- Você organiza a sua fileira de Elo Monsters e eu a minha, como se os bonequinhos fossem times de um jogo de Queimado na mesa. O objetivo é arremessar um bonequinho em direção à fileira da outra para derrubar os oponentes, quem conseguir ganha o bonequinho derrubado para a sua fileira.
- Só isso, petelecos para
derrubar bonequinhos? Como bolinhas de
gude.
- Petelecos e não pensamos em
mais nada. Zerinho ou um? Mamãe Noel começa.
- E eu faço o quê?
- Você vai entregar os presentes
que já está na hora, o trenó está carregado lá fora com as renas.
- Cadê meus óculos? E os
endereços das cartinhas?
- As duendes sabem. Calça sua botas, se alguém te vir de Havaianas vai dar um quiprocó danado e tenho mais o
que fazer. Leva seu saco com água e mix nuts. Bom trabalho, Amor!
Papai Noel não está conseguindo
comer nada. Monjaro.
- Mas o contrato com a Coca Cola
não exige que ele seja gordinho?
- Mudei, quero bebidas funcionais
agora, estou pensando em fechar com uma marca de sodas adaptógenas.
Fico em silêncio. Mamãe Noel está
sempre tão atualizada nas tendências que me perco, começou a assistir microdramas
nos anos 90 quando eu ainda achava que não poderia viver sem meu primeiro
crush. Que não era crush.
- Cogumelos, Bruna. Cogumelos
adaptógenos. Em NY só tomam isso em cápsulas, drinks, e maconha. Podemos usar
uma luva para brincar de Elo Monsters? Esses petelecos vão acabar com a nossa
unha, não tem biotina que salve.
- Você também está com as unhas
fracas?
- Meu bem, se fosse só isso. Outro
dia até lembrar a palavra “Lapônia” fiz mímica de todos os países nórdicos para alguém descobrir, virei a sua mãe quando
ficava “aquela atriz daquela novela daquele canal” ou soltava o nome de todos
os filhos até acertar o seu.
- Sempre achei que um dia ela me
chamaria pelo nome do cachorro. E achei também que esses efeitos de estrogênio
desabando...
- O quê?
- Não posso perguntar quantos
anos você tem.
- Não me sinto mal com isso, meu
bem, meu colágeno e bunda caem na proporção que me liberto então olho o copo
meio cheio. E o trabalho que me deu chegar até aqui? Quero mais é contar sobre
cada ano, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo minha idade. Ninguém nem sabe
quando é o Natal, não é mesmo?
- Amanhã, dia 25.
- Isso é inventado, querida.
- Não, Mamãe Noel, Corpus Christi
é que ninguém sabe o que é, quando cai. Natal é...
- Você acha que naquela
manjedoura tinha um calendário? Se quiser acreditar no seu horário de
nascimento para fazer mapa astral ainda vai, mas que Maria e José tiraram uma
foto da chegada de Jesus e postaram com legenda “Vem, JHS!” exatamente na noite
do dia 24 de dezembro é mais alucinação do que IA com prompt ruim.
- Eles não sabiam que dia era
aquele? Não contavam as luas ou, sei lá, observavam o sol?
Mamãe Noel faz uma expressão de “sinto
muito por te dizer isso”.
- Então tudo é inventado?
- Tudo.
Fico paralisada.
- Alguém inventou o Natal? Como criou
a monogamia, a definição de sucesso, criou o tempo...
- Alguém criou tudo o que você entende
por realidade, meu amor. E não é trecho de The Chosen, aqui é mais Sapiens
mesmo. Seu smart watch contador de passos está indicando uma data que parte da
humanidade concordou em definir que seguiria, mas o tempo pode ser ao mesmo
tempo.
- Estou um pouco tonta, minha
cabeça está latejando.
- Isso é bem real, é seu estrogênio.
Toma um Dramin B6.
- Agora é merchan? Não sei mais
no que acreditar.
- Ótimo! É a sua chance de criar,
inventa o que for melhor para você. Quem topar embarcar junto virá junto, com quem
não topar você inventa outra relação, relação nenhuma, o que funcionar, pode
escolher. Vamos escolher, por exemplo, ligar o ar condicionado? Às vezes não
sei se é verão, fogacho ou crise climática mas está mais quente e isso não é
invenção, é sensação física.
- Tenho a sensação física de querer
um abraço.
Mamãe Noel me abraça.
- Tantas coisas mudaram, não
podia deixar o Natal no Natal?
- Não se chama mudança, meu amor,
se chama Vida. É inerente a ela o movimento, o começo-meio-fim-começo, não são
só seus hormônios que flutuam. Se te faz bem acreditar que o Natal é no dia 25,
acredite, apenas saiba que é sua escolha e que você não controla o tempo. Você
não controla nada. Não se dê tamanha importância, esteja aqui dando petelecos e
tudo vai passar da mesma forma, fatiado em 24 horas ou não.
- Vejo o tempo passar no
envelhecimento. No que não é mais, não dá mais, não está mais.
- Por que você me imaginou como uma velhinha?
Olhe de novo. Como você quer que sejamos hoje com o que temos? Invente, meu
bem. Ultrapasse o seu mundo físico, com tanto que há você quer ficar restrita a
ele? Que desperdício! Que diferença faria se os Três Reis Magos tivessem
chegado em fevereiro ao invés de janeiro? Não muda a história. A não ser que
por lá também fosse Carnaval e ao invés da Estrela Guia eles tivessem seguido
um estandarte de bloco qualquer, distribuído mirra para os foliões, passado ouro
no corpo, perdido a fantasia no caminho...
- Eles estariam pelo mundo atrás
do Boitolo e essa história não existiria.
- Não sabemos. Por isso as
pessoas criam e são feitas dessas histórias como são feitas do DNA dos pais e
antepassados e das conversas que tiveram, do que aprenderam e viveram juntos e assim
se moldaram. Olha o tempo aí: as pessoas que nós amamos não existem apenas no
corpo delas mesmas, elas existem em nós e nisso seguem no nosso tempo. As memórias
e a presença delas estão em você não como algo que passou, mas como o que são
agora. É mais real e importante o presente embrulhado que Papai Noel deixou na sua janela ou nós aqui brincando
de Elo Monster e tendo essa conversa?
- Talvez eu esteja só imaginando
essa conversa.
- O que a faz existir para você. Você
é uma criadora de histórias, todos somos. Qual história quer contar sobre esse
tempo chamado de ‘seu ano’?
Passa para cá esse Monstro.
- O quê?
- Esse Monstro que derrubei com
meu peteleco, não é assim o jogo? Ele não é mais seu, me dá. E vamos fazer uma
pausa na brincadeira e rever a Paolla dançando Água de Chuva. Isso é ter um Feliz
Natal.
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo
(Oração ao Tempo, Caetano Veloso)
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
(Tempo Rei, Gilberto Gil)