23.6.24

Are we human?

Por alguma razão a afilhada estuda em uma escola alemã, fala frases que não entendo e por isso – a escola, não a linguagem - me convidou para vê-la dançar na Festa do Colono Alemão. “Nosso tema são os Irmãos Grimm, Dinda”. Encontrei-a com as amigas na coxia, todas vestidas com saias compridas de tule azul claro, ensaiando próximas aos meninos-príncipes. Que seguravam cavalos de pau. 

“É sério isso?”. A mãe da criança rapidamente aponta para meia arrastão por baixo da saia, um símbolo de transgressão que poderia evitar que a madrinha não-fada inflamasse ali uma revolta feminista anticolonial. “Toma esse salsichão, senta e aplaude”. Na abertura da dança, Rapunzel, Cinderela sem um tênis e Branca de Neve se encontram em um fim de... resenha (?), não sabem onde estão seus pares e decidem sair para comer uma pizza.

 

I was always there for you, oh, I was always on time and I gave you my all so now you call, I decline

 

Em um reino não tão distante dali, ex-princesas e ex-príncipes que saíram da escola uns 30 anos antes também dançavam numa festa. Elas dançavam, em roda. Eles fumavam charuto, um garçom oferecia tequila aos que ignoravam a voz interna sábia que dizia “você vai se arrepender desse shot em poucas horas”, ressaca depois dos quarenta tem sintomas de chicungunha. 'Lembra quando tomávamos Sol com uma rodela de limão? E fumávamos Goudan.'

“Três pessoas da nossa turma foram presas. Como presas, estelionato? Assalto em residência. Eu achava que cometeríamos crimes mais discretos.”

Aos sete anos um dos assaltantes cometeu chegar com um buquê de rosas vermelhas no meu aniversário no play, um pânico que carrego na memória por não saber de que forma arremessaria o garoto ou as flores pela janela. Incrível como tão nova eu tinha a capacidade de avaliar bem os homens que escolhia.

 

Heartbraker you´ve got the best of me, I should have known right from the start you were gonna break my heart.

 

Vai ficar tudo bem, princesa.

 

“Você não acha que a gente muda? Somos iguaizinhos. Acho que mudei um bocado nesse tempo. Você sempre foi a roteirista. Mas me tornei um pouco comunista. Não teria sobrevivido lá fora se não fosse assim”.

 

I still believe in your eyes. I just don't care what you've done in your life.

 

E como bons amigos de adolescência que se reencontram, combinamos de comprar o terreno de Itaipava em um sistema de cotas e construir nossa ecovila comunitária com espaço para pouso de aeronaves alienígenas. Alguns passaram a acreditar em ETs, outras passaram a acreditar.

 

How I wish

How I wish you were here?

 

As pessoas que não vemos morrer parece que sumiram e que ainda estão ali.

“Como você está? É difícil. Posso te dar um abraço? Demoramos para nos dar esse abraço, não é? Levou o tempo que precisava levar. Passamos a vida achando que nós éramos o perigo. Eu queria ser aquela mulher que ele via em mim, mas ela era uma ilusão, perfeita, levamos uma vida para se deixar ser o contrário. Levou o tempo que precisava levar.”

 

Aos primeiros acordes da nona de Beethoven a música se tornou um mash up de Macarena. Aquela que dançávamos com os braços em uma coreografia pre-Tik Tok, em roda, na night. A princesa de meia arrastão abriu um sorriso de alegria infantil que derreteu o coração da Dinda, as saias de tule passaram a se divertir jogando o corpo no mundo em movimentos ainda meio descoordenados. Os príncipes entraram depois.

 

And sometimes I get nervous when I see an open door

Close your eyes clear your heart

Cut the cord

22.3.24

Hear it on my window pane (Rain, I feel it)

A culpa da chuva é do Lollapalooza e ninguém tira isso da minha cabeça. “Mas, Bruna, são as águas de março fechando o verão desde os festivais da canção”. Não interessa, o Lollapalooza atrai situações extremas, foram anos de transmissão temendo sair para almoçar e voltar para encontrar a equipe toda dentro de uma van, público montadíssimo nos looks super cool atordoado sem saber o que fazer, shows cancelados, foi o Lollapalooza que causou o furdunço da chuva no Rio. Talvez eu não devesse escrever isso, posso parecer negacionista climática.

“Não sei se vejo o prefeito ou a Kate”, me diz um enclausurado. O governante está acampado em uma central de controle reportando hora a hora o volume de água que cai, rezando para que nenhuma desgraça aconteça e sua popularidade tenha o mesmo destino. A princesa britânica reapareceu depois das mais fantásticas teorias sobre seu sumiço, que incluíam até Caverna do Dragão e o Uni. Nada me distrai. A médica desmarca minha consulta, o músico desmarca a roda de samba, o professor cancela a aula até do dia seguinte, meu coração começa a palpitar em um deja vu que não parece bom. Eu presa nesse apartamento, me comunicando com outros na mesma situação por aí. Respondo três emails e checo o celular, duas mensagens e abro a geladeira, meia página de roteiro e dou uma volta pela casa. Esse dia não vai acabar logo. Visto minha super capa de chuva e vou ao mercado comprar entorpecentes.

Uma lata de Leite Moça, chocolate em pó, pãezinhos de queijo...

“O macarrão”.

“Oi?”

“E o atum. Não vai levar macarrão e atum?”

Era o atendente, bastante atento pelo visto.

“Na greve dos caminhoneiros você ficou sem gasolina, na crise da geosmina sem água mineral, começou a pandemia sem papel higiênico. Não aprendeu nada sobre fim do mundo?”

“Não como gluten”, respondi, pegando uma lata de atum ralado por puro constrangimento e pensando que ter amigas escritoras estava deixando minha vida muito exposta. “E não é o fim do mundo”, deveria ter dito, mas éramos os únicos no local em uma sexta-feira à tarde. A angústia só aumentava. Sigo para casa já planejando desinfetar todas as compras, gatilhos são estranhíssimos.

Uma cascata de água desaba do céu. O ex-Twitter-que-só-chamo-assim mostra imagens preocupantes de Petrópolis, de onde a madrinha que se recusou a sair nos acalma dizendo que estocou comida. Realmente não aprendi nada. Percebo que nem reunião marcaram, desde março de 2020 não passo um dia útil sem entrar no Teams.  Passaram trinta e oito minutos desde o mercado.

“Poderemos sair amanhã?”, debato virtualmente. “Um encontro com amigos do mesmo bairro depois de medirmos a profundidade das poças”, que tal? Os grupos começam a recomendar séries, filmes, livros, se alguém propuser uma festa online vou gritar na janela. Não, não farei nada na janela. “Vamos ficar transando”, uma fala. É excluída do grupo, já existia ansiedade demais no ar para alguém com reposição hormonal se manifestar.  Outra manda a recordação do Facebook (?) onde aparecemos de vestidos tomara que caia que não se chamam mais tomara que caia e bronzeadíssimas em um verão 14 anos atrás. Não sei se sinto mais falta de ter colágeno ou produzir melanina, e lembro dos verões passados alagados. Não dos alagamentos trágicos, das chuvas em que sorrimos. O Carnaval onde nos fantasiamos de Arca de Noé, um de cada bicho envoltos por uma boia inflável gigante – era tanto espaço no Boitatá que ficávamos assim dançando no temporal. O show da Madonna no Maracanã em que a cada vez que abríamos a boca para cantar engolíamos alguns litros d´agua, mas amamos. O show do Roberto Carlos no mesmo Maracanã, onde parecíamos camisinhas gigantes usando aquelas Capuchas, como era grande meu amor. Somos ecléticas musicalmente, e incansáveis: no último Rock in Rio assisti a Iza pelo pequeno espaço para meus olhos que restava de fora no casaco náutico que peguei do meu pai, cinco vezes meu tamanho, mas estava lá – Pesadão Pesadão dão. Assim como na Marina da Gloria para Los Hermanos, Marisa Monte. Caetano? Não, fui tão esperta nessa doce maravilha, me perdoa, Caetano. Não saia do meu lado, segure o meu pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixo, acho que a chuva ajuda a gente a se ver...

