24.3.10

Caio

"Porto, 22 de dezembro de 1979

Zézim,
cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tUa carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quietO e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portantO, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudo-inteligente.

Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace al andar”.

Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz ”Deus é minha última esperança". Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.

Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentem ente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.

Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tUdo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

(...)

Ler é alimento de quem escreve.
Caio Fernando Abreu

16.3.10

She and him

Distribuição de Serenata do Amor aqui no Tribuneiros pra acabar com o estoque.
E uma música.


7.3.10

Os poderes de Greyskull

Você pode acordar para ir trabalhar ou faltar e ver todas as estréias da semana. Pode vestir um terno ou decidir que hoje vai casual, mesmo que não seja friday. Pode almoçar no restaurante ali da esquina ou andar mais um pouco e arriscar um novo, ir regularmente à academia ou caminhar no parque ouvindo música. Pode dormir com a TV ligada ou ligar para alguém com quem não fala há tempos, arriscar outro caminho ou seguir naquele já conhecido, pode fazer Administração, Direito, Economia ou passar um ano a quilômetros da faculdade só para estudar línguas, arte e viajar por aí.
Você pode se formar e imediatamente começar uma pós-graduação ou confessar abertamente que não tem a mínima idéia do que quer ser quando crescer. Pode nunca sair de casa sem camadas e camadas de protetor solar ou torrar no sol e usar biquíni branco no inverno, pode ficar com todos os caras que te olham ou não estar nunca satisfeita com ninguém. Pode reclamar do que te incomoda ou esperar para ver se passa, guardar dinheiro para ter um carro zero ou andar de ônibus e ter mais sapatos que Imelda Marcos. Pode tocar vários instrumentos ou entender sobre musica tanto quanto o I-Tunes permite, insistir para ver se volta ou acreditar que acabou.
Pode saber de cor quantas calorias tem em cada alimento ou fechar a boca sempre que a calca jeans apertar, ler todos os clássicos ou os quadrinhos do jornal, sair todas as noites ou dormir oito horas por dia. Pode falar com seus amigos toda hora ou curtir os status nas redes sociais, viver num apartamento onde, se entrar correndo, cai pela janela ou se lembrar de avisar aos pais quando não dormir em casa. Pode anular seu voto ou se esforçar para entender os projetos de cada candidato, conversar para chegar a um acordo ou desistir porque não vale a pena.

Você não pode não se lembrar do que queria quando criança, não pode não saber se quem importa está bem, não pode não conhecer o lugar com o qual sempre sonhou ou não dar uma chance se existir uma mínima possibilidade. Não pode não saber quais musicas e filmes te fazem chorar e quais te fazem sorrir, não pode não descobrir por que está se sentindo mal há tanto tempo nem não ter algo só seu. Não pode não ter alguém com quem contar nem um motivo para continuar.
Você não pode um dia acordar e ver que não se lembra como tudo ficou assim. Pelo menos não deve.

Seu Martin 1, 10/09/2006