24.10.10

Um versinho

Faltou eu no vídeo. Tínhamos que gravar um depoimento contando como soubemos da sua existência, ficou uma graça. Faltando um mês pra você nascer, fizemos uma festa e demos de presente pra sua mãe. Mas eu não achei nada para dizer.

Sabe, pequenino, tenho fugido das minhas emoções. Tem tanta coisa que dói e gente que machuca, o jeito foi por um tempo não olhar pra dentro. Ênfase no “por um tempo”, tá? Não recomendo a você fechar os olhos pra nada, fingir que não existe ou esconder nunca dá certo, a gente sabe, em algum cantinho o sapato sempre aperta e uma hora o caldo entorna. Adianto que viver de verdades também vai te gerar um bocado de problemas, infinitas acusações, é estranho porém muito mais usual que se viva por aí com sorrisos falsos do que lágrimas verdadeiras. O povo tem pavor de lágrima mesmo depois da santa invenção do rímel à prova d’água! E eu, se for juntar tudo que chorei, girininho, haja lencinho de papel. Agora mesmo cá estou de novo assoando meu nariz vermelho, pronta pra enfim te contar a tal historia, que quando vi sua bisavó na TV dizendo coisas bonitas não me contive e mais uma vez me pus a chorar!

Eu tinha ido para São Paulo no fim de semana e ao pisar em casa de volta sua mãe ligou. Só sua mãe liga aqui pra casa, além da minha. Ela tinha ido a um casamento, anunciou novidades, eu obviamente esperava alguma fofoca da festa! “Estou grávida”. Igual à lembrança do que estávamos fazendo na hora da noticia da morte do Ayrton Senna, essa também jamais vai se apagar da memória. Diante do silêncio ela completou: “é, Gata”. Sua mãe costuma completar com “é, gata” as frases que ela solta e vê que nos causam espanto. Então comecei a chorar. Muito. Em pé na sala roxa, telefone azul na mão, um sentimento de felicidade tomou conta de mim e de repente eu tinha uma razão muito forte para viver até novembro: vinha uma pessoinha nova pro mundo! Um serzinho minúsculo, indefeso, inocente de quem eu precisaria cuidar. Nunca, como diria nosso atual presidente de quem um dia você ouvirá falar, nunca na história da minha vida senti um amor tão imenso e imediato por alguém. E nunca pensei que essas palavras pudessem ser mais do que cafonas e simples clichês.

Sobre as coisas por aqui, vou te contar a verdade: É, Gato, às vezes as pessoas mentem, magoam a gente, tanta gente, mesmo sem querer, abala nossa fé. Alguns dias sofridos, minutos mal-vividos, horas que nem os velhinhos contentes conseguem esquecer. Tem tanta miopia, banho de água fria, a gente até pensa se quer mesmo viver. Mas olha, girininho, quando o mundo ficar escuro, o jogo muito duro, se lembra que a sua chegada fez uma menina tão cansada reacreditar no bem querer.

23.10.10

Lar, salgado lar (ou FormiguinhaZ)

Decidi sempre deixar duas formigas vivas. Uma seria muita carga para a pobre, três construiria uma relação triangular fadada a turbulências, dois garante um suporte emocional, a calma de olhar pro lado e ter quem já passou pelo mesmo, dividirão o peso.
Sempre evito matá-las, temos um acordo sobre limites, aceito que co-habitem meu espaço ainda que de graça, mas quando é inevitável costumava afogar todas ou Matoxiza-las. Mal-humorada dia desses, descobri a casa delas debaixo do mármore da pia e pronto, exterminei-as. Cuidei para que quem não estava em casa morresse também, assim a minha cozinha não viraria o antro das lamentações e eu não viveria com aquela energia pesada de formigas em luto. Dias depois, atraídas pela aguinha de um tomate, elas voltaram.
Não acredito que a tomada de novos territórios pelas formigas seja rápido como de morros por facções, então calculei que aquelas eram sobreviventes da população chacinada, os dias em que habitei sozinha o apartamento deve ter sido o tempo que elas levaram para se refazer da perda. Há muito que observo nas formigas essa capacidade de lidar com a perda, pense em como estão acostumadas com isso! Foi daí que instituí a lei própria de nunca deixar uma em pé para ser a arauta da desgraça, a que entra no formigueiro em horário inesperado, já causando apreensão, e dá a notícia. No entanto hoje de manhã, ao ver as poucas retornadas, pensei na dor das famílias sem notícias sobre seus entes desaparecidos e concluí que a dúvida é pior do que a mais cruel das certezas ainda que a primeira permita uma confortável ilusão, e julguei mais humano sempre poupar duas.
Não estou certa de que a chegada da noticia na comunidade cause drama, acredito na aceitação desse povo às baixas, imagino que sejam bem-resolvidas e sigam outros códigos, mas, baseada no relato de mães de soldados mortos em combate e nas cenas da Norah Walker em Brothers and Sisters, dentro dos meus domínios quero que o relato chegue àquelas sociedades. Seja para chorar uma ausência ou condecorar seus heróis, é preciso que haja um rito de passagem bem marcado para a vida seguir adiante, e assim anuncio que sempre pouparei duas formigas.
É como repetiu John Lennon: pense globalmente, aja localmente.