Nada. Peço que caia devagar.

5.11.23

Libertador

Ainda eram dez da manhã e eles já estavam lá, uns cinco ou seis em roda com suas camisas do time, cervejas na mão e aquele comportamento hetero masculino que transborda ao se reunirem – a surpreendente memória que sabe cada drible dos últimos 50 anos e o girar de cabeça a la Exorcista em direção à fêmea que passa com seu doce balanço a caminho... de casa mesmo, nesse caso. Os bares ainda nem tinham preparado mesas e cadeiras, os fogos de artificio já estouravam e o bairro ecoava cânticos da torcida tricolor, abrigando pelas esquinas torcedores e torcedoras em concentração.  Eu, que não coloco minha felicidade nas mãos de 1 homem, não colocaria nos pés de onze então planejava viver mais um sábado normal no balneário carioca.

Cerca de duzentos vôos trouxeram da Argentina torcedores do time rival. Me preocupei ao saber que quarenta porcento nem tinha ingresso, alguém monitoraria a volta deles? Achei que podiam estar fugindo de Milei e Massa e Boca ser só uma desculpa, não é possível que pessoas que vivam aquela hiperinflação gastem dinheiro assim. É possível, e eu nunca fugi daqui, vieram com Advincula e lotavam Copacabana em festa.

Podia ouvir meus passos ao caminhar na rua durante a partida, passava por amontoados de pessoas hipnotizadas em frente a TVs e quis me certificar de que assistiam mesmo a um jogo de futebol e não a notícias da guerra com aquela cara de apreensão. Vez ou outra emitiam gritos de “uuuuulll” – que corresponde a um gol perdido – até que a explosão do 1X0 foi sonoramente anunciada, seguida por 1X1, prorrogação e como nem garçons em restaurantes me atendiam, me rendi e liguei a TV. Um jogador simulava desmaio por um tapa na cara em uma atuação sofrível, outros batiam peito com peito estufados em discussões que sempre me deixam curiosa sobre qual língua usam, o técnico com uma duvidosa forma física para quem trabalha com esporte andava como uma fera enjaulada na beira do campo, 110 minutos de jogo e o juiz ia ampliando aquela tensão. A vantagem do streaming é que ele nos poupa a ansiedade, o delay na transmissão protege com os spoilers que vem das interjeições berradas pelos vizinhos muitos segundos antes de vermos o lance na tela.     

Fim de jogo no Maracanã, garanto que as únicas duas garrafas de cerveja da casa estão geladas para receber os combatentes que vem do estádio. Chegam eufóricos, com os olhos vermelhos. “Maconha?” Não, lágrimas. Pulam, me abraçam, contam que ligaram para o avô do caminho, “é o último campeonato dele”, choram mais. “Mas está doente?”, me espanto. “Não”. Ok.

Dias antes eu tinha recebido pedido de socorro de uma amiga querendo companhia para escapar de casa por algumas horas, “meu marido está péssimo”. Algo grave? “O Botafogo perdeu”. Eu mesma tinha deixado em outra casa um flamenguista que foi dos beijos aos monossílabos em 1 tempo mal jogado, saímos com a certeza de que eles se recuperariam até o meio da semana, quando viveriam tudo aquilo de novo por outro campeonato.

Rodadas depois, quando rubro-negros e botafoguenses já tinham urrado de alegria e esmagado os controles remotos de ódio diversas vezes em partidas diferentes, conversávamos sobre relacionamentos. Eu desaguava em lágrimas de dor e raiva jogando em cima de mim acusações de incapacidade, uma vontade de quebrar a casa, me autopunir pela suposta repetição de erros, uma fraqueza que fazia desaparecer as cores do mundo até então perfeitamente (des)harmônico e vibrante, ainda mais colorido pela vivência de um encontro. Tentando achar razão minimamente acolhedora para aquela falha terrível, solucei: “Por que escolhemos passar por isso?”. “Vai acontecer de novo”, ele respondeu, com a calma dos que estão lendo um manual de instruções. Para mim, era a força dos que praguejam contra quem queremos mal. Não era. Ele só sabia que todo ano tem Libertadores, Campeonato Brasileiro, Carioca, Taças e todo o carrossel de emoções que isso envolve - e a torcida está ali, transferindo para aqueles homens desconhecidos seus sentimentos mais intensos, tirando de si a responsabilidade exaustiva de lidar sozinha com eles. Como em toda paixão.

John Kennedy platinado mal acabara de fazer o gol histórico previsto pelo técnico e já diziam: em dezembro tem Mundial, boraaaaa.


(Em fevereiro tem Carnaval)

 

7.5.23

Apenas mais uma de amor

O Parque tem dois canos enormes que nos últimos tempos sofrem uma crise hídrica e não nos refrescam mais, um terceiro que parece que vai furar nossos crânios com a força da água, macacos eternamente famintos e muitos cachorros. Tem a Gabi, que conhecemos um dia descendo a mini-trilha dos canos, os vinte e um pugs que andam com o passeador e sempre nos fazem rir e os que vão surgindo a cada dia. Foi em um desses que conhecemos Simba.

Os dois cãezinhos subiam a ladeira com a metade das línguas para fora, caminhando com aquele rebolado de quem tem as patinhas curtas e sem pressa de chegar a nenhum lugar. O caramelo parecia um salsichinha avantajado, corpo comprido parrudo e aquela estatura rebaixada que os torna engraçados. “Acho que esse cachorro é lá do Horto”, notou J, “sempre o vejo solto por lá”. Ainda não sabíamos que se chamava Simba e que até aquela manhã estava por aí em um estado emocional tão ruim, se sentindo muito mal, quando cruzou o teu caminho e te mudou a direção o Outro.

O Outro era uma graça, preto, peludinho, pequenino e assustado quando chamávamos para dar carinho e água, oferta que ambos esnobaram, e entendemos que Simba estava mais interessado em seguir o companheiro do que se hidratar ou ganhar festinha na cabeça. “Espero que essa relação seja consensual”, pensamos ao vê-lo subir no amigo ali mesmo na frente de todos que esperavam por um café. Nenhuma intenção de esconder ou deixar subentendido. A diferença de tamanhos tornava o encaixe um pouco complicado, mas não quisemos ficar analisando. Mergulhamos na cafeína, eles na luxúria, vai, Simba, consideramos justa e invejável toda forma de amor. Inveja boa, que isso valha pra qualquer pessoa. Vamos nos permitir.

No dia seguinte, J soube pelas redes sociais que Simba tinha uma dona que pedia informação a quem quer que pudesse tê-lo visto. De tanto fugir, já dera meia volta ao mundo levitando de tesão, não tinha mais dedos nas patinhas para contar de quantas janelas se atirou e quanto rastro de incompreensão já deixou. Talvez Simba fosse o último cão romântico dos litorais desse oceano Atlantico. Sempre volta para casa, caminha pronta e rango na tigela, mas, dessa vez, estava demorando demais.

J quis mandar um direct para ajudar a Dona no reencontro. “Mas não sabemos como é a relação deles, vai que ela fica contrariada”, ponderei, “diz que ele estava perdido, sozinho, errando de bar em bar”. “Não tem bar no parque, ela não vai acreditar”. “Vai que Simba quis evitar os olhos do Outro, não pôde resistir e agora a Dona vai atrapalhar essa aventura? Vai que o Outro demonstrou tanto prazer de estar na companhia dele que experimentou uma sensação que até então não conhecia e você vai estragar por uma tolice de resgatá-lo?" Eu já via Simba como um flagelado da paixão, retirante do amor, desempregado do coração.

J mandou o direct, a dona resgatou Simba no parque, não soubemos mais do Outro. Fiquei imaginando Simba em uma casa agora gradeada, preso a uma coleira, sangrando pelo sonho de viver. Talvez seja eu a última romântica, a voz nunca rouca mas o coração na mão. Talvez falte eu acordar. Talvez tenha ido a shows demais do Lulu Santos desde o Metropolitan com Milton Guedes no sax. Talvez eu ache que a explicação para o vigor e animação daquele homem de 70 anos seja o amor por Clebson exposto publicamente em palcos e parques e queira isso para Simba e o Outro.

