19.9.25

Essa bendita felicidade

Para escrever cordel são sextilhas e redondilhas mas o que eu sei fazer é prosear.

Que três homens reuniram poeta, fotógrafo e raparigas e assim eu fui parar lá – no sertão de Alagoas.

 

“Tudo certo com a minha reserva para a volta?

Olha, até então tá ok sim.”

Fiquei olhando para o homem na recepção do hotel. Ele sustentava um sorriso de frase completa que desmanchou meu universo corporativo sempre planejado. Estávamos no ‘hoje’, como saberíamos sobre o depois de depois de amanhã?

Às seis saímos na van.

 

23 mil pessoas moram em Pão de Açúcar e seus povoados ao redor - Palestina, Niterói, Japão. A disposição do mundo mudou, foi? Um Cristo acima de nós lembrava o de perto da minha casa e era só isso mesmo que se assemelhava ali. De resto era o tempo ficando cada vez mais calmo e pirão. Uma tacinha de vinho branco?

 

“O sertão é verde? É que no livro de Geografia...

Deixa o livro de Geografia. Jogue fora o de História também. Olhe: aquele ali na foto é Virgulino, o Lampião. Tá vendo Curisco? Dadá, Maria Bonita.

Lampião afinal é herói ou bandido?

Você afinal vai definir tudo ou viver?

Mas a Ilha do Ferro não é ilha.

É isolada, é ilha.

Pronto.”

 

Foi de barco que Carmem chegou na ilha no começo dos anos 80. Não foi o começo da Ilha do Ferro, foi o começo da história que a Carmem começou pra Ilha do Ferro.

Fazer curadoria é que nem se apaixonar? No meio de um mundaréu de gente alguém de repente olha no fundo do nosso olho e o que já estava ali sendo desenhado sem que ninguém percebesse grande valor... muda. O curador enxerga a possibilidade de uma tradução do mundo que está diante de todo mundo, mas só alguns captam. A representação dele em uma língua própria, grafia, traço, cor, talhar, o mundo visto e esculpido pelo olhar de quem faz dele mais bonito, mais confortável, um olhar atento.  

Foi Seu Fernando quem abriu caminho para um povoado de artesãos ao entalhar móveis com tanto carisma quanto talento. Foi ele quem abriu também o portal por onde passamos naquele rio? O realismo mágico de cadeiras com cabeça de pássaros e bailarinos em paredes me faz não poder garantir que tudo o que vou contar aconteceu, mas foi assim.

 

Das obras do Seu Fernando brotaram nas casinhas coloridas de platibandas uma corrente de artistas, como o Petronio. Dos seus ex-votos iniciais às atuais caveiras, ele hoje planeja abrir uma escola. E não vender sua terra. Na cozinha da casa, Celia achava que não sabia fazer queijo, ela ‘ajudava’ o marido na pescaria, limpava o peixe, olhava a transformação do leite, criava os garotos, um dia Petronio comprou uma vaca tão boa que era ordenha de manhã, de tarde, de noite e era tanto leite que empenou a Celia que já tinha descoberto que também era capaz de produzir queijo mas tira essa vaca daqui e não traz cabrito que cabrito parece filho de Satanás! Comemos queijo, tomamos café com rapadura, chá de gengibre e ervas e aprendemos a esculpir madeira, ou quase. Teve passarinho esculpido na aula com jeito de tamanduá, mas reforcei mesmo foi a lição de que temos que educar os meninos para mudar a vida das Célias enquanto ela faz a contabilidade do marido.  

 

Depois dos quarenta anos, sete filhos crescidos, muita brita quebrada e rua varrida foi que Dona Roxinha começou a desenhar. Desenhava nos cadernos, dali passou pra tudo - parede, porta, placa, pedaço de madeira, banco, tampas de vaso, pilão, um dia um homem bateu em sua porta e ela abriu. Ele perguntou se ela vendia os trabalhos, comprou todos. Seus quadros passaram a ocupar galerias. “Nesses quatro anos você já se acostumou com a fama?  Eu me acostumo com tudo”, ela respondeu, e voltou a negociar o que vende e o que não sai dali de jeito nenhum porque é de Binga, seu marido primo. Mas isso ela não sabia quando ele botou reparo nela cinquenta anos atrás. Todo mundo desenha nessa casa? Na casa do lado também, que ela comprou com a renda das obras.  Deixa a porta aberta então que os visitantes vão entrando, vão gostando, vão voltando, a gente vai crescendo. O Binga teve ciúme, diz que é coisa de quem sente amor. Ô, Dona Roxinha, se eu soubesse desenhar e escrever como a senhora pintava que o amor não faz dono não, a gente fica porque ama, que todo mundo que sinta medo peça também ao rio para levar embora o seu e assim possa amar em paz.

 

É tanta paz que parece que consigo tocar. Como é isso de tempo aqui, é outro? A gente pode se demorar, pode estar, a gente até vê! Tanta tecnologia no mundo e a inteligência que eu quero é saber enxergar e ouvir. ‘A tecnologia do sertanejo é a fé e a reza’.

Ouve só a música que vem da caixa de som na calçada do músico, toma conta da noite na cidade. Se estiver calor demais traz esse colchão pra rua e dorme aí mesmo que nessa rua não passa mais vaca do seu Jorge, lugar da vaca não é junto com turista e ele levou as dele pra Mata da Onça onde não tem onça mas pode vaca. Naquele dia seu Jorge nem saiu de carro porque eram tantos outros que podia estragar, bater, a esposa alertou. Diz que tinha mais uns três circulando então ele foi de moto.

Nós saímos de barco para a casa do Clemilton e Amilton. Clemilton, pinta uma janela para eu olhar vocês sempre que precisar? Pinta nela uma menina de frente para a vida. Quem pinta bonequinhos de lado é o irmão, Amilton, e escultura nem tem mais ali que tá tudo pelo mundo. Galinha tem, uma pro almoço que eu vi os meninos correndo atrás para matar. A minha galinha vem da prateleira do mercado. Minha tilápia também. Tem galinha pro almoço e tem renda Boa Noite, mas não sei por quanto tempo ainda porque as crianças não querem aprender mais, estão no celular. Nem a TV está mais em frente aos bancos de cimento embaixo da árvore que mata os insetos. Eu reparei porque estava ali olhando quando choveu. Aprendi que é bonito chover no sertão, disseram que floreia rapidinho. Aprendi a ficar feliz com a chuva que cai sem medo que tudo desabe.

 

Já foi mais água. Já teve mais peixe. A água levou meu brinco, mas o barqueiro Dão mergulhou e me devolveu. “Posso aceitar? Vai que é oferenda, o rio levou. A gente tem um combinado: o que eu trago no barco, levo de volta.” Eu não sei até agora quem entregou ou como foi que ele achou, só aceitei. Quem cuida dessa gente desse rio, aqui tem sereia? Tem lendas, crenças? Reza pra quem? Tem Jesus por toda parte. Mas quem sou eu pra saber se esse Jesus é igual ao que imagino? Nem sei se todo mundo vê o mesmo que eu.

Eu vi o arco íris, dois! Vi o PC cantar no alto dos cânions a saudade dos pais. Vi o velho barqueiro levar o leme da canoa de tolda com as cascas dos pés que o sol faz couraça na pele desses homens e eles adoram gritar num barco, mas o coração paneja igual a vela em vento fraco. Vi as mãozinhas da bordadeirinha subindo e descendo a linha numa bainha aberta e Miguel misturando todos os pontos para criar um traçado só seu e mostrar pra mãe que foi melhor do que ele fazer Direito. Vi São Francisco, vários, a fé materializada em imagens de santos depositados nas fendas da rocha. Mergulhei nele e nadei até sentir silêncio e a água caindo do céu me envolvendo inteira na fluidez doce da natureza da qual sou parte, minúscula diante daquelas paredes e gigante perante quem um dia supus ser.

