25.11.09

Capítulo 3

“Não quero torturá-lo e menos ainda aborrecê-lo, mas se acaso em um dia desses você descobrir que me quer mais perto do que tem hoje, por favor não deixe de me procurar. Caso isso aconteça daqui a cinqüenta anos não se preocupe com a minha beleza, a vida terá trocado, com nós dois, ela por serenidade.”

Vista de longe a carta parecia... bem, a carta parecia um telegrama, e quase o era. Telegramas remetem a urgências e aquela definitivamente era uma. Ações impetuosas são de extrema urgência no coração escalpelado do ator e aquilo deveria ficar claro. Debatia-se dentro de si um terror de desperdiçar qualquer chance do amor acontecer, mesmo quando ela desconfiava que o sentimento não passaria num desses testes de ourives para confirmar a pureza. Costumava colocar em um gráfico amor e carência para avaliar o desenho, como se preciso fosse.
Também estava consciente de que o tempo, sempre ele, poderia interferir no desfecho. Ela não tinha como garantir ao rapaz daqui a cinquenta anos resposta diferente da que vinha recebendo nos últimos porque todas as promessas de amor tem prazo de validade, mas ainda assim não gostaria de deixar escapar nenhuma possibilidade de ser feliz por falta de comunicação.

19.11.09

Primavera

“A maioria dos dias do ano são indiferentes. Eles começam e eles terminam, sem nenhuma grande lembrança para marcar. A maioria dos dias não tem nenhum impacto sobre o curso de uma vida. 23 de maio foi uma quarta-feira."




Anos depois ela estava novamente escrevendo sobre filmes. Não porque aquele fosse sensacional, era uma bobagem - como todos os nossos tropeços. Mas ele disse que a história era triste.

(arte de relógio digital volta 4710 dias)
O Uno Mille não subia a ladeira do Fashion Mall. Subiria, se ela soubesse soltar com o pé esquerdo a embreagem à medida em que pressionasse com o direito o acelerador e no meio dessa manobra minimamente calculada o infeliz da frente não parasse o carro, pondo tudo a perder. “Eu nunca vou conseguir fazer isso”. E outros motoristas até cantavam enquanto passavam a primeira, segunda, terceira, reduziam da quinta para a quarta, “é automático!”. “Eu nunca vou conseguir fazer isso”. Esgotada na poltrona, vivia a retomada do cinema nacional em épocas pré-lei seca e arrastão no túnel assistindo à Andrea Beltrão e Daniel Dantas desfilarem o alfabeto em uma tórrida paixão. Não bastasse o desgaste no estacionamento, tudo flutuava na tela até que o casal termina. E não volta no final! Se cruzaram na praia como dois conhecidos, mãos dadas com novas pessoas que – quem são aqueles? Você amava aquela mulher! De quem é esse filho? Filme brasileiro é uma droga.

(arte de relógio digital anda 4710 dias para frente)
Se ela concordasse que o filme é triste atestaria não ter aprendido nada com os tantos perturbados e descrentes que a deixaram por incapacidade de se comprometer, os tais que sempre voltam ao parque para lhe dizer o quanto ela é especial. Os tais de aliança no dedo e medo nenhum, dúvida nenhuma, questão resolvida, pós-ela. Os que gostavam, mas faltava alguma coisa, que na melhor das hipóteses buscam justificativa para remover a ponta de culpa que nem existe, ou desejam tudo de bom ainda estupefatos com a nova rotação da Terra depois do encontro certo, o que pôs tudo nos eixos. Ou o que tirou todas as certezas e preconceitos do lugar como que por mágica. Os que passam de mãos dadas na praia.

Se a mocinha não estivesse lendo Dorian Grey na deli, se tivesse ido ao cinema, se estivesse de mau humor na hora em que o outro entrou, continuaria acreditando mais em Papai Noel do que no amor. E ele... Se Summer não tivesse gostado tanto, mas achado que faltava alguma coisa, estaria de mau humor em outra hora em qualquer deli lendo Dorian Grey. Se ela realmente acreditasse menos no "algo a mais" do que em Papai Noel nem teria visto outras pessoas na deli. E ele...