J demolirá toda certeza vã e dirá: Simba só quer transar. E se isso for algum defeito, por mim, tudo bem.

9.4.23

Teams

Tenho mania de apagar as luzes dos espaços vazios - das salas de reunião, da copa. É pelo tanto que meu pai reclamava “vocês acham que são sócios da Light?”. Não saio fazendo isso na casa dos outros, só na minha. Ajeito objetos também, a parede de troféus que vivem fora do lugar. O escritório era tão barulhento, agora fica um silêncio. Noite dessas, disse para uma pessoa que estava por lá: estou acostumada a ouvir meus próprios passos nessa sala.

 

“O que ter na mesa em tempos de demissão sumária” é o título de um dos capítulos do livro que peguei para reler essa semana. “Manual da Demissão”, de Julia Wahmann, fevereiro de 2018. Sempre digo a ela que esse livro deveria ter uma publicação contínua em fascículos ou atualizações anuais como faziam com o Almanaque Abril. Ela lista “lenços de papel, calendário de mesa, colírio lubrificante, carregador de celular” e mais 2 páginas de coisas onde conclui que “você precisa de apenas três itens sobre a mesa em tempos de demissão sumária: um maiô, uma droga e o telefone de um bom psiquiatra”. Meu impulso de atualizar a lista acabou em um pensamento: não temos mais mesa no escritório.

 

“Quer que eu pegue suas coisas no armário para não precisar voltar aqui?”, escrevi, segundos depois de ter mandado outra mensagem perguntando se ele não preferia ir de Uber para casa, eu poderia levar o carro mais tarde. Na minha cabeça giratória, o homem estaria vagando pelas ruas ao redor da empresa atravessando entre os carros que buzinavam, desorientado como nos filmes. Mas essa era eu, mentalmente. Ele estava calmo. “Estou na moto, parei para te atender”. Eu já tinha roubado o momento dele de cair em prantos quando agi assim ao saber o que tinha acontecido, agora o impedia de cumprir reflexivamente seu caminho para casa. “Fica calma”. “Desculpa, era eu quem deveria dizer essa frase ao ouvir sua notícia”. A notícia era “acabei de ser demitido”.

 

Como achávamos que voltaríamos poucas semanas depois, levamos conosco somente o essencial para seguir trabalhando. Era março de 2020, deixamos nas mesas canetas, grampeadores, clipes, post its, papéis impressos, bolinhas anti-stress, calendários, porta-trecos cheios de trecos, bonequinhos, souvenirs que os colegas traziam das férias, fotos que insistíamos em prender nas baias mesmo contrariando as regras do ‘open space’. Nossa tralha ali configurava “nosso lugar”. “Nosso lugar” era onde passávamos enorme parte da nossa vida, e nossa vida era apegadíssima. Quando o prédio ficou pronto, já tínhamos escolhido os lugares na sala nova: pessoas da mesma equipe sentariam próximas, tínhamos que ficar perto para funcionar. Era tão perto que participávamos de qualquer conversa que o outro tivesse, de questões dos filhos no telefone a assuntos de trabalho mesmo. A nova sala não podia ter gaveta, seríamos modernos e modernidade eram os armarinhos. Em inglês, lockers. E acabava ali a era de computador nas mesas, ganhamos notebooks. Não podia deixar nada nas mesas, teria blitz da tralha! “Ao ir embora, guardem seus notes nos lockers”. Na primeira semana teve gente indo na Tok Stok comprar gaveteiros clandestinos, até cabideiro alguém adaptou na decoração. A iluminação também teve uma leve alteração, na calada de uma noite mudaram uma lâmpada por outra mais potente,  ninguém pode trabalhar direito à meia luz. Na refrigeração também mexemos um pouquinho, uma rápida construção de canaleta plástica para o vento do ar condicionado não nos matar de rinite. E vivíamos assim, arrastando tina de gelo pela sala em noite de festa não-autorizada, o general da Segurança que lutasse depois para nos punir. Já tínhamos sido um pouco multados anos antes por formar um bloco de Carnaval, nada muito grave aconteceria que não valesse a pena.

 

Em uma versão filme de terror do lema “the show must go on”, guardei o celular, ele seguiria o caminho para casa e eu para as reuniões. Um pouco de água no rosto, um sorriso e, voilá, o piloto do novo programa despertava boas risadas, tínhamos em mãos um potencial sucesso de audiência! De views. O que for, um bom produto. A perspectiva animadora da criação coexistia no meu corpo com outra parte de mim que soluçava ainda. A gente tinha tempo de chorar quando escritórios tinham gavetas? Quando eram tão perto as telas dos nossos computadores que eu o via pagando o IPVA e não precisava saber o calendário do Detran, desvendar os sites para os pagamentos, ele mandava cada link, as datas e “toma aí, Maria, paga teus boletos” (nem para pagar meus boletos, hein?). Quando, entre pizzas e Doritos em noites geladas no controle de transmissão, comentamos que passávamos mais horas uns com os outros do que com as nossas famílias.

 

Um tal de novo normal se anunciava no planeta e um dia avisaram que teríamos que buscar nossas caixas no escritório. Não se previa um retorno, recolheram tudo o que deixamos lá e guardaram em papelão. Foi como abrir uma cápsula do tempo, com a estranheza de que não haviam se passado tantos anos assim, mas nada daquilo servia mais: a tinta das canetas tinha secado, as informações dos papéis expirado, não imprimíamos mais nada para precisar de clipes e Lumicolors, não havia suporte para as recordações porque não teríamos mais lugar fixo na volta. Bastariam fones e copos para beber água nos lockers sem nossas tralhas.

 

O que não deixamos nas mesas nem guardamos nas caixas, nos lockers ou salvamos nos notes é o intangível: o que aprendemos, as piadas internas, o saber a quem recorrer, a segurança de contar com a experiência e o talento que se somam nas horas mais arriscadas, o apoio, a complementariedade, a confiança, o saber antecipar o que o outro vai achar, o “vai por mim e depois me fala”, o “liga quando puder que quero saber sua opinião”, o sorriso ao se encontrar no mundo ainda não reajeitado para os tais novos tempos que parecem sempre tão transitórios. Porque eles são. O estável somos nós, constituídos pelas nossas tralhas de histórias, e amor.

 

5.2.23

De manhã eu voltei pra casa

Aumentaram a pista! Como não tinham pensado nisso antes? “Mesmo assim acho que não está cabendo”. “Claro que está cabendo, conseguimos até ver o chão”. Essa moça está me empurrando, vou adotar minha técnica antiga de dançar com os cotovelos abertos. “Olhaaa! Você também veio!” Ah, abraço, legal, uhn, está um pouco quente, suor, não tão legal. “O quêêê?” Conversar ao lado da caixa de som não vai dar, talvez tivéssemos mais audição quando vínhamos aqui. Não, acho que tínhamos mais prática e mais álcool.

Vou no bar. Ir ao bar sempre foi a primeira ação ao chegarmos em uma boite. Onde compra ficha? Não é parque de diversões, é boite, você tem uma cartela de consumação. O barman vai marcar nesse papel? Que vintage! Depois paga na saída. Putz, era aquela fila, né? Não enxergamos mais o cardápio, é muita desonra sacar óculos da bolsa para pedir bebida. Não precisa ler cardápio, pede cerveja. Melhor beber algo com mais água na composição, agora me preocupo com hidratação. O caixa era aqui, “eu pagava em cheque!”, como escrevíamos em cheques com cem doses de cachaça no corpo? Daí que inventaram o pagamento por aproximação.