 

Sabia que não existia água ali? Essa água que subiu mais de cem metros quando criaram a hidrelétrica e a represa. Onde o pai do Brian, que era pescador, caiu e foi salvo pela rede. A água que passa corrente pelas gaiolas de tilápia que a dona Vilma pescou e fez na brasa com macaxeira e um coquinho bom demais pra gente comer. Ela me ensinou que carinho nos espinhos do cacto produz som de água. Ensinou sobre os quarenta anos que viveu naquela terra que conquistou na luta, na reforma agrária, dormindo em lona, criando filho, pescando peixe, tentando descobrir quem tinha feito os desenhos nas rochas e como aquela pedra enorme parou enviesada ali equilibrada. São pinturas rupestres. Foi tanta história que passou ali. A gente passou pelo assentamento onde a menina segurava balões de festa, os garotos jogavam sinuca, o velho deitava no sofá, eu vi tudo pelas portas na janela da van que passava e o Ney cantava “Se essa rua fosse minha”. Eu não mandava ladrilhar, deixava tudo colorido. Como as flores que a Maria Helena ajeitou nas almofadas pra gente sentar lá em cima e cantar. Porque cantar parece com não morrer, é igual a não se esquecer que a vida é que tem razão. Quando a gente sente “uau” tende a cuidar e aprende a gostar de se deixar cuidar.

 

Daqui a uns dias é aniversário de 80 anos da Carmen. No Carnaval tem Marmotas na Ilha e bloco “Filhinhos da Mamãe” em Maceió. O Andre, filho da Carmen, e a Patrícia me ofereceram leite do Gererê no Bar Macumba e eu quis saber se gererê era fruta. “Gererê é o rapaz que mora aqui perto, quem tirou esse leite pra nós hoje”. Leite com nata igual ao da infância para tomar com o Café do Renato, comer com queijo da Célia ouvindo a música da Baby Consuelo do disco do Sitio do Pica Pau Amarelo. Era manhã em um mundo mágico. Para o aniversário da Carmem, sua esposa Cintia comprou um megafone e elas vão sair pelas ruas convidando toda a Ilha! Eu queria ver as Marmotas e comemorar com elas a Carmem porque ela e Cintia moram em uma casa verde e rosa com bandeira na cama e ímã na geladeira escrito “Toda mulher merece amar outra mulher”. Eram tantas mulheres comigo, tanto amor. O material do amor é a pessoa ou o que vemos em nós a partir dela? O tempo que vai passando no tempo dele e nos transformando em nós mesmas, mesmo naqueles poucos dias. Talvez com mais tempo não consigamos mais seguir um bloco de salto alto, talvez os hormônios caiam, o cabelo embranqueça, doenças apareçam, talvez a gente perca alguém, mas aí descobre que o material não é o que dá o valor. Em alvenaria, cimento queimado e maçanetas da loja de ferragem é tudo muito mais simples e lindo por estar ali inteiro pertencendo presente.

 

Edilene, desce desse pole dance e vem mergulhar comigo! Bota uma cadeira aqui ao lado da minha e venha ver Sergipe ali do outro lado do São Francisco, vem velejar! Vem visitar a Dani e a Valeria no São Chico e comer outro milho cozido no fogo de tijolo com suco de jenipapo naquele quintal. Ou quintéo. Vem olhar as diferenças pelo afeto e fugir gargalhando de uma invasão alienígena da CVC, os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas. Quando a realidade prescinde de qualquer alucinógeno por já ser tudo o que precisa de maravilhosa para alucinar, se entregue ao rio, Edilene, e deixe que ele transborde o que entender necessário e bonito em você. Também o desencaminharam e nem assim conseguiram tirar dele a força e os encantos existentes.

 

Eu não sou de despedida então digo até breve como os peruanos e com o sorriso comovido de quem admira o pôr do sol com calma por saber que ele volta pra gente no dia seguinte. No dia seguinte saberemos sentir de novo essa bendita felicidade. É só lembrar.


--- Para Thiago, Pablo, Ronaldo e, claro, Edilene. E para essas mulheres lindas que viveram comigo esses dias


Músicas: 

Enquanto Engoma a Calça,  Ednardo

Nhem nhem nhem

Meu Amorzim, PC Silva

Edilene

9.3.25

Acenda tudo o que for de acender

Na frisa você é obrigada a olhar para o céu quando passam os carros alegóricos, é bom para entender nosso tamanho debaixo daqueles Exus e Oxalás. ‘Passa esse defumador aqui mais perto, por favor’. 

“Vamos pra Sapucaí, seu João?” “Vou esse ano não, senhora, agora tem muita macumba no Carnaval, eu gostava antes, pra quê isso?”.

 

Tem erva pra defumar, carrego o meu patuá / Adorei as almas que conduzem meu caminho / É mojubá, marabô, invoque a Lua / Que o povo da encruza não vai me deixar sozinho  


Disse que era o primeiro ano dele no Carnaval. “Mas você é de onde?” “Aqui do Rio mesmo.” “E estava onde até hoje?” “Perto da Praça Onze, mas eu era da igreja. Se minha mãe souber que estou aqui cantando essas macumbas ela me mata.” “Você saiu da igreja e agora vem?” “Eu venho com ele, meu namorado. Porque ele é do Salgueiro”. O namorado sorriu para mim, ofereceu um pacote de Doritos, nós da arquibancada vendo o ensaio do Tuiuti e lá embaixo Markinhos, mestre de chocalho da escola, montado de salto alto à frente da bateria comandava “Quem Tem Medo de Xica Manicongo?”, a primeira travesti do Brasil.

 

Só não venha me julgar, ô-ô / Pela boca que eu beijo (...) E a fé que eu professar / Não venha me julgar / Eu conheço o meu desejo / Este dedo que acusa / Não vai me fazer parar

 

Sempre alguém chora. Eu choro cachoeiras e acho mesmo que o samba é para lavar então deixo chorar. A gente que chora no samba se entende, só se olha, oferece a mão, jamais diz ‘não chora’. Ontem era a Paola. A cada vez que ela batia o pé no chão da avenida parecia trovejar. Ela parava, chorava, voltava. A plateia respondia com palmas, gritos e celulares. “Três princesas turcas vieram pro Pará? Erundina?”

 

É força de caboclo, vodum e orixá / Meu povo faz a curva como faz na gira  / Chama Jarina, Herondina e Mariana / Grande Rio firma o samba no Tambor de Mina

 

O vestido devia pesar uns vinte quilos mais o adereço da cabeça e ela pequenininha desfilando devagarzinho. O rapaz do apoio a abanava com um leque que fazia seus cílios postiços enormes dourados voarem, ela se secava com um lenço e sorria, olhava pra gente, buscava fôlego, dava mais uns passinhos em direção à Apoteose. Talvez pelos nossos olhares encantados derramando admiração e respeito, uma diretora de Harmonia me puxou e disse “87 anos.” Dona Vilma Nascimento estreou aos 13 como porta-bandeira naquela Portela e se tornou baluarte, o “Cisne da Passarela”. E eu considerei não ir por gripe?

 

E foi assim (...) / Novos destinos no mesmo poema / E nos terreiros, perfume de patchouli / Acende a brasa do defumador / Pro mestre batucar a sua fé

 

“Não fazem mais sambas que duram, que samba que você canta depois que acaba o Carnaval?” Fala, Majeté a cada 15 dias ou quando necessário.  

 

Em 2019 a Mangueira compôs o argumento “a História que a história não conta”. Foi ali que me dei conta de que deveria estudar os enredos mais profundamente, que tudo aquilo que ia assimilando desde criança nas letras e alegorias eram a aula que minhas escolas particulares e ciclo social não passariam. Levei a vida sem entender que o chamado daquela batida que me puxava por dentro e jogava no tambor era o toque de uma bateria para um orixá. Quando cheguei no mundo me apresentaram Deus, santos, até Buda veio antes de Oxum, foi esse outro mundo que os trouxe. Aos poucos fui levando mais fevereiro para o resto dos dias, não mais me guardando para quando o Carnaval chegasse, Chico. Foi o Carnaval quem me ensinou que o país onde nasci tinha uma religião e uma cultura, outra História. E foi o Carnaval quem fez bater vida dentro de mim quando ela não pulsava mais, e eu não entendia.

