29.11.11

A gota d'água

Invariavelmente ao meu redor tem um advogado, é a profissão de metade dos meus amigos. Curioso já que detesto confronto de qualquer natureza, apesar de não perder um debate. Lembro nitidamente do Brizola pedindo aos eleitores que escolhessem qualquer um daquela mesa, mesmo que não ele, desde que não votassem em quem nunca deu as caras como fez o Collor. Isso foi mais ou menos em 1835, quando meu senso libriano de justiça começava a querer sempre investigar melhor os pontos defendidos. Vai que o carisma do debatedor me influenciou? Melhor postura, atuação, desde lá tudo eu preciso entender melhor. Sobre os advogados acabei aprendendo que gostam de discutir como competidores gostam de competir, se não houver um oponente são capazes de criar uma disputa entre o pé esquerdo versus o direito, e sobre mim aceitei ser libriana e jornalista, com uma ressalva: nós librianos não somos indecisos! Ok, acho dificílimo exame de vista, mas porque projetar letrinhas na parede e ficar perguntando ao paciente se é melhor “assim ou assim”, sendo que os “assins” são exatamente iguais, não pode ser método o mais certeiro de avaliação. E aquela cena toda pode ser uma pegadinha! Eu sou um ser desconfiado.
Eis que recebo um vídeo pedindo minha assinatura contra a construção da usina de Belo Monte. O assunto virou moda, precisei me posicionar, e quanto mais eu pensava sobre Belo Monte mais vinha à memória a Maitê Proença tirando o sutiã. Procurei “hidrelétrica + sutiã” no Google, mas só aparecem referências a esse "argumento", cogitei até ser merchan de lingerie. Vai ver, na web, às vezes um sutiã é só um sutiã mesmo e em um vídeo-campanha Maitê Proença é sempre Dona Beija.
Lá em 1989 o governo fez uma campanha contra o câncer de mama onde a Cassia Kiss mostrava os peitos. Mamas são peitos, relação óbvia, não tenho problema com peitos. É curioso ver as siliconadas que pedem a todos para comprovar a textura da prótese e pessoalmente não me sentiria confortável amamentando no salão de embarque do Santos Dumont, mas em geral acho uma parte bem bonita do corpo feminino. O ponto é que os cartazes espalhados pela cidade nos faziam esbarrar nos peitos da atriz com mais freqüência do que um marido tarado agüentaria, e secretamente comecei a torcer pela extinção dos peitos da Cassia Kiss. Achei duvidosa a intenção, mas eu tinha 11 anos, fiquei quieta.
Fiquei quieta também com minha desconfiança em relação à ação via Facebook de conscientização para a mesma causa, quando as mulheres secretamente combinaram de escrever em seus status onde gostavam de deixar suas bolsas ao chegar em casa e assim despertar a curiosidade masculina para a doença. Foi um festival de “eu gosto em cima da mesa”, “prefiro no sofá” e “comigo é sempre no primeiro lugar com espaço”, e até hoje questiono se referencias sexuais não bloqueiam os neurônios dos homens para qualquer outro assunto. Também não entendi por que o publico-alvo da conscientização eram eles e qual o resultado prático do movimento, mas fui a única a deixar minha bolsa, mamas e homens fora dessa, a imensa maioria apoiou a brincadeira, eu sou uma mala.
E assim voltamos ao Pará e ao projeto Gota D’Agua. Enquanto divulgação o vídeo até que funcionou, já recebi o link mais vezes do que vi os peitos da Cassia Kiss! Passei a me interessar pela polêmica e consegui apurar que a construção da usina acontecerá no rio Xingu, próxima à cidade de Altamira, é uma das obras mais importantes e caras do Programa de Aceleração do Crescimento, alvo de criticas de ambientalistas, vai deslocar a população da região como acontece em casos semelhantes e há controvérsias sobre se esse povo não estará melhorando sua qualidade de vida com isso. Também não se tem certeza de que o país exerça um controle rigoroso na fiscalização, os impactos sócio-ambientais devem ser avaliados considerando as soluções que trarão ao Brasil e levanta-se a questão de a partir daqui buscarmos outros mecanismos de eficiência energética e fontes de energias renováveis, além de alertar os brasileiros contra o enorme desperdício de energia. Não sei se a maioria de quem assistiu ao vídeo dos artistas encaminhou a mensagem ou assinou a petição, vi que o Rafinha Bastos fez piada da iniciativa. Bom, a maioria passou a considerar Rafinha Bastos um elemento tão nocivo quanto uma hidrelétrica no Pará então paremos por aqui.
Eu vou continuar estudando sobre Belo Monte para opinar, mas, sinceramente Ary Fontoura, o que espero para o Brasil dos meus netos é que a imensa maioria seja mais bem-informada e reflexiva. E que os apelos criativos da mídia estejam mais focados no conteúdo e não na audiência fácil.