Estamos de volta com Janot na Brazooka! Ele solta Tenha Dó, as pessoas pulam. “Seu joelho também é o que dificulta a vida na pista?”. Coloca um salto para dançar depois de 3 anos e falamos sobre dificuldades na pista. O que traz tanto cansaço é nosso corpo dez anos mais velho ou um acúmulo de coisas na nossa cabeça? “Acho que não vou durar muito, durmo às onze, já é uma da manhã”. Era normal nos encontrarmos todos ali: “Matriz?”, pulava a mensagem toda sexta-feira. “Matriz”. À meia noite chegávamos, às cinco partíamos. Agora a maioria precisou arrumar folguistas para conseguir essa folga nostálgica. “Às cinco acordo para correr”. Não existia ressaca com características de dengue. Mas, quando tocava Legião Urbana, não cantávamos com tanta propriedade “o que eu mais queria era provar pra todo o mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”. Dou um sorrisinho cúmplice de mim mesma: “só que agora é diferente, sou tão tranquila e tão contente”.  “Vocês acham que posso ir com essa roupa?” Pode vir com a roupa que quiser, ninguém paga suas contas.    

Iuri assume o som. Vamos pedir o Rei? “Você não sabe nem nunca procurou saber...” A relação do Janot e Iuri é mais longeva do que todas as minhas que começaram ali.

“Que diabo de música é essa?” Inclino o corpo uns 30 graus, ombrinhos circulares em movimentos de dança pós Anitta.Eu já deitei no seu sorriso, só você não sabe, te chamei pro risco então fica à vontade.” Você conhece isso? Não está envelhecendo com dignidade, só saio daqui quando tocar Turma do Funil”.

Podemos dançar no palco do DJ? Acho que vão nos expulsar. Não tem nada escrito que é proibido. É bom senso, as pessoas apenas sabem. Tem regra escrita em banheiros sobre não subir no vaso sanitário. Eu nunca entendi que tantas pessoas subiam em vasos sanitários para precisar disso. “Já foi ao banheiro? Como está?” “Péssimo, todas as minhas memórias de sofrimento etílico ali”. “Nem vou então”.

Janot para a música e pega o microfone, “essa festa era para ter acontecido quando completou 20 anos em 2020”, agradece nossa presença, anuncia que tocará um clássico daquela pista. Um olhar se ilumina: “Turma do Funil?” Ele solta Chico. Ninguém tira ninguém para dançar mais? Faltam personagens nesse enredo, devem dormir às onze. As pessoas cantam com os braços para cima. ‘Ofegante epidemia’ cai com outra conotação. Vencemos, e a de alegria que já aponta no horizonte me emociona. O meu olhar se ilumina, não evito silenciosamente comemorar que sobrevivemos. Talvez eu faça isso para sempre. Ai, que vida boa, olerê, ai, que vida boa, olará... Amanhã dormimos às cinco.

6.1.23

Que o encontro das águas

De manhã o rio enche e venta pouco, a água fica lisinha, o mangue afogado. À tarde, desce. As prainhas aparecem, o caiaque encalha. Dá para atravessar remando e caminhar pela areia meio lodo, ver os siris se esconderem e retornarem sincronizadamente assustados com os nossos passos. Ou só conscientes mesmo, um “se esconde aí” sem nenhum sobressalto, sabem que daqui a pouco a gente passa.

Uliana contou que a ilha do outro lado pertence a um sheik. Nossas hipóteses passearam por um líder espiritual libanês que promove sacrifícios em uma seita ou só um brasileiro-árabe metido em falcatruas mesmo, de certeza só o gosto duvidoso por pintar de vermelho os sete bangalôs e um portal que parecia forca ou guilhotina. “Ele não é como nós, é ó...”, e fez o gesto de nariz para cima. “Nunca aparece por aqui”.

Aqui é a cidade que tem uma rua e meia. A casa da Gil é na meia rua que alagou. O rapaz do Odair disse que lá não tem nada para fazer, mas não deu tempo de comermos as cocadas da Lete. Atrás da placa da Lete, escondido dos salmos espalhados pelo perímetro da igreja evangélica, uma bruxa local anuncia jogos de cartas. “Jesus te ama mesmo assim”, diz uma das placas escritas à mão.

O apresentador famoso discorre sobre o livro que não leio na mesa ao lado, é muita coisa pra fazer, tem sempre um pôr do sol, um almoço que sai, alguém correndo. Um dia correu por horas porque a praia estava tão bonita que chegou em outra cidade. Uma correria. Comemos polvo. O apresentador volta no dia seguinte para comer mais brigadeiro de capim limão na casquinha de sorvete. Saímos sem concluir se a moça do brigadeiro é francesa, mineira ou esquece o sotaque vez em quando. Se é francesa, não é a que fica pelada tomando sol porque essa mora lá em cima e ela mora aqui embaixo, na casa com trailer e o cachorro  que vai nadar às dez da noite. O menino de cabelos compridos tenta convencê-lo a voltar, “tá se amostrando, Hulk?”. Hulk pára para um carinho, nem se abala. O menino também nem se esforça em pegar a coleira, deixa Hulk passear. Os poucos carros desviam dos buracos, as bicicletas desviam de nós, a lua está quase totalmente cheia. Amanhã o rio vai subir, talvez desse para ir a Araripe.

Carluxo disse que Araripe depende da maré. Tudo depende da maré, mas não aprendi a ler, só sei que é mais fácil remar na água lisinha onde não bate vento e que, se a correnteza nos levar no mergulho, ele acelera o barco para nos resgatar. Mas fomos sendo levados todos juntos, lentamente, o barco e nós. “Agora vou desligar o motor e vamos ouvir o rio”, ele falou. Mas a gente não para de falar.  “2 minutos!”, disse a Carla. Eles tem nomes quase iguais. E 3 minutos,  4... o barulho da mão na água porque não dá pé. Os papagaios não param de falar, passam em alvoroço e eu achei que fossem maritacas. A minha casa tem maritacas, mas não tem rio. Nem silêncio. Nem passarinho vermelho ou beija-flor que expulsa as outras aves da árvore com ninho. Não tem sapo que salta por cima da nossa cabeça, mas não tem a Maroca, tem especulação imobiliária e construções na minha praia não consigo respirar.

O José ficou tocando percussão na praia com a menina, Arlindo acha que ele está apaixonado. “Já ensinei tudo que podia, agora deixo escolher o caminho dele”. O outro filho é marinheiro da balsa.  Os alemães ficaram aqui a Copa toda e pegavam a balsa a cada jogo? Sim. Não sei se eles perdiam a balsa e tomavam cerveja, nem se foram a Belmonte. Será que comeram pastel na Dedé e entenderam a história da tilápia? Acho que não dançaram forró no paredão. Eles teriam adorado. Não sei como essa gente das letras do forró sofre tanto por amor. Dedé falou que a festa junina ali na praça é filé. Ou filé é o fim de tarde no Jequitinhonha? A família do Kevin tem uma companhia de artesãos em Belmonte, às margens do Jequitinhonha. Fazem vasos enormes que mandam até para o exterior, mas Kevin estava fora na auto escola.

Jequitinhonha é uma palavra boa como marola. Ah, marola? Boa como doce de maracujá lotado de leite condensado. Doce de limão, kiwi, mamão, morango. Espumante no mar. Vinho vindo na prancha em banco de areia. Tem banco de areia no meio do mar, pertinho de onde chegaram as caravelas. Foi por ali que rezaram a primeira missa. Eu perguntei onde tinha um terreiro, “lá em Belmonte”. Tem praia em Belmonte? Tem mas é perigosa. (Pensamos em milícia). As ondas são fortes. Ah, tá. Não fomos a Belmonte, tínhamos um rio e nosso rio estava clareando, subindo e descendo e encontrando o mar. Tinha uma criança no rio, acho que ela queria ser nossa amiga. Mas somos do Rio, não damos bom dia nem conhecemos as amigas do João. Maravilhosas. Eu daria bom dia e faria yoga no centro cultural onde os pataxós vendem artesanato e o bêbado esbraveja no makulele “quando ferir a mão não me chama”. Eu ri. O bêbado sentou, os turistas fizeram Stories num Iphone 12. A lua encheu, a maré também. Todo o medo foi embora.  

Co-memorar é criar memórias com alguém.

Feliz ano novo. Geraldo, beija a Lu.