 

Toca o adarrum / que meu orixá responde

 

Quando desço as escadas da estação Maracanã e vejo a bateria da Mangueira formada para o ensaio de rua. Quando me torno corda de um bloco qualquer só para estar o mais perto possível e me perder (“você sumiu! Estava sozinha?”). Quando os empurradores de carro alegórico fazem suas performances para o público em um riso solto no estrelato de uma rua. Liberto na senzala social / Malandro, arengueiro, marginal. Quando o puxador comanda “Agora é a hora, pé direito, muita sorte, arrepia”. Quando o cortejo passa por um túnel. Quando desce ladeira. Quando a cidade é tomada por gente fantasiada. Quando essa gente embarca na fantasia. Quando se rasga a fantasia. Quando se forma uma roda de gente ao redor de uma mesa cantando com os braços pra cima e pulando porque passou o VLT. Quando eu pulo a grade e vou atrás da escola sem que meus pés sequer encostem no chão. Quando entendo que é preciso pedir licença para entrar. Quando eu era uma criança vendo na TV da sala de madrugada o Cristo proibido de Joãosinho Trinta, equilibrando o medo das fotos em sépia dos meus antepassados nos quadros daquela casa enorme onde fazíamos bailes e um amor por uma festa que nasceu em mim e me aceitou. Quando preciso defender que não é tudo igual e entende quem quer.

 

De tudo que aprendi / O todo que reuni / Fez imbatível a força do meu axé


Não acaba na Quarta-feira.


Eu vou seguir sem esquecer nossa jornada, emocionada.      

25.12.24

Esse turu-turu-turu aqui dentro II (Um conto cardíaco de Natal)

 - Bruna, acorda!

- Quem é você? (olhos arregalados como o emoji)

- Sou o Elfo.

- Juro: isso nunca me aconteceu antes. Tenho tido problemas de memória - nos conhecemos? Já é Carnaval?

- Sou o elfo do Natal, vim com o Papai Noel.

- Me drogaram. Eu sou bradicárdica, não posso tomar MD!

- Viemos entregar seus presentes, mas Noel está se sentindo mal, algo no coração. Precisamos que você nos leve ao hospital.

- Vou chamar uma ambulância.

- Ele não quer ambulância, o trenó está aí fora.

- Aí fora na janela? Como não quer ambulância? Eu nunca dirigi renas, ele tem plano de saúde?

**************

 

- Vão examiná-lo, mas isso demora.

- Como faremos com o Natal? Já lidamos com crise de credibilidade, se entrarmos nas casas de dia imagina o caos.

- Vocês conseguem entregar os presentes sem ele?

- Natal sem Noel?

- Buchecha sem Claudinho? Não tenho expertise em entrar em casas pela chaminé principalmente em uma cidade sem chaminés. Vamos nos dividir, fico aqui.

- Você é um pouco mandona.

 - Achei que na elfolândia isso já estivesse superado. Você entende o propósito de mantermos o Natal? Revisão de planejamento? Divisão de tarefas?

- Estamos indo.

 

***************

- Já me sinto melhor, acho que foi a pressão do prazo, a expectativa de todos, um cansaço enorme. Não tenho mais vinte anos.

- Não sei que tipo de skincare o senhor faz nem quero ser etarista, mas me parece que já não tinha vinte anos lá em 1800.

- Antes eram só cartinhas, agora mandam email, DM, acredita que mandam até áudio?

- Espero que na ordem de prioridades esses fiquem por último.

- Devo amar a todos igualmente, todos cabem no meu coração. Quer dizer, 'todes'.

- Agora não estou acreditando em você.

- Nem eu. E o seu, posso olhar? Bate mesmo tão devagar.

Tem umas barricadas em volta, vou tirá-las.

- Não! Pode explodir, às vezes parece que não cabe em mim. Ou pode quebrar de novo, acontece à toa, é mal feito.

- Ele é tão grande, mas não parece indefeso. Tem bastante coisa dentro mas está até  bem organizado.

- Porque tem muitas mulheres, elas fazem isso.

- Elas que colocaram essas crianças na parte da Sabedoria? São seus filhos?

- O senhor não deveria saber?

- Esse que tudo vê é outro, eu tenho mais o que fazer.

- Eu poderia ter me comportado mal esse ano então? Não estava prestando atenção em mim?

- Querida, seja forte: ninguém está tanto assim, faz o que quiser.

- São minhas sobrinhas. Muitas irmãs, amigas, não tenho filhos.

- Mas seu coração está inteiro, não falta pedaço.

- Quem disse que faltaria?

- Tem umas pessoas no alto de um armário e parecem quebradas. É para mantê-las?

- Acho que tem conserto algum dia, deixa aí. Ocupam muito espaço?

- Não tanto quanto esses sacos de lixo aqui... tem umas verdades fora da validade, outras pessoas dentro! Credo, parecem péssimos.

- Putz, pode me ajudar a descartá-los? A toda hora me planejo para isso, acontece alguma coisa e não faço. Fico achando que vai ser como moda que volta, sabe? Aí vou querer e não terei.

- Livramento, isso é mais inútil do que guardar calça clochard. E, se me permite dizer, não combinam em nada com você mais, não tem moda que volte.

Tem centenas de monitores ligados aqui, uma barulheira.

- É minha central, monitoro tudo. Não viu Divertidamente?

- Aquilo era o cérebro. Ops...

- O que você fez?! Não pode desligá-los, vou perder o controle!

- Você está em uma emergência com Papai Noel, chegou com elfos, dirigiu renas, dizer que tem a ilusão de que domina a realidade e controla alguma coisa... Está difícil de acreditar em você.

- Sei como se sente.

- Olha como melhorou, ouve-se até um samba aqui dentro agora! Playlist excelente. Vamos dar uma volta, será que tem um bar aberto ainda?

- Você frequenta bares?

- Não acerto fazer em casa um bom Fitzgerald.   

- Vamos assim sem disfarce?

- Consertamos nossos corações, vamos como quisermos. Sem tralhas e funções inúteis talvez o seu passe até a disparar de novo.

- Não quero borboletas!

- Pede isso em uma cartinha para mim e penso.  Vamos ver se alguém acredita em nós.

23.6.24

Are we human?

Por alguma razão a afilhada estuda em uma escola alemã, fala frases que não entendo e por isso – a escola, não a linguagem - me convidou para vê-la dançar na Festa do Colono Alemão. “Nosso tema são os Irmãos Grimm, Dinda”. Encontrei-a com as amigas na coxia, todas vestidas com saias compridas de tule azul claro, ensaiando próximas aos meninos-príncipes. Que seguravam cavalos de pau. 

“É sério isso?”. A mãe da criança rapidamente aponta para meia arrastão por baixo da saia, um símbolo de transgressão que poderia evitar que a madrinha não-fada inflamasse ali uma revolta feminista anticolonial. “Toma esse salsichão, senta e aplaude”. Na abertura da dança, Rapunzel, Cinderela sem um tênis e Branca de Neve se encontram em um fim de... resenha (?), não sabem onde estão seus pares e decidem sair para comer uma pizza.

 

I was always there for you, oh, I was always on time and I gave you my all so now you call, I decline

 

Em um reino não tão distante dali, ex-princesas e ex-príncipes que saíram da escola uns 30 anos antes também dançavam numa festa. Elas dançavam, em roda. Eles fumavam charuto, um garçom oferecia tequila aos que ignoravam a voz interna sábia que dizia “você vai se arrepender desse shot em poucas horas”, ressaca depois dos quarenta tem sintomas de chicungunha. 'Lembra quando tomávamos Sol com uma rodela de limão? E fumávamos Goudan.'

“Três pessoas da nossa turma foram presas. Como presas, estelionato? Assalto em residência. Eu achava que cometeríamos crimes mais discretos.”

Aos sete anos um dos assaltantes cometeu chegar com um buquê de rosas vermelhas no meu aniversário no play, um pânico que carrego na memória por não saber de que forma arremessaria o garoto ou as flores pela janela. Incrível como tão nova eu tinha a capacidade de avaliar bem os homens que escolhia.

 

Heartbraker you´ve got the best of me, I should have known right from the start you were gonna break my heart.

 

Vai ficar tudo bem, princesa.

 

“Você não acha que a gente muda? Somos iguaizinhos. Acho que mudei um bocado nesse tempo. Você sempre foi a roteirista. Mas me tornei um pouco comunista. Não teria sobrevivido lá fora se não fosse assim”.

 

I still believe in your eyes. I just don't care what you've done in your life.

 

E como bons amigos de adolescência que se reencontram, combinamos de comprar o terreno de Itaipava em um sistema de cotas e construir nossa ecovila comunitária com espaço para pouso de aeronaves alienígenas. Alguns passaram a acreditar em ETs, outras passaram a acreditar.

