24.12.21

Cartão de Natal

 - Oi, tudo bem? Ainda não nos conhecemos, mas eu queria conversar sobre uma proposta. Pode falar?

- Oi, quem é?

- Mamãe Noel 😊.

- Terceira mensagem de golpe hoje, mas “Mamãe Noel” ainda não tinham inventado. De qualquer forma, não vou emprestar dinheiro.

- Não é golpe, posso provar: recebi sua carta de Natal. “Papai Noel, quero que não surjam novas variantes de coronavírus e que Fora Bolsonaro se realize”.

- Vocês usam Whatssapp aí? Por que me fazem mandar cartinhas há anos?

- Os Correios eram nosso patrocinador, acordo de exclusividade, mas fechamos com o Meta agora.

- Ainda bem que não foi TikTok, eu não faria dancinha com as mãos para ganhar presentes.

- Esse ano os pedidos já podem ser feitos por direct no Instagram.

- Tipo flerte.

- Isso, está em fase beta ainda porque estou avaliando o risco de nudes.

- Quem mandaria nudes para Papai Noel?

- Você não tem ideia!

- Achei que só sexualizassem você. Qual é a proposta, aconteceu alguma coisa com o Papai Noel?

- Me ouviu.

- Está tudo bem com vocês?

- A vida, altos e baixos, mas estamos em uma fase boa do casamento, sendo companheiros, até transando.

- Não estou preparada para sexo e Papai Noel na mesma frase.

- Preconceito com a vida sexual dos idosos?

- Desculpa. Vou ganhar meus presentes?

- Você sabe que não somos o gênio da lâmpada, né?  Não realizamos desejos, entregamos presentes. Pode pedir algo produzível?

- Carnaval pode ser?

- Algo que possamos fabricar aqui.

- Então os duendes fazem tudo aí mesmo?

- Que duendes fazem tudo? Você já viu homem fazer tudo?

- Eu nunca soube muito bem o que você fazia na história.

- Nunca soubemos o que tantas mulheres fizeram na História.

- Sim. Achei que você fosse uma vovó fofinha da propaganda.

- Às vezes sou, às vezes não. Por isso te procurei: tenho lido uns livros, conversado com pessoas e decidi assumir meu protagonismo, quero sair da sombra do Noel. Estou montando uma nova equipe, mais diversa, e quero convidar você para participar.  

- Uau! Mas o que eu faria? Não me vejo como elfo, não sei se tenho perfil para rena... E trabalhar na Lapônia...

- Eu mesma já não estou mais presencial todo o tempo, implementei trabalho remoto. Quero rever contratos com marca de refrigerante, montadora de trenó, nosso figurino, modelo de gestão, renegociar direitos de imagem para exigir igualdade de exposição e cachê, penso até em cancelar umas músicas. Só criticavam a distribuição desigual de presentes, isso é a ponta do iceberg! Para a estrutura ninguém queria olhar.

- Uhn, revolucionária! Vai ter gente te chamando de Mamãe Noel comunista e cimentando chaminé com medo de você entrar, hein.

- Estou preparada para os haters, há anos só existo em sex shop e Halloween ou fazendo biscoitos como figurante. Estou nos bastidores há anos, cada vez que a Simone canta “então é Natal e o que você fez” tenho vontade de gritar a lista de coisas. Até helicóptero para Papai Noel descer no Maracanã já pilotei! Se não sou eu a organizar tudo por aqui, Noel e os duendes ficavam vendo futebol sem saber quem pediu o quê.  

- Estou chocada. E dou todo o apoio. Mas, se não é para ser duende nem rena, para o que você precisa de mim?

- Para contar a minha história.

- Só isso?

- Isso é o que nós mulheres mais precisamos que aconteça.

- Combinado, começo hoje mesmo!

- Sabia que poderia contar com você, obrigada. Feliz Natal, muito amor e paz pra você.

- E pra-vo-cê!

31.10.21

Diário de uma pandemia – Vol XIV (Do retorno)

Dia 595

Não era meu aniversário, aquele grupo enorme de amigos na porta de casa não podia ser uma festa surpresa delivery.

- Que inesperado, vão entrando. Opa, sapatos não. Eita, dois beijinhos? Não era soquinho, super gêmeos?

