compartilhar as palavras o arrependimento tem menos chance de existir. Ele nunca existiu.

Ouvi dizer que as comemorações são importantes para marcarmos nossos passos e interiorizarmos os feitos. São 4 anos hoje, e por mais bobo que às vezes meu cinismo faça parecer seria um desperdício não aproveitar a data para celebrar por termos vindo até aqui.

É mesmo uma exposição, as pessoas acham que tudo aconteceu. Não sei bem o que realmente aconteceu e o que invento, mas isso já é assim há mais anos do que completa agora essa idéia engraçada de publicar, então tudo bem. Minha cabeça insiste em criar histórias, é a realidade quem falha ao ser incapaz de acompanhá-las.

Estamos comemorando também o Ano Novo, e qualquer idéia de renovação ou pretexto para ajeitar o que está ruim me parece bem-vinda independente do mês e dos fogos. Com seu quipá na cabeça, da cabeceira da mesa, ele ensinou que parássemos para pensar no que temos feito, e brindou. Shaná Tová, que você seja inscrito no livro da vida.

Na minha história continuo achando que a felicidade é mais completa com um bode tocando violino, volta e meia há pausas para conversas de Brunas ao som de Strokes porque são muitos hard and twisted thoughts that spin round my head. Saio provocando quem estiver por perto para sermos todos loucos nesse hospício de portas abertas, assumo verdades que não são fraquezas e quando são tento me lembrar de pedir socorro. Cantando em verso e prosa amores e desamores e pulando tantos carnavais ficam mais leves e ricas as centenas de dúvidas e questões que mostram que a vida é para ser vivida com paixão para que até a saudade valha a pena.

Continuo andando, mesmo tendo percebido que o titulo original sumiu do blog. Foi uma evolução natural, quando reparei já tinha acontecido, vai ver a mensagem está tão presente em cada linha que seria redundante colocar uma faixa lá em cima. Mas não se preocupe, as pessoas comuns aqui retratadas continuam determinadas a terem vidas extraordinárias e fazerem seus próprios caminhos. Sabem que acontecimentos não fazem escolhas como se fossem extrínsecos a nós, como se a vida fosse indo tal qual um barco levado pela maré sem que tomássemos o leme. Somos a soma das nossas escolhas – não as grandes, enormes, que parecem definitivas, mas as pequenas e diárias, aqueles percursos que traçamos todos os dias e que só passam a existir no momento em que os criamos. Somos protagonistas, roteiristas e diretores desse filme (preciso, inclusive, renegociar o orçamento).

É dessa mesa, desse lado da tela, às vezes mera espectadora desse mundo, que vasculho um jeito de tornar tudo mais fácil. A solidão não é uma ameaça, é condição e até opção, mesmo que não pareça. A minha história não é um monólogo.

Puxa essa cadeira. Você mesmo! Como no jogo de buraco que a vez é sempre de quem pergunta “quem é agora?”, é exatamente você. Pede um Johnnie Walker para brindar.
Feliz ano novo!

5.9.09

Programa de aceleração do crescimento pessoal

A Light acha que eu sou pobre. Educadamente falando, que pertenço à classe de baixa renda. Sábado à noite, planilha de orçamento nas mãos e ouço da atendente da empresa a sugestão de me cadastrar no Bolsa Família para conseguir novamente pagar quinze reais por mês de luz, e não mais trinta como vem acontecendo. Gisele, muito simpática, recomendou fortemente os benefícios do projeto do governo que visa ajudar meus semelhantes pobrinhos e explicou que a Light poderia me dar uma mãozinha se eu conseguisse me manter dentro da faixa de consumo que eles entendem como boa para mim, mas não o fazem para me punir pela oscilação no meu comportamento. Eles analisaram meu histórico, me incluíram nessa classificação econômico-social e me consideram muito instável. Às vezes enlouqueço e extrapolo, mas conta de luz não é crediário da Marisa. Achei que Gisele fosse recomendar outras ações que reforçassem meu voto de pobreza, mas ela se ateve ao quesito energia. Pelo menos, na hora, pareceu fazer isso.

A Light não desaprovou o fato de uma moça bem apessoada de 30 anos, de posse de suas faculdades mentais e possuidora de um circulo razoável de amigos passar a noite de sábado questionando os reajustes de preço aprovados pela Aneel, mas eu sei que acrescentou à minha ficha o dado de que preferi conversar com a Gisele a ver a Yvone levar mais uns tapas da Silvia na reta final de Caminho das Índias. Talvez isso represente um ponto a meu favor, afinal, TV consome muito. Talvez a moça tenha ficado com pena de mim por não ter dinheiro nem pra ir a um pagode tipo damas grátis até a meia noite e só me restado a companhia de um atendimento 24 horas. Gisele me deu o nome do Valdecir, um colega dela que trabalha no call center da CEG, e na hora não entendi, mas pensando agora vejo que foi bonito de sua parte essa outra dica. Ela poderia ter sugerido que eu passasse meus sábados na Bola de Neve Church ou recomendado livros de auto-ajuda. Se bem que ler gasta luz, reprovável.

Quando desliguei o telefone levei horas pensando sobre o parâmetro usado para consumo de luz pela baixa renda. Se uma pessoa solteira que basicamente só vai em casa para dormir gasta muita energia, como se economiza nos lares onde a renda per capita não supera um quarto de salário mínimo e há em média cinco filhos? Eles têm Net gato e painéis solares no teto? Fazem aproveitamento de energia eólica?

Que mau uso de massa cinzenta, Bruna! O importante é estarmos sempre atentos às coisas boas que nos aparecem e às mãos estendidas quando menos esperamos, identificar as oportunidades de melhoria e crescimento. A Light está me doutrinando, o desperdício é uma atitude incorreta em qualquer área. Sobre a minha incapacidade de permanecer estável até na conta de luz, prefiro não comentar aqui. Isso é entre mim e, quem sabe, o Valdecir – não posso desperdiçar um amigo da amiga assim, certo? Se casarmos a conta sobe, mas ganho alguém para pagar a metade dela.