17.11.11

Em palavras


É pior do que morrer porque ao morrer - considerando que até agora ninguém voltou para desmentir - acabou. Ruim é continuar preenchendo todas aquelas horas cheias de minutos, dias inteiros, todos os dias em que nasce o sol, fica tudo colorido lá fora, muitos sons, e anoitece noites enormes, compridas. Noites que emendarão em dias em que você tem que se levantar mesmo tão cansada, decidir se pior é engolir comida em um esforço semelhante a ruminar papelão ou manter-se um pouco mais sem nada, e encarar pessoas. Poucas pessoas ainda distraem, você ri, se ninguém comenta sobre o nariz vermelho ou olhos marejados é porque nem notaram a escapada discreta ao banheiro, pausa momentânea para chorar. Qualquer porta que se fecha dispara o gatilho de lágrimas, ao dirigir elas vertem tão habitual e automaticamente que nem devem ser classificadas como choro – são só seus olhos que escorrem. Uma sobrevida onde quase não há movimentos, não existe o brusco. Tudo vai sendo porque deixa ser, deve ser, mar antes da arrebentação, aquela água que vem e vai, vai, vem. Você nem transborda.
Fúria, um grito, socos, aos berros, louças quebradas, roupas rasgadas, nada. O único rompante de euforia vem do álcool porque você está ali, vestida, acordada, as pessoas ao redor riem e pulam, festejam, há música, luzes mas não essa fumaça, como se dissipa? Se tudo parece meio distante é porque aquilo não é um sonho, é real, estão todos ali mesmo parecendo impossível tocá-los, as vozes estão aqui, você é quem não está. Você não pertence. É um feitiço, sonambulismo. E daquelas garrafas sai a cura que aproxima as pessoas e afasta as memorias então é mais um copo, outra dose, cuidado, não pára pra isso não acabar, e você está se misturando, olha quanta alegria e de repente uma coisa, qualquer coisa, estala. O encanto se rompe. Não vai, se esforça, disfarça! A raiva que cresce do fundo do fígado chega à goela na forma de dor, e aí sim você chora. Chora. Se contorce. Se assusta e apavora porque escancara, se afasta, vai se trancar – quem colocou essa aqui? E a culpa te espreme na cama, não abre essa cortina que todo esse sol vai apontar um dedo indicando que esse mundo lá fora não foi feito para você. Você não o merece. Ele não te entende. Quase ninguém entende, só te defende quem repete que vai passar e é claro que mente. Passa. Dia a dia você se entende porque quer viver, viver é muito melhor do que morrer. Eu sei.  

6.11.11

Testemunho




Um dia perguntei se não o incomodava ver a mãe beijando outra mulher. Ele riu, daquele jeito indicativo de que algo mais forte vem a seguir, e disse que já a tinha visto amarrada em uma cadeira sob a ameaça de ter uma faca enfiada entre as pernas. Pensei que eu não saberia lidar com uma mãe atriz.
O sol de sábado com o trânsito insuportável da rua Jardim Botânico mais o deslumbre por cada canto do Instituto Moreira Salles fizeram meu atraso perder o começo do filme, quando sentei não sabia o que as pessoas ao meu redor já sabiam sobre aquelas que se amparavam entre lágrimas na tela. Eu já sabia que seria algo pesado e que o documentário acompanhava uma atriz em sua personagem durante a encenação de uma peça sobre o Holocausto.
Logo alguém diz para a protagonista completamente abalada: “isso é só teatro, não pira!”. Ela continua chorando, Carla Ribas. Anos atrás uma amiga comentava sobre os tantos prêmios que Carla Ribas ganhara em seu filme de estréia, mas desde que essa amiga me apresentou a ele – o filho da Carla Ribas – até o dia da resposta da faca entre as pernas eu nunca  tinha pensado muito sobre fato do Grabo ser filho de uma atriz. O Grabo era um amigo meu, fazia cinema, três refeições ao dia e sucesso no karaokê.
 Eu tenho uma teoria de que se alguém responde que um filme é bom porque a luz é incrível é porque o filme é ruim. Resposta positiva para “você gostou, o filme é bom?” só pode ser “é”, se precisa de explicação são ressalvas. Depois do “é” permito vir elogios à técnica, atuação impecável, trilha genial, direção segura, etc. O filme do Grabo é foda. Personificando mais um palavrão estava eu desejando poder desmoronar de chorar enquanto o silêncio sepulcral da plateia transformava a dúvida do funcionário em abrir a porta ou não em comédia, ninguém falava, os créditos subiam sem música, os aplausos não começavam e o homem ao meu lado, que havia acabado de entrar na sala, pergunta baixinho: “é de se emocionar?” Meu indiscreto nariz vermelho se vira para ele acompanhando o resto da cabeça num sim que não satisfaz o interrogador: “por quê?”. Que diabos faz um homem que acabou de chegar me perguntando coisas assim? É porque é, não sei, você é meu terapeuta, meu consciente? É tudo tão doído, doente, estafante, eu torcendo para aquela câmera mostrar uma luz, cadê o dia, que horas são que já faz mais de doze que aqueles atores estão entrando e saindo de cena e repetindo aquele texto horripilante e quando finalmente acaba em um mergulho na praia e os braços são jogados para cima dá um alívio...
Não.
Então abriram o debate e a plateia começa a dissecar o filme – onde estava a câmera? Era sempre zoom? Aquele assunto despertava interesse especial no diretor? Todas as imagens foram feitas durante a montagem de vinte e quatro horas da peça? Houve ensaio? Eu queria perguntar como ele tinha conseguido se tornar invisível para estar sempre perto sem interferir na construção do trabalho dela, não consegui.
 Acabou que o homem das perguntas foi apresentado como Eduardo Wotzik, diretor da peça, rimos cúmplices, aproveitei o sol de sábado para um mergulho atrasado na praia e só na volta no trânsito insuportável da Jardim Botânico ainda deslumbrada com Testemunha 4 me dei conta do tal porquê. Aquele abraço no final, Grabo e Carla, a dedicatória no canto direito da tela: “para a minha mãe”.
Se é um zoom em uma atriz por um diretor, mãe pelo filho, isso não é uma critica cinematográfica: só uma tentativa de ir mais fundo no meu sentimento para compreender.

(And I keep thinking where to hang a Warhol that says "Art is what you can get away with.)