 

How I wish

How I wish you were here?

 

As pessoas que não vemos morrer parece que sumiram e que ainda estão ali.

“Como você está? É difícil. Posso te dar um abraço? Demoramos para nos dar esse abraço, não é? Levou o tempo que precisava levar. Passamos a vida achando que nós éramos o perigo. Eu queria ser aquela mulher que ele via em mim, mas ela era uma ilusão, perfeita, levamos uma vida para se deixar ser o contrário. Levou o tempo que precisava levar.”

 

Aos primeiros acordes da nona de Beethoven a música se tornou um mash up de Macarena. Aquela que dançávamos com os braços em uma coreografia pre-Tik Tok, em roda, na night. A princesa de meia arrastão abriu um sorriso de alegria infantil que derreteu o coração da Dinda, as saias de tule passaram a se divertir jogando o corpo no mundo em movimentos ainda meio descoordenados. Os príncipes entraram depois.

 

And sometimes I get nervous when I see an open door

Close your eyes clear your heart

Cut the cord

22.3.24

Hear it on my window pane (Rain, I feel it)

A culpa da chuva é do Lollapalooza e ninguém tira isso da minha cabeça. “Mas, Bruna, são as águas de março fechando o verão desde os festivais da canção”. Não interessa, o Lollapalooza atrai situações extremas, foram anos de transmissão temendo sair para almoçar e voltar para encontrar a equipe toda dentro de uma van, público montadíssimo nos looks super cool atordoado sem saber o que fazer, shows cancelados, foi o Lollapalooza que causou o furdunço da chuva no Rio. Talvez eu não devesse escrever isso, posso parecer negacionista climática.

“Não sei se vejo o prefeito ou a Kate”, me diz um enclausurado. O governante está acampado em uma central de controle reportando hora a hora o volume de água que cai, rezando para que nenhuma desgraça aconteça e sua popularidade tenha o mesmo destino. A princesa britânica reapareceu depois das mais fantásticas teorias sobre seu sumiço, que incluíam até Caverna do Dragão e o Uni. Nada me distrai. A médica desmarca minha consulta, o músico desmarca a roda de samba, o professor cancela a aula até do dia seguinte, meu coração começa a palpitar em um deja vu que não parece bom. Eu presa nesse apartamento, me comunicando com outros na mesma situação por aí. Respondo três emails e checo o celular, duas mensagens e abro a geladeira, meia página de roteiro e dou uma volta pela casa. Esse dia não vai acabar logo. Visto minha super capa de chuva e vou ao mercado comprar entorpecentes.

Uma lata de Leite Moça, chocolate em pó, pãezinhos de queijo...

“O macarrão”.

“Oi?”

“E o atum. Não vai levar macarrão e atum?”

Era o atendente, bastante atento pelo visto.

“Na greve dos caminhoneiros você ficou sem gasolina, na crise da geosmina sem água mineral, começou a pandemia sem papel higiênico. Não aprendeu nada sobre fim do mundo?”

“Não como gluten”, respondi, pegando uma lata de atum ralado por puro constrangimento e pensando que ter amigas escritoras estava deixando minha vida muito exposta. “E não é o fim do mundo”, deveria ter dito, mas éramos os únicos no local em uma sexta-feira à tarde. A angústia só aumentava. Sigo para casa já planejando desinfetar todas as compras, gatilhos são estranhíssimos.

Uma cascata de água desaba do céu. O ex-Twitter-que-só-chamo-assim mostra imagens preocupantes de Petrópolis, de onde a madrinha que se recusou a sair nos acalma dizendo que estocou comida. Realmente não aprendi nada. Percebo que nem reunião marcaram, desde março de 2020 não passo um dia útil sem entrar no Teams.  Passaram trinta e oito minutos desde o mercado.

“Poderemos sair amanhã?”, debato virtualmente. “Um encontro com amigos do mesmo bairro depois de medirmos a profundidade das poças”, que tal? Os grupos começam a recomendar séries, filmes, livros, se alguém propuser uma festa online vou gritar na janela. Não, não farei nada na janela. “Vamos ficar transando”, uma fala. É excluída do grupo, já existia ansiedade demais no ar para alguém com reposição hormonal se manifestar.  Outra manda a recordação do Facebook (?) onde aparecemos de vestidos tomara que caia que não se chamam mais tomara que caia e bronzeadíssimas em um verão 14 anos atrás. Não sei se sinto mais falta de ter colágeno ou produzir melanina, e lembro dos verões passados alagados. Não dos alagamentos trágicos, das chuvas em que sorrimos. O Carnaval onde nos fantasiamos de Arca de Noé, um de cada bicho envoltos por uma boia inflável gigante – era tanto espaço no Boitatá que ficávamos assim dançando no temporal. O show da Madonna no Maracanã em que a cada vez que abríamos a boca para cantar engolíamos alguns litros d´agua, mas amamos. O show do Roberto Carlos no mesmo Maracanã, onde parecíamos camisinhas gigantes usando aquelas Capuchas, como era grande meu amor. Somos ecléticas musicalmente, e incansáveis: no último Rock in Rio assisti a Iza pelo pequeno espaço para meus olhos que restava de fora no casaco náutico que peguei do meu pai, cinco vezes meu tamanho, mas estava lá – Pesadão Pesadão dão. Assim como na Marina da Gloria para Los Hermanos, Marisa Monte. Caetano? Não, fui tão esperta nessa doce maravilha, me perdoa, Caetano. Não saia do meu lado, segure o meu pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixo, acho que a chuva ajuda a gente a se ver...

Nada. Peço que caia devagar.

5.11.23

Libertador

Ainda eram dez da manhã e eles já estavam lá, uns cinco ou seis em roda com suas camisas do time, cervejas na mão e aquele comportamento hetero masculino que transborda ao se reunirem – a surpreendente memória que sabe cada drible dos últimos 50 anos e o girar de cabeça a la Exorcista em direção à fêmea que passa com seu doce balanço a caminho... de casa mesmo, nesse caso. Os bares ainda nem tinham preparado mesas e cadeiras, os fogos de artificio já estouravam e o bairro ecoava cânticos da torcida tricolor, abrigando pelas esquinas torcedores e torcedoras em concentração.  Eu, que não coloco minha felicidade nas mãos de 1 homem, não colocaria nos pés de onze então planejava viver mais um sábado normal no balneário carioca.

Cerca de duzentos vôos trouxeram da Argentina torcedores do time rival. Me preocupei ao saber que quarenta porcento nem tinha ingresso, alguém monitoraria a volta deles? Achei que podiam estar fugindo de Milei e Massa e Boca ser só uma desculpa, não é possível que pessoas que vivam aquela hiperinflação gastem dinheiro assim. É possível, e eu nunca fugi daqui, vieram com Advincula e lotavam Copacabana em festa.

Podia ouvir meus passos ao caminhar na rua durante a partida, passava por amontoados de pessoas hipnotizadas em frente a TVs e quis me certificar de que assistiam mesmo a um jogo de futebol e não a notícias da guerra com aquela cara de apreensão. Vez ou outra emitiam gritos de “uuuuulll” – que corresponde a um gol perdido – até que a explosão do 1X0 foi sonoramente anunciada, seguida por 1X1, prorrogação e como nem garçons em restaurantes me atendiam, me rendi e liguei a TV. Um jogador simulava desmaio por um tapa na cara em uma atuação sofrível, outros batiam peito com peito estufados em discussões que sempre me deixam curiosa sobre qual língua usam, o técnico com uma duvidosa forma física para quem trabalha com esporte andava como uma fera enjaulada na beira do campo, 110 minutos de jogo e o juiz ia ampliando aquela tensão. A vantagem do streaming é que ele nos poupa a ansiedade, o delay na transmissão protege com os spoilers que vem das interjeições berradas pelos vizinhos muitos segundos antes de vermos o lance na tela.     

Fim de jogo no Maracanã, garanto que as únicas duas garrafas de cerveja da casa estão geladas para receber os combatentes que vem do estádio. Chegam eufóricos, com os olhos vermelhos. “Maconha?” Não, lágrimas. Pulam, me abraçam, contam que ligaram para o avô do caminho, “é o último campeonato dele”, choram mais. “Mas está doente?”, me espanto. “Não”. Ok.