- Trouxemos bebida, vou colocar na geladeira.

- Passa álcool, tem na pia, tem na mesa também, que surpresa, pessoal! Legal. Quer dizer, mais ou menos, não me lembro se antigamente aparecíamos assim na casa dos outros, bum, todo mundo junto! É o novo normal? Eu cancelei o jornal...

- Viemos conversar com você.

- Está tudo bem? Cadê meus pais?

- Estamos aqui. Essa é a questão: está ficando tudo bem. Lá fora.

- E, como seus melhores amigos, achamos que você precisa de ajuda na ressocialização então viemos te buscar para voltar ao mundo como antes.

- Entendi. É que “como antes” não vai ser possível, passou tempo, né? Nem enxergo mais as coisas como antes e não é modo de dizer, é vista cansada mesmo, cansadíssima. Aliás, eu não sei se não nos vemos há tanto tempo que alguns de vocês não estou reconhecendo. Esses homens aqui, a gente se conhece?

- Somos os seus futuros crushes.

- Nunca vi vocês na vida.

- Porque ainda não aparecemos nela, precisamos que você vá a lugares para isso. Não usa nem Tinder...

- Crush, querido, eu não uso nem Uber. Não pego táxi que não conheço, quiçá gente nessa situação.

- Por isso viemos, amiga. Você precisa começar a sair de casa.

- Agora que ela ficou super bem decorada? Internet com giga velocidade, sofá perfeito, esse sofá levou oito meses para chegar. Inclusive eu acho que vocês estão um pouco aglomerados nele, mantenham-se, por favor, a um metro e meio de distância, pelo menos de mim. Exceto esse futuro crush de camisa preta, que pode se aproximar com PCR negativo em mãos para agilizar, por favor. 

- Chegamos a 70% da população vacinada, deu certo! Os hospitais desativaram as UTIs de Covid!

- Achei que fôssemos cantar nas ruas, abraçados, quando isso acontecesse.

- Podemos cantar nas ruas, o Circo reabriu, vamos de novo nos encontrar do lado direito do palco, imagina!

- Essa parte do “imagina” é que... Tia, você está com uma máscara de pano?

- Sim! Tomei a terceira dose já. Ao ar livre fico até sem.

- Estou achando tudo um pouco intempestivo.

- Tem quase dois anos!

- Exatamente! E agora vamos alopradamente despir nossas bocas, espirrar livremente?  Imagina uma plateia lotada de gente sem máscara cantando, arremessando vírus em todas as direções, minhas duas narinas expostas como um aspirador robô catando tudo.

- Vamos começar indo a shows em espaços abertos.

- Com bandas que toquem mais baixo? Não sei se tem necessidade daquele volume do som tão alto. E não tenho mais condições de passar horas em pé, envelheci dezenove meses desde aquela Orquestra Imperial. Estou sentada em reunião todo esse tempo. 

- Então vamos à praia nesse fim de semana, você ia à praia até com chuva.

- Acho que não tem mais necessidade também, aquela falação, né? Uma falta de privacidade, era queijo coalho passando, frescobol, a maré subia, vinha criança embrulhada na arrebentação, posso seguir indo à cachoeira, é mais civilizado. Cada um espera a vez do outro para se molhar, não tem aquilo de co-existir banhado pelo mesmo líquido que traz resíduos sabe-se lá de qual origem. E ninguém leva caixinha bluetooth para a cachoeira.

- Esse é um bom argumento, vamos à cachoeira então, mas depois vamos almoçar fora. Comida direto da cozinha para a mesa, garçom ao invés de entregador, ver gente, dividir conta, saideira.

- Esse fim de semana não vou poder, estou pesquisando casas na serra para alugar.

- Mas agora todos estão voltando, acabou o home office.

- Olha aí, grande valor de negociação.

- Vamos ver o filme que estreou daquele diretor que você adora, está todo mundo comentando.

- Tenho acompanhado. E acompanhado também a curva de crescimento dos Imutáveis, adoecidos pelo vírus do “deixa tudo como era”, está aumentando. Eles são muito agressivos e parecem imunes ao que combinamos. Íamos "rever nossas posturas e valores"*, “o abraço vai ser mais verdadeiro, a conversa, mais sincera, o olhar, mais sensível, a vida, mais simples e solidária”**, lembra?