Salvo masoquistas, adeptos do auto-flagelo, quem, ó céus, escolheria passar por tudo de novo, permitiria que tamanho mal o acometesse? Ele. É uma opção? Pode ser esse o grande castigo por Eva ter mordido a bendita maçã: padecereis de taquicardia por toda a eternidade ainda que pregue pelos quatro cantos a debilidade da paixão. Ou o mal foi a causa – o que essa moça tinha na cabeça? Adão. E um creme da Lanza que prometia deixar os cabelos mais sedosos e sedutores, logo ela que achava isso submissão. E ele vai passar por tudo de novo, e o pior: não há garantia alguma de que um dia vá achar que é isso e ser isso.

Vai ver ele acha que 500 dias são melhor que nada. Senão são só dias. Senão não tem filme, e é um depois do outro que faz com que ela aprenda a subir ladeira. Uns quatro mil depois, até cantando.

15.11.09

Capítulo 2

Tinha vontades – uma caixa de Caran d’Ache, relógio Cuco, sanduíche de carne assada no pão de forma, sino. Vestia uma calça de moletom, considerava calças de moletom sinônimo de conforto como pantufas (ninguém tem pressa de pantufas) e tinha acima de tudo vontade de não ter pressa. Para não ter pressa tinha vontade de ter tempo, e desde que começou a prestar atenção nos que exclamavam como era possível já ser novembro considerou ser tempo substantivo masculino subjetivo. Era novembro porque acontecera outubro, e antes setembro e agosto e assim o contrário de sucessivamente e só causa desconfiança essa contagem em quem não esteve ali, o que acontece com bem mais freqüência do que dizem os cartões de ponto das indústrias fedorentas. Antes ela própria não estava, e quando esteve estava tudo tão estranho que escolheu se sentar na nuvem.
De lá viu o cantor cantando na beira do palco. Ele também estava sentado quando engasgou com as palavras e num soluço a lembrou do tanto de amor que há. Alguém no palco tem uma platéia e um disco e curumins e um amor e canta, e ela sentiu vontade de cantar. Juntou à caixa de Caran d’Ache, ao relógio Cuco, sanduíche de carne assada no pão de forma e ao sino mais essa, sem saber se era também lembrança boa ou promessa de felicidade possível. Pensou se essa seria uma vontade-chave, e deu-se conta de que chaves na língua portuguesa abrem portas.

13.11.09

Agora eu já sei

"Restaram pela casa três corpos a serem recolhidos em cena que lembrava o dia seguinte de uma chacina. Estavam ali, jogados no chão faltando só aquela marca em volta do defunto, duas baratas e um besouro. Ela, de galochas, com as mãos em luvas, armada de pá de lixo e vassoura, rezava para nenhum morto ressuscitar. Besouros são legais se comparados a baratas, as cascudas cheias de patas não são tão terríveis quanto lagartixas, catar aquilo seria melhor do que desentupir ralos e um parágrafo desses só poderia descrever punições."

E só poderá ser lido no Tribuneiros.com

6.11.09

Capítulo 1

Depois de selar a carta à moda antiga, não usando a língua e sim aquela cola de pincel que ainda existe nos Correios, entregou ao atendente e pediu licença. Não licença ao atendente, que para sair dos Correios basta atravessar a porta, mas à vida mesmo. Ficaria ali no alto por um tempo. É um lugar entre a terra e o céu, como se estivesse sentada em uma nuvem, sabe? Uma pausa. Você pode pensar que ficar sentada por muito tempo dói a coluna como nos vôos muito longos onde não se dorme, mas nesse caso isso não acontece, e não sei por quê. Precisava de tempo, e não esse dos casais sem coragem ou com muita dor no coração, mas o dos cansados, daqueles que não sabem em que direção seguir. Já tinha passado por maus bocados antes, e bota maus nisso! Os atuais nem eram assim tão ruins, havia solução, qualquer um apontaria uma dezena delas, mas as instruções não funcionavam, inicializar não lhe parecia palavra em português, faltava até metáfora para ilustrar, e a pausa prescindia de razões, explicações, desculpas, respostas confortáveis para os ouvidos dos que perguntavam. Foi por isso que puxou-se pela gola e lá em cima se sentou.