Dias antes eu tinha recebido pedido de socorro de uma amiga querendo companhia para escapar de casa por algumas horas, “meu marido está péssimo”. Algo grave? “O Botafogo perdeu”. Eu mesma tinha deixado em outra casa um flamenguista que foi dos beijos aos monossílabos em 1 tempo mal jogado, saímos com a certeza de que eles se recuperariam até o meio da semana, quando viveriam tudo aquilo de novo por outro campeonato.

Rodadas depois, quando rubro-negros e botafoguenses já tinham urrado de alegria e esmagado os controles remotos de ódio diversas vezes em partidas diferentes, conversávamos sobre relacionamentos. Eu desaguava em lágrimas de dor e raiva jogando em cima de mim acusações de incapacidade, uma vontade de quebrar a casa, me autopunir pela suposta repetição de erros, uma fraqueza que fazia desaparecer as cores do mundo até então perfeitamente (des)harmônico e vibrante, ainda mais colorido pela vivência de um encontro. Tentando achar razão minimamente acolhedora para aquela falha terrível, solucei: “Por que escolhemos passar por isso?”. “Vai acontecer de novo”, ele respondeu, com a calma dos que estão lendo um manual de instruções. Para mim, era a força dos que praguejam contra quem queremos mal. Não era. Ele só sabia que todo ano tem Libertadores, Campeonato Brasileiro, Carioca, Taças e todo o carrossel de emoções que isso envolve - e a torcida está ali, transferindo para aqueles homens desconhecidos seus sentimentos mais intensos, tirando de si a responsabilidade exaustiva de lidar sozinha com eles. Como em toda paixão.

John Kennedy platinado mal acabara de fazer o gol histórico previsto pelo técnico e já diziam: em dezembro tem Mundial, boraaaaa.


(Em fevereiro tem Carnaval)

 

7.5.23

Apenas mais uma de amor

O Parque tem dois canos enormes que nos últimos tempos sofrem uma crise hídrica e não nos refrescam mais, um terceiro que parece que vai furar nossos crânios com a força da água, macacos eternamente famintos e muitos cachorros. Tem a Gabi, que conhecemos um dia descendo a mini-trilha dos canos, os vinte e um pugs que andam com o passeador e sempre nos fazem rir e os que vão surgindo a cada dia. Foi em um desses que conhecemos Simba.

Os dois cãezinhos subiam a ladeira com a metade das línguas para fora, caminhando com aquele rebolado de quem tem as patinhas curtas e sem pressa de chegar a nenhum lugar. O caramelo parecia um salsichinha avantajado, corpo comprido parrudo e aquela estatura rebaixada que os torna engraçados. “Acho que esse cachorro é lá do Horto”, notou J, “sempre o vejo solto por lá”. Ainda não sabíamos que se chamava Simba e que até aquela manhã estava por aí em um estado emocional tão ruim, se sentindo muito mal, quando cruzou o teu caminho e te mudou a direção o Outro.

O Outro era uma graça, preto, peludinho, pequenino e assustado quando chamávamos para dar carinho e água, oferta que ambos esnobaram, e entendemos que Simba estava mais interessado em seguir o companheiro do que se hidratar ou ganhar festinha na cabeça. “Espero que essa relação seja consensual”, pensamos ao vê-lo subir no amigo ali mesmo na frente de todos que esperavam por um café. Nenhuma intenção de esconder ou deixar subentendido. A diferença de tamanhos tornava o encaixe um pouco complicado, mas não quisemos ficar analisando. Mergulhamos na cafeína, eles na luxúria, vai, Simba, consideramos justa e invejável toda forma de amor. Inveja boa, que isso valha pra qualquer pessoa. Vamos nos permitir.

No dia seguinte, J soube pelas redes sociais que Simba tinha uma dona que pedia informação a quem quer que pudesse tê-lo visto. De tanto fugir, já dera meia volta ao mundo levitando de tesão, não tinha mais dedos nas patinhas para contar de quantas janelas se atirou e quanto rastro de incompreensão já deixou. Talvez Simba fosse o último cão romântico dos litorais desse oceano Atlantico. Sempre volta para casa, caminha pronta e rango na tigela, mas, dessa vez, estava demorando demais.

J quis mandar um direct para ajudar a Dona no reencontro. “Mas não sabemos como é a relação deles, vai que ela fica contrariada”, ponderei, “diz que ele estava perdido, sozinho, errando de bar em bar”. “Não tem bar no parque, ela não vai acreditar”. “Vai que Simba quis evitar os olhos do Outro, não pôde resistir e agora a Dona vai atrapalhar essa aventura? Vai que o Outro demonstrou tanto prazer de estar na companhia dele que experimentou uma sensação que até então não conhecia e você vai estragar por uma tolice de resgatá-lo?" Eu já via Simba como um flagelado da paixão, retirante do amor, desempregado do coração.

J mandou o direct, a dona resgatou Simba no parque, não soubemos mais do Outro. Fiquei imaginando Simba em uma casa agora gradeada, preso a uma coleira, sangrando pelo sonho de viver. Talvez seja eu a última romântica, a voz nunca rouca mas o coração na mão. Talvez falte eu acordar. Talvez tenha ido a shows demais do Lulu Santos desde o Metropolitan com Milton Guedes no sax. Talvez eu ache que a explicação para o vigor e animação daquele homem de 70 anos seja o amor por Clebson exposto publicamente em palcos e parques e queira isso para Simba e o Outro.

J demolirá toda certeza vã e dirá: Simba só quer transar. E se isso for algum defeito, por mim, tudo bem.

9.4.23

Teams

Tenho mania de apagar as luzes dos espaços vazios - das salas de reunião, da copa. É pelo tanto que meu pai reclamava “vocês acham que são sócios da Light?”. Não saio fazendo isso na casa dos outros, só na minha. Ajeito objetos também, a parede de troféus que vivem fora do lugar. O escritório era tão barulhento, agora fica um silêncio. Noite dessas, disse para uma pessoa que estava por lá: estou acostumada a ouvir meus próprios passos nessa sala.

 

“O que ter na mesa em tempos de demissão sumária” é o título de um dos capítulos do livro que peguei para reler essa semana. “Manual da Demissão”, de Julia Wahmann, fevereiro de 2018. Sempre digo a ela que esse livro deveria ter uma publicação contínua em fascículos ou atualizações anuais como faziam com o Almanaque Abril. Ela lista “lenços de papel, calendário de mesa, colírio lubrificante, carregador de celular” e mais 2 páginas de coisas onde conclui que “você precisa de apenas três itens sobre a mesa em tempos de demissão sumária: um maiô, uma droga e o telefone de um bom psiquiatra”. Meu impulso de atualizar a lista acabou em um pensamento: não temos mais mesa no escritório.

 

“Quer que eu pegue suas coisas no armário para não precisar voltar aqui?”, escrevi, segundos depois de ter mandado outra mensagem perguntando se ele não preferia ir de Uber para casa, eu poderia levar o carro mais tarde. Na minha cabeça giratória, o homem estaria vagando pelas ruas ao redor da empresa atravessando entre os carros que buzinavam, desorientado como nos filmes. Mas essa era eu, mentalmente. Ele estava calmo. “Estou na moto, parei para te atender”. Eu já tinha roubado o momento dele de cair em prantos quando agi assim ao saber o que tinha acontecido, agora o impedia de cumprir reflexivamente seu caminho para casa. “Fica calma”. “Desculpa, era eu quem deveria dizer essa frase ao ouvir sua notícia”. A notícia era “acabei de ser demitido”.