9.12.22

Acreditar (eu não)

Pôôôô, Noel, eu acreditei! Nem digo “me convenci”, ouvi sim umas análises de entendidos confiantes, mas a verdade é que me deixei levar pela contagiante torcida coletiva que na abertura do Mundial se resumia a álbum de figurinhas e em noventa minutos daquele cronômetro confuso virou um país pintando rua e gritando na janela, essa esperança brasileira ufanista que brota a cada quatro anos como uma compensação por tudo ao redor. A gente joga bonito, faz dancinha sim, irlandês invejoso, vai se afogar num pint. Acreditei.

Penalti, Noel! Pe-na-li-da-de-máxima. Ouvi quase quinhentos minutos de Galvão, lacrimejei com jingle do Itaú. Quebrei a cara. E nem tenho para me proteger aquela estranha máscara que deixa os jogadores parecendo o Cat Noir. Achei que ganharíamos essa Copa.

“O Brasil tem elenco para montar três times nessa seleção”, ouvi. Era tanto elenco que escalaram um figurante para decisão por pênalti, alguém me mostra o teste desse Marquinhos? Até aquele chute na trave eu só o tinha visto dando um mata leão em um croata ao lado do juiz, mas admito: desconheço tanto os jogadores que ao ver um close em Alex Sandro sondei se alguém controlava quem entrava em campo. “Esse homem aí é do nosso time?” Os jogadores ficam correndo de um lado para o outro, duvido que um funcionário da FIFA fique contando quantos tem de cada lado o tempo todo. Se eu fosse técnica, infiltraria gente.

Levaram 26 esse ano, ou seja, mais os antigos que estavam no estádio tínhamos uns trinta craques no Qatar. E Neymar não bate pênalti? Imagina se o Ronaldo entrasse correndo, driblando e marcasse? Seria histórico. “Obvio que não pode”. Uai, matar gente em obra de estádio pode? Então pronto. Dava um alento quando a câmera focava no Ronaldo, Roberto Carlos, Rivaldo, Cafu, não dava? Eles ali torcendo, umas caras conhecidas, aquela segurança da nostalgia. Quer dizer, torcer TORCER mesmo eles não torciam muito, pareciam sempre um pouco entediados, mas com o calor que faz no deserto talvez eu só movesse meio lábio para comemorar gol também.

Aqui, sorri escancaradamente, Noel. Pulei, xinguei, acreditei. Imitei pombo. Aquele menino platinado fez duas ou três jogadas sensacionais e pronto, me ganhou. Não aprendi a escrever Richarlison ainda, mas na vida já aprendi  a escrever Whindersson então é só questão de tempo. Seria, em 120 não funcionou. Você acha que o Tite teve uma convulsão na noite anterior e saberemos a verdade daqui a uns anos, Noel? Não vem com empatiazinha não, me dispus a torcer, quero poder opinar. Mas antes disso Richarlisson me ganhou em um voleio. Eu nem sabia o que era voleio, tampouco quem era ele, mas sondei na hora se jogava mais à esquerda, à direita, centrão, como foi esse voto válido? Torcer era mais fácil antigamente, hein, Noel. Torcida aprovada, comprei camisa. Amarela com animal print. Sabe quanto me custou emocionalmente isso? Ainda por cima fico horrível de amarelo, customizei uns negócios para marcar bem a diferença política e torci.

Superei todos os traumas de 7X1 que emergem, fiz vista grossa para comportamentos inaceitáveis, preguei união e anistia ao jogadores, já nem bradava mais contra a censura da FIFA aos protestos e condições deslavadas da escolha do país-sede, ignorei tu-di-nho por essa estranha explosão de um grito de gol, essa catarse libertadora que talvez só o Carnaval traga igual, esse encantamento de saber admirar uma jogada de um atleta de ponta que mistura total domínio de bola e um balé lindíssimo. Aceitei arriscar me decepcionar de novo para viver essa emoção.

Foi tanta empolgação, Noel, que prometi que se ganhássemos as eleições e o hexa eu voltaria a acreditar até em você. Em um mesmo ano me dispus a acreditar de novo no Lula, no Brasil na Copa e em você. Para ter um mínimo de coerência eu teria que voltar a acreditar até no amor, né? Aí acontece o quê? Na trave. Pênaltis. Foi tudo em vão.

Estou escrevendo para você?

Droga.

Traz para mim no Natal essa máscara de Cat Noir.     

11.6.22

Odara

Tinha chovido muito em Salvador e o jardim exalava aquele perfume de plantas molhadas. Eu comia um pão de goiabada na varanda, sentada em frente ao Exu-guardião da casa, enquanto ouvia as histórias das viagens de Jorge e Zélia pelo mundo. A Casa do Rio Vermelho, agora transformada em museu, tinha sido a residência dos escritores por muitos anos, e as paredes guardam memórias de conversas entre eles e seus hóspedes que minha mente recriava como cenas de um filme ao ir passeando entre os sapos, os móveis, a cozinha colorida de azulejos, a máquina de escrever que Jorge Amado usava e seus manuscritos. 

Com o hábito de escrever em computadores, nunca mais saberemos por quantas correções e incertezas os autores passaram até chegar naquelas linhas finalmente apresentadas a nós.

Desculpem-me os donos da casa pela intromissão se tudo não era para estar tão exposto, mas me fez bem esse axé. Só segui o escrito na porta – “se for de paz, pode entrar”.


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Ainda no táxi liguei para confirmar se poderia mesmo visitá-los: “é só chegar”. As várias pessoas de branco deitadas nas sombras das árvores, em esteiras pelo salão, nos bancos, uma varria o quintal onde corriam galinhas, outra enxaguava as escadas, ninguém olhou para mim com estranhamento ou questionou o que eu fazia ali. Perguntei por Ana e fiquei esperando um tempo enorme, sem saber se aquilo era uma completa invasão. Mais tarde, Clara me diria: a primeira coisa que se aprende no candomblé é a esperar. Chegou uma vendedora de sorvete, um garoto carregando um jabuti, ouvi que era o dia das Águas de Oxalá e todos estavam desde a véspera em suas obrigações. Quando Ana finalmente apareceu, eu tinha ainda mais perguntas do que as já trazidas de casa.

- Queria que você me explicasse sobre a religião.

 - O que você quer saber?

- Tudo. O que os orixás fazem, se todo mundo é filho de alguém, por que jogam búzios, o que é Odo, Eparrê, Oyá, por que vocês estão de branco, o que são esses colares...

- Como você chegou aqui?

Essa resposta seria longuíssima, quase respondi “de avião” só para rirmos e não precisar me aprofundar. Então resumi:

- Me deu uma vontade.

Ana sorriu, disse “porque tinha que vir” e que eu ficasse ali até a noite porque Oxalá chegaria e eu poderia vê-lo. “Como ele vai chegar aqui?” pensei, mas também só sorri e entendi que ninguém me daria o curso “candomblé em trinta minutos”.

Por que tinha que ir, naquela noite fui parar no Gantois. Tem isso em Salvador – nem adianta muito se planejar, as coisas vão acontecendo. A Bahia tem um jeito...

Por sorte eu tinha levado roupas brancas suficientes para todos os eventos que foram surgindo, e eu aceitando. Tentava fazer o mínimo de perguntas possíveis para as pessoas – o que consistia em uma a cada minuto. Naquela noite seria anunciado o orixá regente do ano, estávamos no dia 3 de janeiro de 2020. Eu não entendia quase nada do que acontecia, e quando uma mulher trouxe lá de onde estava Mãe Carmem um papel e anunciou “Xangô” me apressei em checar as reações ao redor: “isso é bom, gente? Estaremos bem?”


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Fazia um calor de dois de fevereiro, descansávamos na escada da Fundação Casa de Jorge Amado, quando avistamos alguns Filhos de Gandhy.

- Vocês vão tocar?

- Vamos sim.

- Agora?

Ele olhou no relógio, Adauto, e fez uma cara de nenhuma convicção naquela agenda.

- Daqui a pouco. Vamos fazer o padé, depois saímos.

Os baianos do meu caminho falam coisas como se eu entendesse. Aceito e sigo.

- Querem entrar?