15.10.10

Como nossos pais

Imagina se sua empresa tivesse promovido um Dia das Crianças no escritório. Seu escritório ficasse em um prédio com nove andares e em cada um você tivesse contabilizado cerca de 100 pessoas. 100 porque viu uma multidão sentada em baias olhando para computadores, nem enxergou o final da sala então pensou logo na centena, parâmetro numérico possível pra quem só sabe que um metro é menos do que sua altura, dois equivalem a um homem enorme, a ciclovia da Lagoa tem oito quilômetros, entre um posto e outro na orla são oitocentos metros e a régua da escola tinha trinta centímetros.
Digamos que no tal dia os colaboradores levassem seus filhos, então atrações seriam organizadas para diverti-los, pipoca, sorvete e flores fossem distribuídos (e você logo desconfiaria que as flores envolviam algum clichê cafona). Enquanto você estivesse lendo os emails do dia, garotinhos louros e meninas de cabelos cacheados correriam pelo corredor gritando porque crianças não andam nem falam baixo. Como idéia genial para diminuir os decibéis você organizasse uma sessão de Lua Nova, convocasse o publico mirim e saisse como o flautista de Hamelin guiando todos até a distante sala de TV proporcionando a volta à normalidade antes da primeira telespectadora sair gritando “mãe, sangueeeee!”.
Digamos que inicialmente você sugerisse aproveitar a mão-de-obra extra e distribuir tarefas atrasadas entre eles como uma gincana: quem arrumar o arquivo primeiro ganha um calendário! A melhor resposta para idéias inúteis vale um porta-crachá! – mas no meio do dia admitisse que as crianças até dão um clima de humanidade ao ambiente.
Digamos que ao tirar os tampões de ouvido, melhor mimo oferecido pela TAM, ouvisse o espanto provocado pela visão de uma máquina de biscoitos na saída do elevador: “papai, você come isso o dia todo?”, que é diferente de dizer que isso é tudo que papai come em quase todos os dias.
Digamos que o encantamento dos filhos por desvendar o tão famoso “trabalho dos pais’ fizesse você se lembrar do que representava ir trabalhar com seu pai na cidade anos atrás. O Centro era um vai e vem de pernas cinzas onde você tinha que dar muitos passinhos rápidos segurando a mão dos adultos, pessoas se abaixavam para te olhar e davam papeis de rascunho para você desenhar em mesas por onde era levada de uma em uma para ser apresentada, sempre fascinada pelas maquinas enormes de escrever que eram terminantemente proibidas para menores porque acabava a fita.
Digamos que apesar de considerar aqueles papéis-carbono muito glamourosos você ficasse observando o cenário e decidindo que quando crescesse não queria nada daquilo, planejasse um futuro colorido, pessoas em movimento, imaginasse um trabalho em que cada dia fosse diferente do outro e não houvesse paredes sem janelas.
Digamos que um dia você se visse trabalhando com sono por ter passado a noite tentando comprar ingresso pro show de um Beatle, depois de duas Neosaldinas se rendesse, recostasse na cadeira e ficasse vendo as crianças brincando de aviãozinho. Ainda insistiria em falar das coisas que aprendeu nos discos ou essa lembrança seria o quadro que dói mais?

4.10.10

Faxina


Brusse, "I clean today"

1.10.10

Publicação #301

Não inventei uma coreografia solo para revolucionar a dança, mas por não ter par.