 

Como achávamos que voltaríamos poucas semanas depois, levamos conosco somente o essencial para seguir trabalhando. Era março de 2020, deixamos nas mesas canetas, grampeadores, clipes, post its, papéis impressos, bolinhas anti-stress, calendários, porta-trecos cheios de trecos, bonequinhos, souvenirs que os colegas traziam das férias, fotos que insistíamos em prender nas baias mesmo contrariando as regras do ‘open space’. Nossa tralha ali configurava “nosso lugar”. “Nosso lugar” era onde passávamos enorme parte da nossa vida, e nossa vida era apegadíssima. Quando o prédio ficou pronto, já tínhamos escolhido os lugares na sala nova: pessoas da mesma equipe sentariam próximas, tínhamos que ficar perto para funcionar. Era tão perto que participávamos de qualquer conversa que o outro tivesse, de questões dos filhos no telefone a assuntos de trabalho mesmo. A nova sala não podia ter gaveta, seríamos modernos e modernidade eram os armarinhos. Em inglês, lockers. E acabava ali a era de computador nas mesas, ganhamos notebooks. Não podia deixar nada nas mesas, teria blitz da tralha! “Ao ir embora, guardem seus notes nos lockers”. Na primeira semana teve gente indo na Tok Stok comprar gaveteiros clandestinos, até cabideiro alguém adaptou na decoração. A iluminação também teve uma leve alteração, na calada de uma noite mudaram uma lâmpada por outra mais potente,  ninguém pode trabalhar direito à meia luz. Na refrigeração também mexemos um pouquinho, uma rápida construção de canaleta plástica para o vento do ar condicionado não nos matar de rinite. E vivíamos assim, arrastando tina de gelo pela sala em noite de festa não-autorizada, o general da Segurança que lutasse depois para nos punir. Já tínhamos sido um pouco multados anos antes por formar um bloco de Carnaval, nada muito grave aconteceria que não valesse a pena.

 

Em uma versão filme de terror do lema “the show must go on”, guardei o celular, ele seguiria o caminho para casa e eu para as reuniões. Um pouco de água no rosto, um sorriso e, voilá, o piloto do novo programa despertava boas risadas, tínhamos em mãos um potencial sucesso de audiência! De views. O que for, um bom produto. A perspectiva animadora da criação coexistia no meu corpo com outra parte de mim que soluçava ainda. A gente tinha tempo de chorar quando escritórios tinham gavetas? Quando eram tão perto as telas dos nossos computadores que eu o via pagando o IPVA e não precisava saber o calendário do Detran, desvendar os sites para os pagamentos, ele mandava cada link, as datas e “toma aí, Maria, paga teus boletos” (nem para pagar meus boletos, hein?). Quando, entre pizzas e Doritos em noites geladas no controle de transmissão, comentamos que passávamos mais horas uns com os outros do que com as nossas famílias.

 

Um tal de novo normal se anunciava no planeta e um dia avisaram que teríamos que buscar nossas caixas no escritório. Não se previa um retorno, recolheram tudo o que deixamos lá e guardaram em papelão. Foi como abrir uma cápsula do tempo, com a estranheza de que não haviam se passado tantos anos assim, mas nada daquilo servia mais: a tinta das canetas tinha secado, as informações dos papéis expirado, não imprimíamos mais nada para precisar de clipes e Lumicolors, não havia suporte para as recordações porque não teríamos mais lugar fixo na volta. Bastariam fones e copos para beber água nos lockers sem nossas tralhas.

 

O que não deixamos nas mesas nem guardamos nas caixas, nos lockers ou salvamos nos notes é o intangível: o que aprendemos, as piadas internas, o saber a quem recorrer, a segurança de contar com a experiência e o talento que se somam nas horas mais arriscadas, o apoio, a complementariedade, a confiança, o saber antecipar o que o outro vai achar, o “vai por mim e depois me fala”, o “liga quando puder que quero saber sua opinião”, o sorriso ao se encontrar no mundo ainda não reajeitado para os tais novos tempos que parecem sempre tão transitórios. Porque eles são. O estável somos nós, constituídos pelas nossas tralhas de histórias, e amor.

 

5.2.23

De manhã eu voltei pra casa

Aumentaram a pista! Como não tinham pensado nisso antes? “Mesmo assim acho que não está cabendo”. “Claro que está cabendo, conseguimos até ver o chão”. Essa moça está me empurrando, vou adotar minha técnica antiga de dançar com os cotovelos abertos. “Olhaaa! Você também veio!” Ah, abraço, legal, uhn, está um pouco quente, suor, não tão legal. “O quêêê?” Conversar ao lado da caixa de som não vai dar, talvez tivéssemos mais audição quando vínhamos aqui. Não, acho que tínhamos mais prática e mais álcool.

Vou no bar. Ir ao bar sempre foi a primeira ação ao chegarmos em uma boite. Onde compra ficha? Não é parque de diversões, é boite, você tem uma cartela de consumação. O barman vai marcar nesse papel? Que vintage! Depois paga na saída. Putz, era aquela fila, né? Não enxergamos mais o cardápio, é muita desonra sacar óculos da bolsa para pedir bebida. Não precisa ler cardápio, pede cerveja. Melhor beber algo com mais água na composição, agora me preocupo com hidratação. O caixa era aqui, “eu pagava em cheque!”, como escrevíamos em cheques com cem doses de cachaça no corpo? Daí que inventaram o pagamento por aproximação.

Estamos de volta com Janot na Brazooka! Ele solta Tenha Dó, as pessoas pulam. “Seu joelho também é o que dificulta a vida na pista?”. Coloca um salto para dançar depois de 3 anos e falamos sobre dificuldades na pista. O que traz tanto cansaço é nosso corpo dez anos mais velho ou um acúmulo de coisas na nossa cabeça? “Acho que não vou durar muito, durmo às onze, já é uma da manhã”. Era normal nos encontrarmos todos ali: “Matriz?”, pulava a mensagem toda sexta-feira. “Matriz”. À meia noite chegávamos, às cinco partíamos. Agora a maioria precisou arrumar folguistas para conseguir essa folga nostálgica. “Às cinco acordo para correr”. Não existia ressaca com características de dengue. Mas, quando tocava Legião Urbana, não cantávamos com tanta propriedade “o que eu mais queria era provar pra todo o mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”. Dou um sorrisinho cúmplice de mim mesma: “só que agora é diferente, sou tão tranquila e tão contente”.  “Vocês acham que posso ir com essa roupa?” Pode vir com a roupa que quiser, ninguém paga suas contas.    

Iuri assume o som. Vamos pedir o Rei? “Você não sabe nem nunca procurou saber...” A relação do Janot e Iuri é mais longeva do que todas as minhas que começaram ali.

“Que diabo de música é essa?” Inclino o corpo uns 30 graus, ombrinhos circulares em movimentos de dança pós Anitta.Eu já deitei no seu sorriso, só você não sabe, te chamei pro risco então fica à vontade.” Você conhece isso? Não está envelhecendo com dignidade, só saio daqui quando tocar Turma do Funil”.

Podemos dançar no palco do DJ? Acho que vão nos expulsar. Não tem nada escrito que é proibido. É bom senso, as pessoas apenas sabem. Tem regra escrita em banheiros sobre não subir no vaso sanitário. Eu nunca entendi que tantas pessoas subiam em vasos sanitários para precisar disso. “Já foi ao banheiro? Como está?” “Péssimo, todas as minhas memórias de sofrimento etílico ali”. “Nem vou então”.

Janot para a música e pega o microfone, “essa festa era para ter acontecido quando completou 20 anos em 2020”, agradece nossa presença, anuncia que tocará um clássico daquela pista. Um olhar se ilumina: “Turma do Funil?” Ele solta Chico. Ninguém tira ninguém para dançar mais? Faltam personagens nesse enredo, devem dormir às onze. As pessoas cantam com os braços para cima. ‘Ofegante epidemia’ cai com outra conotação. Vencemos, e a de alegria que já aponta no horizonte me emociona. O meu olhar se ilumina, não evito silenciosamente comemorar que sobrevivemos. Talvez eu faça isso para sempre. Ai, que vida boa, olerê, ai, que vida boa, olará... Amanhã dormimos às cinco.

6.1.23

Que o encontro das águas

De manhã o rio enche e venta pouco, a água fica lisinha, o mangue afogado. À tarde, desce. As prainhas aparecem, o caiaque encalha. Dá para atravessar remando e caminhar pela areia meio lodo, ver os siris se esconderem e retornarem sincronizadamente assustados com os nossos passos. Ou só conscientes mesmo, um “se esconde aí” sem nenhum sobressalto, sabem que daqui a pouco a gente passa.