No botequim do Preto Velho vendia rapé contra enxaqueca, adereços, algo que se parecia com frango à passarinho, e a TV local transmitia a saída do presente-oferenda dos pescadores da Casa de Iemanjá para o mar no Rio Vermelho. Adauto nos deu água, um dos bens mais valiosos naqueles dias de geosmina, e outro homem veio em nossa direção com dois colares dos Filhos de Gandhy. “Um presente para vocês!”. O problema de se viver no Rio de Janeiro é que perdemos o hábito da gentileza, apenas não sabemos mais receber sem desconfiar. Participamos do padé – a cerimônia para Exu abrir os caminhos - ouvimos de Adauto histórias de como uma comédia indiana inspirou a criação do afoxé nos anos 40, vimos um senhorzinho dançar um miudinho ao redor da oferenda com uma graça que só no samba, tomamos muito banho de lavanda e, no final, quando perguntamos como retribuir de algum jeito, eles só responderam: “nada não”. Saímos atrás do bloco pelas ladeiras do Pelourinho seguindo três balaios de flores que seriam oferecidos à Rainha do Mar, com nossos colares no pescoço - símbolos do desejo de paz - e uma alegria que exalava mais do que a alfazema.

A música que tocara no táxi na saída do aeroporto já tinha me avisado: isso é pra te levar na fé.

 

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Quase dois anos depois pudemos voltar a sair de novo, e eu, a pessoa mais atrasada da história dos relógios, cheguei pontualmente cinco minutos depois da hora marcada para o ensaio. Novamente estava na casa de Caetano, agora no Rio e não em Santo Amaro, como se retomasse as coisas de onde parei - mas tendo feito muitas correções nos manuscritos. Tinha passado o dia estudando entrevistas recentes, o álbum novo, além de toda a bagagem acumulada de anos de exposição à obra daquele homem e seus parceiros, essas coisas que nos compõem sem nos darmos conta de que, sem esforço, passam a fazer parte de nós e soam como nós no que nos tornamos pelo efeito.

“Cheguei cedo?”, perguntei. “Não, não, os outros avisaram que vão se atrasar, Zeca está no estúdio, eu estava aqui tocando umas coisas, fica à vontade”. Estava ali, generoso e calmo como um sacerdote deve ser (bem longe da figura criada pela religião dos brancos europeus) o homem que escreveu que a tristeza é Senhora desde que o samba é samba. O homem que se dizia ateu, mas viu milagres - como eu. Miúdo, grisalho, com olhos tão vivos e atentos como de um jovem que tem pressa, mas sem pressa nenhuma.

Não sei identificar quais palavras ou gestos foram soltando meus ombros e amenizando a dor dos sisos extraídos dias antes, sei notar que em um momento, enquanto falávamos de reformas e a final da Libertadores que explodia lá fora, perguntei a ele qual tinha sido a conversa com Moreno que mudou sua espiritualidade. Com toda a leveza que distribui, ele respondia com palavras que eu identificava, mas logo escorregavam da minha compreensão como se dançassem pela sala em passos que eu não soubesse acompanhar e só admirasse - algo sobre termos consciência de si, o conhecimento do mundo, talvez nada assim. Então Zeca nos levou ao estúdio, sentou-se em frente ao teclado, desculpou-se pela voz cansada que não sustentaria o falsete e cantou “Todo Homem” sob os olhos do pai e do resto de nós.

E eu, que passei a vida entendendo perfeitamente os versos “pra mim nunca tá bom” antes mesmo até de Zeca os compor, finalmente entendi Gil: o melhor lugar do mundo é aqui e agora.

24.12.21

Cartão de Natal

 - Oi, tudo bem? Ainda não nos conhecemos, mas eu queria conversar sobre uma proposta. Pode falar?

- Oi, quem é?

- Mamãe Noel 😊.

- Terceira mensagem de golpe hoje, mas “Mamãe Noel” ainda não tinham inventado. De qualquer forma, não vou emprestar dinheiro.

- Não é golpe, posso provar: recebi sua carta de Natal. “Papai Noel, quero que não surjam novas variantes de coronavírus e que Fora Bolsonaro se realize”.

- Vocês usam Whatssapp aí? Por que me fazem mandar cartinhas há anos?

- Os Correios eram nosso patrocinador, acordo de exclusividade, mas fechamos com o Meta agora.

- Ainda bem que não foi TikTok, eu não faria dancinha com as mãos para ganhar presentes.

- Esse ano os pedidos já podem ser feitos por direct no Instagram.

- Tipo flerte.

- Isso, está em fase beta ainda porque estou avaliando o risco de nudes.

- Quem mandaria nudes para Papai Noel?

- Você não tem ideia!

- Achei que só sexualizassem você. Qual é a proposta, aconteceu alguma coisa com o Papai Noel?

- Me ouviu.

- Está tudo bem com vocês?

- A vida, altos e baixos, mas estamos em uma fase boa do casamento, sendo companheiros, até transando.

- Não estou preparada para sexo e Papai Noel na mesma frase.

- Preconceito com a vida sexual dos idosos?

- Desculpa. Vou ganhar meus presentes?

- Você sabe que não somos o gênio da lâmpada, né?  Não realizamos desejos, entregamos presentes. Pode pedir algo produzível?

- Carnaval pode ser?

- Algo que possamos fabricar aqui.

- Então os duendes fazem tudo aí mesmo?

- Que duendes fazem tudo? Você já viu homem fazer tudo?

- Eu nunca soube muito bem o que você fazia na história.

- Nunca soubemos o que tantas mulheres fizeram na História.

- Sim. Achei que você fosse uma vovó fofinha da propaganda.

- Às vezes sou, às vezes não. Por isso te procurei: tenho lido uns livros, conversado com pessoas e decidi assumir meu protagonismo, quero sair da sombra do Noel. Estou montando uma nova equipe, mais diversa, e quero convidar você para participar.  

- Uau! Mas o que eu faria? Não me vejo como elfo, não sei se tenho perfil para rena... E trabalhar na Lapônia...

- Eu mesma já não estou mais presencial todo o tempo, implementei trabalho remoto. Quero rever contratos com marca de refrigerante, montadora de trenó, nosso figurino, modelo de gestão, renegociar direitos de imagem para exigir igualdade de exposição e cachê, penso até em cancelar umas músicas. Só criticavam a distribuição desigual de presentes, isso é a ponta do iceberg! Para a estrutura ninguém queria olhar.

- Uhn, revolucionária! Vai ter gente te chamando de Mamãe Noel comunista e cimentando chaminé com medo de você entrar, hein.

- Estou preparada para os haters, há anos só existo em sex shop e Halloween ou fazendo biscoitos como figurante. Estou nos bastidores há anos, cada vez que a Simone canta “então é Natal e o que você fez” tenho vontade de gritar a lista de coisas. Até helicóptero para Papai Noel descer no Maracanã já pilotei! Se não sou eu a organizar tudo por aqui, Noel e os duendes ficavam vendo futebol sem saber quem pediu o quê.  

- Estou chocada. E dou todo o apoio. Mas, se não é para ser duende nem rena, para o que você precisa de mim?

- Para contar a minha história.

- Só isso?

- Isso é o que nós mulheres mais precisamos que aconteça.

- Combinado, começo hoje mesmo!

- Sabia que poderia contar com você, obrigada. Feliz Natal, muito amor e paz pra você.

- E pra-vo-cê!

31.10.21

Diário de uma pandemia – Vol XIV (Do retorno)

Dia 595

Não era meu aniversário, aquele grupo enorme de amigos na porta de casa não podia ser uma festa surpresa delivery.

- Que inesperado, vão entrando. Opa, sapatos não. Eita, dois beijinhos? Não era soquinho, super gêmeos?

- Trouxemos bebida, vou colocar na geladeira.

- Passa álcool, tem na pia, tem na mesa também, que surpresa, pessoal! Legal. Quer dizer, mais ou menos, não me lembro se antigamente aparecíamos assim na casa dos outros, bum, todo mundo junto! É o novo normal? Eu cancelei o jornal...

- Viemos conversar com você.

- Está tudo bem? Cadê meus pais?