- Eles não são imunes, são apenas muito resistentes, mas nunca são assintomáticos então é fácil identificá-los e se proteger.

- Eles se isolam? Porque não criei novos protocolos para isso, não sei a distância segura, as pessoas que não testei, estão mesmo vivendo sem máscara lá fora?  No momento em que sairmos dessa casa é o mundo que nos engole. Acordaremos com a ânsia de aonde ir, como se ocupar, o que parecer, o que postar, uma roda viva de estímulos e atrações e voltaremos a viver como hamsters atrás da cenourinha de felicidade buscando lá fora o que só existe aqui dentro.

- De casa ou de nós? Se for de nós é mais fácil porque basta levarmos conosco.

- Tem sempre outro palco onde não estamos, outra festa para a qual não fomos convidados, são sempre ingressos esgotados, o novo restaurante que não conhecemos, a nova música que não ouvimos nem ninguém ouviu, só passaram por ela. Como passarão por mim, como passarei por eles sem nunca mais saber como realmente estão. E não daremos mais os abraços que queríamos tanto, daremos um tapinha nas costas e falaremos por cima sem atenção, ninguém nunca mais ficará mudo, mas ninguém vai mais se ouvir. E seremos contaminados com a mesma doença de antes.

- Estamos imunizados por uma experiência que jamais esqueceremos. Existem negacionistas, mas são como a minoria barulhenta.

- Será? Eu sou grupo de risco. Vão indo e me contem. Estou me guardando para quando o Carnaval chegar.

- Esperamos por você na Sapucaí então.

- Combinado. Enquanto isso, deixa o crush de camisa preta aqui. Aprendi a fazer risoto.


*Ialorixá Wanda d´Omolu, abr/2020 (link)

**Pastor Henrique Vieira, abr/2020 (link)

3.9.21

O som do silêncio

 - Já percebeu que o silêncio faz um barulho?

(silêncio)                 

- Se você conseguir ficar quieta posso perceber.

- Ouvir o silêncio é coisa de letra do Gil ou efeito de drogas, como ouvir cores.

- É sinestesia.

- O som do silêncio?

- Isso é título de filme mal traduzido. Ouvir cores é sinestesia.

- É LSD.

- Eu tomaria microdoses de LSD como experiência, existem estudos sobre os benefícios do uso de substâncias psicodélicas em tratamentos guiados por profissionais.

- Eu tomaria macrodoses de qualquer psicodélico no café da manhã se isso libertasse minha mente de 2020.

- Eu seguiria o Mestre dos Magos se ele prometesse isso.

- E se estivermos presos num mundo como o da Caverna do Dragão achando que é 2020, mas na verdade é um universo paralelo?

- Poderiam ao menos me dar a capa da invisibilidade da Sheila.

- A capa da invisibilidade é o “desligar vídeo” do Zoom.

- Ou fingir que a internet caiu.

- Não sei voltar a uma socialização presencial sem esses recursos, é como regredir na versão do aplicativo.

- O aplicativo que mostra coisas para fazer por perto indicou um alambique com visitas guiadas a dez quilômetros daqui.

- Dez quilômetros daqui não é meio longe? Já estou isolada no meio do mato.

- Meio longe é a Ásia, onde eu estaria agora se não precisasse ficar isolada porque comeram um primo de tatu.

- Você sabe que essas visitas guiadas no alambique não são como viagens guiadas de LSD, certo?

- Seria só para conhecer um lugar diferente, como se eu estivesse de férias.

- Você está de férias. Longe de casa! Malas! Reparou? Mas não sei se precisa beber cachaça às dez da manhã.

- Fazíamos isso às sete em fevereiro fantasiados no Centro, por que não pode em setembro mascarada no mato?

- Pelo mesmo motivo que só comemos rabanadas no Natal e ovos de chocolate na Páscoa. E é outro conceito de máscara, um bem sem graça.

- No novo normal eu vou comer rabanadas em maio. Quando ele começa mesmo?

- Não vai configurar alcoolismo ir em um alambique de manhã?

