27.9.11

Expostos

Então eu prometo todos os dias guardar uma coisa aqui
Pra não perder o registro de mim
Pra não perder vocês.

                                             (Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.)

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por

admirá-la (…).

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por

ela, isto é, velar por ela (…).

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro

Do que um pássaro sem vôos.

Antonio Cicero, via Omar Salomão

11.9.11

A história de uma gata

Foi quando ele parou com a notícia de que a gata havia sido envenenada que percebi que dentro desse peito, mesmo quase calado, ainda bate um coração. Meus pais são péssimos transmissores de notícias ruins: para minha mãe estamos sempre na iminência de um desastre, e meu pai não roda a vinheta do plantão extraordinário, simplesmente sai falando em um tom mais grave que o normal. Foi desse jeito que ele soltou uma das típicas frases que antecedem bombas: “você já ficou sabendo o que aconteceu?” Caso os telejornais abrissem as noticias diárias com esse prefácio o número de ataques cardíacos subiria vertiginosamente.


Recomposta e informada - a gata tinha sido encontrada por um condômino na porta do prédio e estava internada - o caso agora era exterminar o veneno da rua. Eu logo desconfiei que os vizinhos da frente pudessem ter atentado contra a vida do bicho: moram em uma casa horrenda, furavam os pneus de quem estacionava perto e ocuparam a calçada com latas de tinta cimentadas e ferros dentro. A suspeita durou pouco porque logo soube que eles tinham se mudado, o porteiro então apostou nos operários da obra, e como teríamos que esperar o começo da semana para os acusados voltarem ao trabalho só me restava torcer pela recuperação da gata e elaborar argumentos que convencessem os salvadores do felino a não colocá-la para adoção.

A gata vivia na rua. Reza a lenda que ela não se dava bem com a outra criada pelos seus donos, uma preta, e ninguém sabe se foi expulsa ou preferiu sair, fato é que não insistiu no conflito e refez a vida no asfalto com o apoio dos moradores ao redor. Aos poucos um comprou cobertor, outro potes de ração, a gata preta-vilã conquistou os donos-paspalhos-manipuláveis e ela todos nós, inclusive os historicamente adoradores de cachorros e nossos animais. Esse era outro golpe no coração: como eu explicaria sua ausência ao meu cachorro?

O cão é o típico cão, espaçoso, extrovertido, estabanado, repetidamente esnobado pela gata e sua enorme ingratidão. Como uma montanha de pelos de língua de fora ele me arrasta pela calçada procurando por ela como se ao encontrá-la fossem correr, rolar juntos, e ela jamais nem sequer se moveu um centímetro em direção a ele, fica sempre imóvel em um ponto acima do chão como se precisasse reafirmar a superioridade, no máximo insinua um olhar de canto para em seguida, languidamente, virar o pescoço no sentido oposto. Não soubesse eu como esse jogo provoca imensa dor acharia graça da sedução no mundo animal.

Foi repassando a vida da gata atrás de fatos que legitimassem minha defesa da permanência dela na rua que precisei admitir que a principal razão para impedir a adoção por estranhos seria a minha tristeza por não mais encontrá-la, como se ao nos vermos fossemos nos abraçar, cantar pelos becos, nos momentos difíceis nos apoiar... E não era só o que me faltava? Então me empenho em um trabalho árduo de desapego, esforço de sete-vidas-em-uma para domar meu coração cachorro e não viver escrava de sentimentos incontroláveis e sou fisgada por uma vira-lata no meio da rua. Eu mesmo mentindo vou é argumentar que nós gatos já nascemos livres.