- Estamos aqui. Essa é a questão: está ficando tudo bem. Lá fora.

- E, como seus melhores amigos, achamos que você precisa de ajuda na ressocialização então viemos te buscar para voltar ao mundo como antes.

- Entendi. É que “como antes” não vai ser possível, passou tempo, né? Nem enxergo mais as coisas como antes e não é modo de dizer, é vista cansada mesmo, cansadíssima. Aliás, eu não sei se não nos vemos há tanto tempo que alguns de vocês não estou reconhecendo. Esses homens aqui, a gente se conhece?

- Somos os seus futuros crushes.

- Nunca vi vocês na vida.

- Porque ainda não aparecemos nela, precisamos que você vá a lugares para isso. Não usa nem Tinder...

- Crush, querido, eu não uso nem Uber. Não pego táxi que não conheço, quiçá gente nessa situação.

- Por isso viemos, amiga. Você precisa começar a sair de casa.

- Agora que ela ficou super bem decorada? Internet com giga velocidade, sofá perfeito, esse sofá levou oito meses para chegar. Inclusive eu acho que vocês estão um pouco aglomerados nele, mantenham-se, por favor, a um metro e meio de distância, pelo menos de mim. Exceto esse futuro crush de camisa preta, que pode se aproximar com PCR negativo em mãos para agilizar, por favor. 

- Chegamos a 70% da população vacinada, deu certo! Os hospitais desativaram as UTIs de Covid!

- Achei que fôssemos cantar nas ruas, abraçados, quando isso acontecesse.

- Podemos cantar nas ruas, o Circo reabriu, vamos de novo nos encontrar do lado direito do palco, imagina!

- Essa parte do “imagina” é que... Tia, você está com uma máscara de pano?

- Sim! Tomei a terceira dose já. Ao ar livre fico até sem.

- Estou achando tudo um pouco intempestivo.

- Tem quase dois anos!

- Exatamente! E agora vamos alopradamente despir nossas bocas, espirrar livremente?  Imagina uma plateia lotada de gente sem máscara cantando, arremessando vírus em todas as direções, minhas duas narinas expostas como um aspirador robô catando tudo.

- Vamos começar indo a shows em espaços abertos.

- Com bandas que toquem mais baixo? Não sei se tem necessidade daquele volume do som tão alto. E não tenho mais condições de passar horas em pé, envelheci dezenove meses desde aquela Orquestra Imperial. Estou sentada em reunião todo esse tempo. 

- Então vamos à praia nesse fim de semana, você ia à praia até com chuva.

- Acho que não tem mais necessidade também, aquela falação, né? Uma falta de privacidade, era queijo coalho passando, frescobol, a maré subia, vinha criança embrulhada na arrebentação, posso seguir indo à cachoeira, é mais civilizado. Cada um espera a vez do outro para se molhar, não tem aquilo de co-existir banhado pelo mesmo líquido que traz resíduos sabe-se lá de qual origem. E ninguém leva caixinha bluetooth para a cachoeira.

- Esse é um bom argumento, vamos à cachoeira então, mas depois vamos almoçar fora. Comida direto da cozinha para a mesa, garçom ao invés de entregador, ver gente, dividir conta, saideira.

- Esse fim de semana não vou poder, estou pesquisando casas na serra para alugar.

- Mas agora todos estão voltando, acabou o home office.

- Olha aí, grande valor de negociação.

- Vamos ver o filme que estreou daquele diretor que você adora, está todo mundo comentando.

- Tenho acompanhado. E acompanhado também a curva de crescimento dos Imutáveis, adoecidos pelo vírus do “deixa tudo como era”, está aumentando. Eles são muito agressivos e parecem imunes ao que combinamos. Íamos "rever nossas posturas e valores"*, “o abraço vai ser mais verdadeiro, a conversa, mais sincera, o olhar, mais sensível, a vida, mais simples e solidária”**, lembra?

- Eles não são imunes, são apenas muito resistentes, mas nunca são assintomáticos então é fácil identificá-los e se proteger.

- Eles se isolam? Porque não criei novos protocolos para isso, não sei a distância segura, as pessoas que não testei, estão mesmo vivendo sem máscara lá fora?  No momento em que sairmos dessa casa é o mundo que nos engole. Acordaremos com a ânsia de aonde ir, como se ocupar, o que parecer, o que postar, uma roda viva de estímulos e atrações e voltaremos a viver como hamsters atrás da cenourinha de felicidade buscando lá fora o que só existe aqui dentro.

- De casa ou de nós? Se for de nós é mais fácil porque basta levarmos conosco.

- Tem sempre outro palco onde não estamos, outra festa para a qual não fomos convidados, são sempre ingressos esgotados, o novo restaurante que não conhecemos, a nova música que não ouvimos nem ninguém ouviu, só passaram por ela. Como passarão por mim, como passarei por eles sem nunca mais saber como realmente estão. E não daremos mais os abraços que queríamos tanto, daremos um tapinha nas costas e falaremos por cima sem atenção, ninguém nunca mais ficará mudo, mas ninguém vai mais se ouvir. E seremos contaminados com a mesma doença de antes.

- Estamos imunizados por uma experiência que jamais esqueceremos. Existem negacionistas, mas são como a minoria barulhenta.

- Será? Eu sou grupo de risco. Vão indo e me contem. Estou me guardando para quando o Carnaval chegar.

- Esperamos por você na Sapucaí então.

- Combinado. Enquanto isso, deixa o crush de camisa preta aqui. Aprendi a fazer risoto.


*Ialorixá Wanda d´Omolu, abr/2020 (link)

**Pastor Henrique Vieira, abr/2020 (link)

3.9.21

O som do silêncio

 - Já percebeu que o silêncio faz um barulho?

(silêncio)                 

- Se você conseguir ficar quieta posso perceber.

- Ouvir o silêncio é coisa de letra do Gil ou efeito de drogas, como ouvir cores.

- É sinestesia.

- O som do silêncio?

- Isso é título de filme mal traduzido. Ouvir cores é sinestesia.

- É LSD.

- Eu tomaria microdoses de LSD como experiência, existem estudos sobre os benefícios do uso de substâncias psicodélicas em tratamentos guiados por profissionais.

- Eu tomaria macrodoses de qualquer psicodélico no café da manhã se isso libertasse minha mente de 2020.

- Eu seguiria o Mestre dos Magos se ele prometesse isso.

- E se estivermos presos num mundo como o da Caverna do Dragão achando que é 2020, mas na verdade é um universo paralelo?

- Poderiam ao menos me dar a capa da invisibilidade da Sheila.

- A capa da invisibilidade é o “desligar vídeo” do Zoom.

- Ou fingir que a internet caiu.

- Não sei voltar a uma socialização presencial sem esses recursos, é como regredir na versão do aplicativo.

- O aplicativo que mostra coisas para fazer por perto indicou um alambique com visitas guiadas a dez quilômetros daqui.

- Dez quilômetros daqui não é meio longe? Já estou isolada no meio do mato.

- Meio longe é a Ásia, onde eu estaria agora se não precisasse ficar isolada porque comeram um primo de tatu.

- Você sabe que essas visitas guiadas no alambique não são como viagens guiadas de LSD, certo?

- Seria só para conhecer um lugar diferente, como se eu estivesse de férias.

- Você está de férias. Longe de casa! Malas! Reparou? Mas não sei se precisa beber cachaça às dez da manhã.

- Fazíamos isso às sete em fevereiro fantasiados no Centro, por que não pode em setembro mascarada no mato?

- Pelo mesmo motivo que só comemos rabanadas no Natal e ovos de chocolate na Páscoa. E é outro conceito de máscara, um bem sem graça.

- No novo normal eu vou comer rabanadas em maio. Quando ele começa mesmo?

- Não vai configurar alcoolismo ir em um alambique de manhã?

- Acho que configura pandemia. Estou há dias cercada de jacus e livros, vou incentivar a produção local.

- Temo que ao beber cachaça no sol meu corpo pense que é Carnaval e se decepcione quando ninguém mais dançar.