- Acho que configura pandemia. Estou há dias cercada de jacus e livros, vou incentivar a produção local.

- Temo que ao beber cachaça no sol meu corpo pense que é Carnaval e se decepcione quando ninguém mais dançar.

- Não existem muito mais jacus atualmente? Não lembro de jacus na infância, a serra tinha só maria sem vergonha, bodinhos, charretes e hortênsias. Pelo meu controle, o número de jacus disparou.

- Como os micos nas cidades.

- Deve ser desequilíbrio ecológico. São espécies invasoras.

- Nós somos as espécies invasoras.

- E agora vou invadir um alambique às dez da manhã de uma quarta-feira. Vão me deixar entrar por compaixão.

- Se fossem vinhedos na Toscana ninguém questionaria, seria chique e normal.

- Se esse alambique fosse um vinhedo de Montalcino aquela ponte de madeira sobre o brejo seria Giverny.

- Se eu tirar uma foto dela e olhar sem óculos vira uma obra do Monet, tudo borrado mas até que bonito.

- Porém essa ponte está cheia de cocô de jacu.

- Posso catar e vender para amantes de café.

- Quem toma café de cocô de jacu?

- Quem na Ásia tomaria café de cocô de luwak.

- É estranho que beber cocô seja chique e normal.

- As pessoas fazem coisas estranhas e ninguém questiona.

 

 

- Dona Bruna, estamos indo, mas se precisar de alguma coisa é só chamar na recepção, tá?

- Obrigada, Jamile.

- Está tudo bem?

- Sim, tudo ótimo.

- A senhora costuma viajar muito sozinha?

- Pois é, o tempo todo. Sorte que eu escrevo, assim ninguém questiona.

22.8.21

Buda is the new black

Na chegada recebi uma sacola para colocar tudo o que eles achavam que eu não precisaria lá. Chaves, carteira, documento... meu celular? Senti no peito a separação. Minhas barrinhas de cereal? “Fome é um hábito”. No meu caso é desnutrição, mas era o primeiro contato com todos ali, cedi. Os remédios não dá, sou dependente de Neosaldina. “Você vai aprender a superar a dor”. Inclusive a de cabeça? Uau. A partir daquele momento não poderíamos mais falar. Eu já odiava acampamentos na infância, por que estava me metendo em um retiro de meditação com quarto coletivo e banheiro para 35 mulheres? Que inveja de quem é feliz só comendo chocolate. (Volte duas casas no Nobre Caminho.)

Nossa rotina consistia em acordar às quatro horas para a primeira meditação e seguir o dia alternando sessões guiadas e palestras gravadas que traziam os ensinamentos de Goenka, um simpático industrial aposentado, líder da comunidade indiana em Mianmar que tornou-se professor da técnica e a difundiu pelo mundo. Ele me ensinaria “a arte de viver”. Para isso eu precisava começar aprendendo a respirar.

Uma instrutora nos acompanhava no salão de meditação, mas só falava conosco nas consultas pessoais. A sala anexa guardava o maior estoque de almofadas já visto, e ao longo do tempo fui entendendo que tudo aquilo seria usado para construirmos ninhos que gerassem mais conforto e aliviassem as dores nas partes do corpo não acostumadas a sentar por horas e horas no chão. Ou seja, todas as partes do meu corpo.

No final do segundo dia a instrutora chamou uma a uma para saber sobre nossa evolução. Ela conversava em voz baixíssima para não atrapalhar a concentração das demais, mas minha mente achou mais legal tentar captar os diálogos. Apesar das orientações de não prestar atenção nos outros nem nos compararmos, meus pensamentos pareciam micos pulando no cérebro e notavam tudo o que todo mundo fazia. Eu seria tão reprovada que talvez fosse proibida de um dia pisar na Índia.

- Olá, Stephania. Já sente alguma sensação ao respirar?

- Contração e expansão, uma sensação suave.

- Naline?

- Sinto um calor.

- Larissa?

- Uma luz branca.

(Luz branca não é sensação, Larissa. E se você tivesse visto Shrek saberia que é a morte, não vá ao encontro dela.)

Essa não foi a instrutora falando, foi minha imaginação, a instrutora só fez cara de plenitude e seguiu a checagem.

- Manuela?