Uliana contou que a ilha do outro lado pertence a um sheik. Nossas hipóteses passearam por um líder espiritual libanês que promove sacrifícios em uma seita ou só um brasileiro-árabe metido em falcatruas mesmo, de certeza só o gosto duvidoso por pintar de vermelho os sete bangalôs e um portal que parecia forca ou guilhotina. “Ele não é como nós, é ó...”, e fez o gesto de nariz para cima. “Nunca aparece por aqui”.

Aqui é a cidade que tem uma rua e meia. A casa da Gil é na meia rua que alagou. O rapaz do Odair disse que lá não tem nada para fazer, mas não deu tempo de comermos as cocadas da Lete. Atrás da placa da Lete, escondido dos salmos espalhados pelo perímetro da igreja evangélica, uma bruxa local anuncia jogos de cartas. “Jesus te ama mesmo assim”, diz uma das placas escritas à mão.

O apresentador famoso discorre sobre o livro que não leio na mesa ao lado, é muita coisa pra fazer, tem sempre um pôr do sol, um almoço que sai, alguém correndo. Um dia correu por horas porque a praia estava tão bonita que chegou em outra cidade. Uma correria. Comemos polvo. O apresentador volta no dia seguinte para comer mais brigadeiro de capim limão na casquinha de sorvete. Saímos sem concluir se a moça do brigadeiro é francesa, mineira ou esquece o sotaque vez em quando. Se é francesa, não é a que fica pelada tomando sol porque essa mora lá em cima e ela mora aqui embaixo, na casa com trailer e o cachorro  que vai nadar às dez da noite. O menino de cabelos compridos tenta convencê-lo a voltar, “tá se amostrando, Hulk?”. Hulk pára para um carinho, nem se abala. O menino também nem se esforça em pegar a coleira, deixa Hulk passear. Os poucos carros desviam dos buracos, as bicicletas desviam de nós, a lua está quase totalmente cheia. Amanhã o rio vai subir, talvez desse para ir a Araripe.

Carluxo disse que Araripe depende da maré. Tudo depende da maré, mas não aprendi a ler, só sei que é mais fácil remar na água lisinha onde não bate vento e que, se a correnteza nos levar no mergulho, ele acelera o barco para nos resgatar. Mas fomos sendo levados todos juntos, lentamente, o barco e nós. “Agora vou desligar o motor e vamos ouvir o rio”, ele falou. Mas a gente não para de falar.  “2 minutos!”, disse a Carla. Eles tem nomes quase iguais. E 3 minutos,  4... o barulho da mão na água porque não dá pé. Os papagaios não param de falar, passam em alvoroço e eu achei que fossem maritacas. A minha casa tem maritacas, mas não tem rio. Nem silêncio. Nem passarinho vermelho ou beija-flor que expulsa as outras aves da árvore com ninho. Não tem sapo que salta por cima da nossa cabeça, mas não tem a Maroca, tem especulação imobiliária e construções na minha praia não consigo respirar.

O José ficou tocando percussão na praia com a menina, Arlindo acha que ele está apaixonado. “Já ensinei tudo que podia, agora deixo escolher o caminho dele”. O outro filho é marinheiro da balsa.  Os alemães ficaram aqui a Copa toda e pegavam a balsa a cada jogo? Sim. Não sei se eles perdiam a balsa e tomavam cerveja, nem se foram a Belmonte. Será que comeram pastel na Dedé e entenderam a história da tilápia? Acho que não dançaram forró no paredão. Eles teriam adorado. Não sei como essa gente das letras do forró sofre tanto por amor. Dedé falou que a festa junina ali na praça é filé. Ou filé é o fim de tarde no Jequitinhonha? A família do Kevin tem uma companhia de artesãos em Belmonte, às margens do Jequitinhonha. Fazem vasos enormes que mandam até para o exterior, mas Kevin estava fora na auto escola.

Jequitinhonha é uma palavra boa como marola. Ah, marola? Boa como doce de maracujá lotado de leite condensado. Doce de limão, kiwi, mamão, morango. Espumante no mar. Vinho vindo na prancha em banco de areia. Tem banco de areia no meio do mar, pertinho de onde chegaram as caravelas. Foi por ali que rezaram a primeira missa. Eu perguntei onde tinha um terreiro, “lá em Belmonte”. Tem praia em Belmonte? Tem mas é perigosa. (Pensamos em milícia). As ondas são fortes. Ah, tá. Não fomos a Belmonte, tínhamos um rio e nosso rio estava clareando, subindo e descendo e encontrando o mar. Tinha uma criança no rio, acho que ela queria ser nossa amiga. Mas somos do Rio, não damos bom dia nem conhecemos as amigas do João. Maravilhosas. Eu daria bom dia e faria yoga no centro cultural onde os pataxós vendem artesanato e o bêbado esbraveja no makulele “quando ferir a mão não me chama”. Eu ri. O bêbado sentou, os turistas fizeram Stories num Iphone 12. A lua encheu, a maré também. Todo o medo foi embora.  

Co-memorar é criar memórias com alguém.

Feliz ano novo. Geraldo, beija a Lu.

9.12.22

Acreditar (eu não)

Pôôôô, Noel, eu acreditei! Nem digo “me convenci”, ouvi sim umas análises de entendidos confiantes, mas a verdade é que me deixei levar pela contagiante torcida coletiva que na abertura do Mundial se resumia a álbum de figurinhas e em noventa minutos daquele cronômetro confuso virou um país pintando rua e gritando na janela, essa esperança brasileira ufanista que brota a cada quatro anos como uma compensação por tudo ao redor. A gente joga bonito, faz dancinha sim, irlandês invejoso, vai se afogar num pint. Acreditei.

Penalti, Noel! Pe-na-li-da-de-máxima. Ouvi quase quinhentos minutos de Galvão, lacrimejei com jingle do Itaú. Quebrei a cara. E nem tenho para me proteger aquela estranha máscara que deixa os jogadores parecendo o Cat Noir. Achei que ganharíamos essa Copa.

“O Brasil tem elenco para montar três times nessa seleção”, ouvi. Era tanto elenco que escalaram um figurante para decisão por pênalti, alguém me mostra o teste desse Marquinhos? Até aquele chute na trave eu só o tinha visto dando um mata leão em um croata ao lado do juiz, mas admito: desconheço tanto os jogadores que ao ver um close em Alex Sandro sondei se alguém controlava quem entrava em campo. “Esse homem aí é do nosso time?” Os jogadores ficam correndo de um lado para o outro, duvido que um funcionário da FIFA fique contando quantos tem de cada lado o tempo todo. Se eu fosse técnica, infiltraria gente.

Levaram 26 esse ano, ou seja, mais os antigos que estavam no estádio tínhamos uns trinta craques no Qatar. E Neymar não bate pênalti? Imagina se o Ronaldo entrasse correndo, driblando e marcasse? Seria histórico. “Obvio que não pode”. Uai, matar gente em obra de estádio pode? Então pronto. Dava um alento quando a câmera focava no Ronaldo, Roberto Carlos, Rivaldo, Cafu, não dava? Eles ali torcendo, umas caras conhecidas, aquela segurança da nostalgia. Quer dizer, torcer TORCER mesmo eles não torciam muito, pareciam sempre um pouco entediados, mas com o calor que faz no deserto talvez eu só movesse meio lábio para comemorar gol também.

Aqui, sorri escancaradamente, Noel. Pulei, xinguei, acreditei. Imitei pombo. Aquele menino platinado fez duas ou três jogadas sensacionais e pronto, me ganhou. Não aprendi a escrever Richarlison ainda, mas na vida já aprendi  a escrever Whindersson então é só questão de tempo. Seria, em 120 não funcionou. Você acha que o Tite teve uma convulsão na noite anterior e saberemos a verdade daqui a uns anos, Noel? Não vem com empatiazinha não, me dispus a torcer, quero poder opinar. Mas antes disso Richarlisson me ganhou em um voleio. Eu nem sabia o que era voleio, tampouco quem era ele, mas sondei na hora se jogava mais à esquerda, à direita, centrão, como foi esse voto válido? Torcer era mais fácil antigamente, hein, Noel. Torcida aprovada, comprei camisa. Amarela com animal print. Sabe quanto me custou emocionalmente isso? Ainda por cima fico horrível de amarelo, customizei uns negócios para marcar bem a diferença política e torci.