- Não existem muito mais jacus atualmente? Não lembro de jacus na infância, a serra tinha só maria sem vergonha, bodinhos, charretes e hortênsias. Pelo meu controle, o número de jacus disparou.

- Como os micos nas cidades.

- Deve ser desequilíbrio ecológico. São espécies invasoras.

- Nós somos as espécies invasoras.

- E agora vou invadir um alambique às dez da manhã de uma quarta-feira. Vão me deixar entrar por compaixão.

- Se fossem vinhedos na Toscana ninguém questionaria, seria chique e normal.

- Se esse alambique fosse um vinhedo de Montalcino aquela ponte de madeira sobre o brejo seria Giverny.

- Se eu tirar uma foto dela e olhar sem óculos vira uma obra do Monet, tudo borrado mas até que bonito.

- Porém essa ponte está cheia de cocô de jacu.

- Posso catar e vender para amantes de café.

- Quem toma café de cocô de jacu?

- Quem na Ásia tomaria café de cocô de luwak.

- É estranho que beber cocô seja chique e normal.

- As pessoas fazem coisas estranhas e ninguém questiona.

 

 

- Dona Bruna, estamos indo, mas se precisar de alguma coisa é só chamar na recepção, tá?

- Obrigada, Jamile.

- Está tudo bem?

- Sim, tudo ótimo.

- A senhora costuma viajar muito sozinha?

- Pois é, o tempo todo. Sorte que eu escrevo, assim ninguém questiona.

22.8.21

Buda is the new black

Na chegada recebi uma sacola para colocar tudo o que eles achavam que eu não precisaria lá. Chaves, carteira, documento... meu celular? Senti no peito a separação. Minhas barrinhas de cereal? “Fome é um hábito”. No meu caso é desnutrição, mas era o primeiro contato com todos ali, cedi. Os remédios não dá, sou dependente de Neosaldina. “Você vai aprender a superar a dor”. Inclusive a de cabeça? Uau. A partir daquele momento não poderíamos mais falar. Eu já odiava acampamentos na infância, por que estava me metendo em um retiro de meditação com quarto coletivo e banheiro para 35 mulheres? Que inveja de quem é feliz só comendo chocolate. (Volte duas casas no Nobre Caminho.)

Nossa rotina consistia em acordar às quatro horas para a primeira meditação e seguir o dia alternando sessões guiadas e palestras gravadas que traziam os ensinamentos de Goenka, um simpático industrial aposentado, líder da comunidade indiana em Mianmar que tornou-se professor da técnica e a difundiu pelo mundo. Ele me ensinaria “a arte de viver”. Para isso eu precisava começar aprendendo a respirar.

Uma instrutora nos acompanhava no salão de meditação, mas só falava conosco nas consultas pessoais. A sala anexa guardava o maior estoque de almofadas já visto, e ao longo do tempo fui entendendo que tudo aquilo seria usado para construirmos ninhos que gerassem mais conforto e aliviassem as dores nas partes do corpo não acostumadas a sentar por horas e horas no chão. Ou seja, todas as partes do meu corpo.

No final do segundo dia a instrutora chamou uma a uma para saber sobre nossa evolução. Ela conversava em voz baixíssima para não atrapalhar a concentração das demais, mas minha mente achou mais legal tentar captar os diálogos. Apesar das orientações de não prestar atenção nos outros nem nos compararmos, meus pensamentos pareciam micos pulando no cérebro e notavam tudo o que todo mundo fazia. Eu seria tão reprovada que talvez fosse proibida de um dia pisar na Índia.

- Olá, Stephania. Já sente alguma sensação ao respirar?

- Contração e expansão, uma sensação suave.

- Naline?

- Sinto um calor.

- Larissa?

- Uma luz branca.

(Luz branca não é sensação, Larissa. E se você tivesse visto Shrek saberia que é a morte, não vá ao encontro dela.)

Essa não foi a instrutora falando, foi minha imaginação, a instrutora só fez cara de plenitude e seguiu a checagem.

- Manuela?

- Sinto uma espécie de coceira no nariz.

(Alergia, eu te ofereceria um Alegra, mas confiscaram meus remédios.)

- Carolina?

- Uma sonolência.

(Porque você está de pijama o dia todo!)

- Bruna?

- Não sinto nada.

Era a verdade. Pensei em dizer que as demais só podiam estar inventando, mas não queria levar mais uma nota baixa de mim mesma. Ela deu um sorrisinho iluminado e me tranquilizou:

- Tudo bem. Não fique ansiosa.

“É o que vim aprender, não está funcionando!”, mas só consenti.

À medida que as horas passavam, quase tudo ia me incomodando mais: o cheiro da sala, o quarto fechado, as toalhas molhadas, a água que não esquentava, o sabão em pasta para lavar os pratos. Até ali, eu nunca tinha sentido conforto nas árvores, na grama, no céu mesmo quando estava todo cinza, mas logo minha mente afugentava aquela paz e corria para inventar qualquer coisa que fizesse o tempo passar mais depressa, como se assim fôssemos chegar a algum lugar.

Apesar das ideias de revolta - não vou mais acordar com o sino, vou esconder comida para a tarde - eu seguia na prática. Não podia ser só crer no Buda e funcionar? Tão mais fácil. O frio aumentava, as pessoas iam acrescentando camadas de roupas coloridas e descombinadas: meias por fora das calças, gorros estampados, até que passaram a andar enroladas em mantas e... pronto, lá estava eu horrorosamente julgando tudo e planejando abrir uma loja da Uniqlo na porta para vender casacos Ultra Light Down. Quando me dava conta do quão errada estava no propósito, tinha a certeza de que Buda himself apareceria para me fuzilar com o olhar. Ele é Buda, Bruna, não faria isso. É você quem faz.

Mal sabia Buda que eu ainda pioraria. Como não podíamos falar, passei a inventar apelidos, personalidades e histórias para cada aluna, transformei todas em personagens para entreter meus intervalos. Minha dor de cabeça de fome era tão forte que fui autorizada a ganhar torrada extra com geléia à noite, e ao ver meu nome na bancada de alimentação especial senti tamanha alegria que dancei I Feel Good. Mentalmente, claro. E mentalmente também criei uma técnica que renovou meu vigor: passei a observar tudo como se aquilo estivesse sendo narrado pelo Porchat. Quem notasse meu sorriso concluiria: atingiu o nirvana. Eu me distanciava do Dhamma a passos de girafa com pressa.

Dias depois, parcialmente frustrada, mas totalmente decidida, procurei a instrutora e declarei que não podia mais ficar, eu tinha aguentado o máximo que podia naquele momento. Porchat e eu iríamos embora. Enquanto esperava a sacola com meus pertences desnecessários guardados, sentindo aversão àquele celular que me entregariam cheio de hiper-conexão, um aluno desistente me ofereceu carona e saímos de lá pela estrada libertados como Telma e Louise. Mentira. Voltamos nos apoiando no orgulho da auto-superação, loucos por um hamburger, tendo aprendido muito mais do que imaginávamos.

Dois anos depois explodiu uma pandemia no mundo. Passamos a viver isolados e conscientes de não saber como será o dia seguinte. Como eu aguentaria um mundo inteiro em completa angústia agora?  

Uma tarde, entre corrermos do balanço do parque para o escorrega para a gangorra, minha afilhada girava em um brinquedo que a fazia gargalhar e disse:

- Dinda, eu quero ficar aqui para sempre com você!

- Para sempre girando nesse brinquedo?

- Sim! – E ria mais ainda abrindo os braços no vento.

Queremos a descoberta que vai mudar nossa vida, o grande propósito, a missão que justificará nossa existência, o feito emoldurável, a paixão arrebatadora. Experimenta focar no manjericão da jardineira que cresceu sem pulgão, na cachoeira com muita água porque choveu essa semana, no cachorro tentando pegar todas as bolinhas de uma vez só, dança na sala. Essa FELICIDADE gigante perseguida é bem mais simples, tão simples que nem acreditamos que possa ser só isso, mas repara como te faz bem. É essa sensação aí o TUDO. Tudo é só isso. O resto é ansiedade fabricada, ilusão.