- Sinto uma espécie de coceira no nariz.

(Alergia, eu te ofereceria um Alegra, mas confiscaram meus remédios.)

- Carolina?

- Uma sonolência.

(Porque você está de pijama o dia todo!)

- Bruna?

- Não sinto nada.

Era a verdade. Pensei em dizer que as demais só podiam estar inventando, mas não queria levar mais uma nota baixa de mim mesma. Ela deu um sorrisinho iluminado e me tranquilizou:

- Tudo bem. Não fique ansiosa.

“É o que vim aprender, não está funcionando!”, mas só consenti.

À medida que as horas passavam, quase tudo ia me incomodando mais: o cheiro da sala, o quarto fechado, as toalhas molhadas, a água que não esquentava, o sabão em pasta para lavar os pratos. Até ali, eu nunca tinha sentido conforto nas árvores, na grama, no céu mesmo quando estava todo cinza, mas logo minha mente afugentava aquela paz e corria para inventar qualquer coisa que fizesse o tempo passar mais depressa, como se assim fôssemos chegar a algum lugar.

Apesar das ideias de revolta - não vou mais acordar com o sino, vou esconder comida para a tarde - eu seguia na prática. Não podia ser só crer no Buda e funcionar? Tão mais fácil. O frio aumentava, as pessoas iam acrescentando camadas de roupas coloridas e descombinadas: meias por fora das calças, gorros estampados, até que passaram a andar enroladas em mantas e... pronto, lá estava eu horrorosamente julgando tudo e planejando abrir uma loja da Uniqlo na porta para vender casacos Ultra Light Down. Quando me dava conta do quão errada estava no propósito, tinha a certeza de que Buda himself apareceria para me fuzilar com o olhar. Ele é Buda, Bruna, não faria isso. É você quem faz.

Mal sabia Buda que eu ainda pioraria. Como não podíamos falar, passei a inventar apelidos, personalidades e histórias para cada aluna, transformei todas em personagens para entreter meus intervalos. Minha dor de cabeça de fome era tão forte que fui autorizada a ganhar torrada extra com geléia à noite, e ao ver meu nome na bancada de alimentação especial senti tamanha alegria que dancei I Feel Good. Mentalmente, claro. E mentalmente também criei uma técnica que renovou meu vigor: passei a observar tudo como se aquilo estivesse sendo narrado pelo Porchat. Quem notasse meu sorriso concluiria: atingiu o nirvana. Eu me distanciava do Dhamma a passos de girafa com pressa.

Dias depois, parcialmente frustrada, mas totalmente decidida, procurei a instrutora e declarei que não podia mais ficar, eu tinha aguentado o máximo que podia naquele momento. Porchat e eu iríamos embora. Enquanto esperava a sacola com meus pertences desnecessários guardados, sentindo aversão àquele celular que me entregariam cheio de hiper-conexão, um aluno desistente me ofereceu carona e saímos de lá pela estrada libertados como Telma e Louise. Mentira. Voltamos nos apoiando no orgulho da auto-superação, loucos por um hamburger, tendo aprendido muito mais do que imaginávamos.

Dois anos depois explodiu uma pandemia no mundo. Passamos a viver isolados e conscientes de não saber como será o dia seguinte. Como eu aguentaria um mundo inteiro em completa angústia agora?  

Uma tarde, entre corrermos do balanço do parque para o escorrega para a gangorra, minha afilhada girava em um brinquedo que a fazia gargalhar e disse:

- Dinda, eu quero ficar aqui para sempre com você!

- Para sempre girando nesse brinquedo?

- Sim! – E ria mais ainda abrindo os braços no vento.

Queremos a descoberta que vai mudar nossa vida, o grande propósito, a missão que justificará nossa existência, o feito emoldurável, a paixão arrebatadora. Experimenta focar no manjericão da jardineira que cresceu sem pulgão, na cachoeira com muita água porque choveu essa semana, no cachorro tentando pegar todas as bolinhas de uma vez só, dança na sala. Essa FELICIDADE gigante perseguida é bem mais simples, tão simples que nem acreditamos que possa ser só isso, mas repara como te faz bem. É essa sensação aí o TUDO. Tudo é só isso. O resto é ansiedade fabricada, ilusão.