Superei todos os traumas de 7X1 que emergem, fiz vista grossa para comportamentos inaceitáveis, preguei união e anistia ao jogadores, já nem bradava mais contra a censura da FIFA aos protestos e condições deslavadas da escolha do país-sede, ignorei tu-di-nho por essa estranha explosão de um grito de gol, essa catarse libertadora que talvez só o Carnaval traga igual, esse encantamento de saber admirar uma jogada de um atleta de ponta que mistura total domínio de bola e um balé lindíssimo. Aceitei arriscar me decepcionar de novo para viver essa emoção.

Foi tanta empolgação, Noel, que prometi que se ganhássemos as eleições e o hexa eu voltaria a acreditar até em você. Em um mesmo ano me dispus a acreditar de novo no Lula, no Brasil na Copa e em você. Para ter um mínimo de coerência eu teria que voltar a acreditar até no amor, né? Aí acontece o quê? Na trave. Pênaltis. Foi tudo em vão.

Estou escrevendo para você?

Droga.

Traz para mim no Natal essa máscara de Cat Noir.     

11.6.22

Odara

Tinha chovido muito em Salvador e o jardim exalava aquele perfume de plantas molhadas. Eu comia um pão de goiabada na varanda, sentada em frente ao Exu-guardião da casa, enquanto ouvia as histórias das viagens de Jorge e Zélia pelo mundo. A Casa do Rio Vermelho, agora transformada em museu, tinha sido a residência dos escritores por muitos anos, e as paredes guardam memórias de conversas entre eles e seus hóspedes que minha mente recriava como cenas de um filme ao ir passeando entre os sapos, os móveis, a cozinha colorida de azulejos, a máquina de escrever que Jorge Amado usava e seus manuscritos. 

Com o hábito de escrever em computadores, nunca mais saberemos por quantas correções e incertezas os autores passaram até chegar naquelas linhas finalmente apresentadas a nós.

Desculpem-me os donos da casa pela intromissão se tudo não era para estar tão exposto, mas me fez bem esse axé. Só segui o escrito na porta – “se for de paz, pode entrar”.


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Ainda no táxi liguei para confirmar se poderia mesmo visitá-los: “é só chegar”. As várias pessoas de branco deitadas nas sombras das árvores, em esteiras pelo salão, nos bancos, uma varria o quintal onde corriam galinhas, outra enxaguava as escadas, ninguém olhou para mim com estranhamento ou questionou o que eu fazia ali. Perguntei por Ana e fiquei esperando um tempo enorme, sem saber se aquilo era uma completa invasão. Mais tarde, Clara me diria: a primeira coisa que se aprende no candomblé é a esperar. Chegou uma vendedora de sorvete, um garoto carregando um jabuti, ouvi que era o dia das Águas de Oxalá e todos estavam desde a véspera em suas obrigações. Quando Ana finalmente apareceu, eu tinha ainda mais perguntas do que as já trazidas de casa.

- Queria que você me explicasse sobre a religião.

 - O que você quer saber?

- Tudo. O que os orixás fazem, se todo mundo é filho de alguém, por que jogam búzios, o que é Odo, Eparrê, Oyá, por que vocês estão de branco, o que são esses colares...

- Como você chegou aqui?

Essa resposta seria longuíssima, quase respondi “de avião” só para rirmos e não precisar me aprofundar. Então resumi:

- Me deu uma vontade.

Ana sorriu, disse “porque tinha que vir” e que eu ficasse ali até a noite porque Oxalá chegaria e eu poderia vê-lo. “Como ele vai chegar aqui?” pensei, mas também só sorri e entendi que ninguém me daria o curso “candomblé em trinta minutos”.

Por que tinha que ir, naquela noite fui parar no Gantois. Tem isso em Salvador – nem adianta muito se planejar, as coisas vão acontecendo. A Bahia tem um jeito...

Por sorte eu tinha levado roupas brancas suficientes para todos os eventos que foram surgindo, e eu aceitando. Tentava fazer o mínimo de perguntas possíveis para as pessoas – o que consistia em uma a cada minuto. Naquela noite seria anunciado o orixá regente do ano, estávamos no dia 3 de janeiro de 2020. Eu não entendia quase nada do que acontecia, e quando uma mulher trouxe lá de onde estava Mãe Carmem um papel e anunciou “Xangô” me apressei em checar as reações ao redor: “isso é bom, gente? Estaremos bem?”


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Fazia um calor de dois de fevereiro, descansávamos na escada da Fundação Casa de Jorge Amado, quando avistamos alguns Filhos de Gandhy.

- Vocês vão tocar?

- Vamos sim.

- Agora?

Ele olhou no relógio, Adauto, e fez uma cara de nenhuma convicção naquela agenda.

- Daqui a pouco. Vamos fazer o padé, depois saímos.

Os baianos do meu caminho falam coisas como se eu entendesse. Aceito e sigo.

- Querem entrar?

No botequim do Preto Velho vendia rapé contra enxaqueca, adereços, algo que se parecia com frango à passarinho, e a TV local transmitia a saída do presente-oferenda dos pescadores da Casa de Iemanjá para o mar no Rio Vermelho. Adauto nos deu água, um dos bens mais valiosos naqueles dias de geosmina, e outro homem veio em nossa direção com dois colares dos Filhos de Gandhy. “Um presente para vocês!”. O problema de se viver no Rio de Janeiro é que perdemos o hábito da gentileza, apenas não sabemos mais receber sem desconfiar. Participamos do padé – a cerimônia para Exu abrir os caminhos - ouvimos de Adauto histórias de como uma comédia indiana inspirou a criação do afoxé nos anos 40, vimos um senhorzinho dançar um miudinho ao redor da oferenda com uma graça que só no samba, tomamos muito banho de lavanda e, no final, quando perguntamos como retribuir de algum jeito, eles só responderam: “nada não”. Saímos atrás do bloco pelas ladeiras do Pelourinho seguindo três balaios de flores que seriam oferecidos à Rainha do Mar, com nossos colares no pescoço - símbolos do desejo de paz - e uma alegria que exalava mais do que a alfazema.

A música que tocara no táxi na saída do aeroporto já tinha me avisado: isso é pra te levar na fé.

 

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Quase dois anos depois pudemos voltar a sair de novo, e eu, a pessoa mais atrasada da história dos relógios, cheguei pontualmente cinco minutos depois da hora marcada para o ensaio. Novamente estava na casa de Caetano, agora no Rio e não em Santo Amaro, como se retomasse as coisas de onde parei - mas tendo feito muitas correções nos manuscritos. Tinha passado o dia estudando entrevistas recentes, o álbum novo, além de toda a bagagem acumulada de anos de exposição à obra daquele homem e seus parceiros, essas coisas que nos compõem sem nos darmos conta de que, sem esforço, passam a fazer parte de nós e soam como nós no que nos tornamos pelo efeito.

“Cheguei cedo?”, perguntei. “Não, não, os outros avisaram que vão se atrasar, Zeca está no estúdio, eu estava aqui tocando umas coisas, fica à vontade”. Estava ali, generoso e calmo como um sacerdote deve ser (bem longe da figura criada pela religião dos brancos europeus) o homem que escreveu que a tristeza é Senhora desde que o samba é samba. O homem que se dizia ateu, mas viu milagres - como eu. Miúdo, grisalho, com olhos tão vivos e atentos como de um jovem que tem pressa, mas sem pressa nenhuma.

Não sei identificar quais palavras ou gestos foram soltando meus ombros e amenizando a dor dos sisos extraídos dias antes, sei notar que em um momento, enquanto falávamos de reformas e a final da Libertadores que explodia lá fora, perguntei a ele qual tinha sido a conversa com Moreno que mudou sua espiritualidade. Com toda a leveza que distribui, ele respondia com palavras que eu identificava, mas logo escorregavam da minha compreensão como se dançassem pela sala em passos que eu não soubesse acompanhar e só admirasse - algo sobre termos consciência de si, o conhecimento do mundo, talvez nada assim. Então Zeca nos levou ao estúdio, sentou-se em frente ao teclado, desculpou-se pela voz cansada que não sustentaria o falsete e cantou “Todo Homem” sob os olhos do pai e do resto de nós.

E eu, que passei a vida entendendo perfeitamente os versos “pra mim nunca tá bom” antes mesmo até de Zeca os compor, finalmente entendi Gil: o melhor lugar do mundo é aqui e agora.