5.7.21

Diário de uma pandemia – Vol XIII (Da felicidade)

Família. Viagem. Natureza. Café da manhã. Piada interna. Chuveiro bom. Banho de banheira. Ofurô. Tarde com amigos. Noite com amigos. Novos amigos. Apelidos carinhosos. Fazer as pazes. Se perdoar. Flerte. Gente que escreve bem. Gente inteligente. Internet rápida. Se desconectar. Senhas que funcionam. Mensagens que dizem “me lembrei de você”.  Purpurina. Bateria. Fantasia. Cheiro de Noskote. Vídeos de aniversário. Mesa de bar. After. Resenha. Quem lembra o pedaço da noite que a gente esqueceu. Caipirinha de sake. De kiwi. De lichia. Com seriguela. Vinho. Mergulho. Água salgada. Água doce. Pegar jacaré. Barco. Cachorro. Cavalo. Vaca. Elefantes em seu habitat natural. Maritacas histéricas. Passarinho na janela. Gato se enroscando na perna. Qualquer bicho vertebrado. Baleia na Baía de Guanabara. Bahia. Vento. Livros. Filmes. Séries. Rede. Torções. Invertidas. Queijo. Beijo. Miligramas de imprudência, imaturidade e irresponsabilidade. Dormir no sofá. Manta fofinha no inverno. Torcida.  Mãos dadas. Carinho na cabeça. Ver o sol nascer. Ver o sol se por. Sol. Lua cheia. Céu estrelado. Beber chuva. Cantar. Dançar. Usar uma roupa linda. Alecrim colhido na jardineira. Planos de viagem. Viajar sem tirar os pés do chão. Tirar os pés do chão. Quadrilha de festa junina. Matte com limão. Batucar na mesa. Tentar. Conseguir. Compor. Rocambole de morango. Waffle com mel. Torrada Petrópolis. Petrópolis. O verde das árvores com o azul do céu da serra. O mar verde de Angra. Em frente ao prédio azul perto do mar. Lado direito do palco. Atrás do cortejo. Nadar debaixo d´água. Encontrar tartarugas marinhas. Cheiro de capim limão. Sotaque nordestino. Doce de leite de Minas. Compota no Pantanal. O Pantanal. África. Banho de rio com boto. Arte. Inhotim. Parque Lage. Instituto Moreira Salles. Arte de rua. Sala de cinema. “Estamos no ar”. Passagem de som. O Chico Buarque quando ri do que ele próprio está contando. A rouquidão da Marisa Monte. A calma do Gil. As letras do Caetano. A sabedoria da Rita Lee. As letras do Marcelo Camelo. Circo Voador. Festas populares. Pastoras. Velha guarda. Quadra de escola de samba. A Sapucaí. O Atacama. Pisco sour. Pão francês quentinho. Bolo com calda. Perninhas de bebê balançando no carrinho ao te ver. “Oi, Dinda!”. Sorriso. Gargalhada. Ataque de riso com lágrimas. Inspirar, expirar. Pastel em Caraíva. Chamada do Havaí. Cadeiras viradas para a rua em Paris. Playlist pronta. Massagem. Neve. Cashmere. Remédio de nariz. “Deixa que eu faço isso”. Céu com estrelas. As luas de Júpiter.  Música ao vivo. Abraço. “Eu vou com você”. 

Vacina. 

Cura.

27.6.21

;-)

Foi lá pelos idos dos anos 1990, quando ainda nos referíamos a eles como “anos 90” apenas, afinal, quem seria o outro? Então foi lá pelos idos dos anos 90 do século passado que minha mãe comentou sobre um assunto qualquer: “sinistro isso”. Paramos em silêncio olhando para ela como se tivesse, por erro no sistema, respondido em turco.

- Não, mãe, isso não é sinistro.

- É irado então?

- Também não. Para você é “incrível” ou “demais”. Você é adulto, nada a ver falar nossas gírias.

Pra gente, um monte de coisas era nada a ver e fazíamos um esforço hercúleo para pertencer e parecer so fucking cool. Quer dizer, parecer “in”. Queríamos lacrar quando o verbo ainda se referia a fechamento e fechamento ainda não se referia aos parças, que eram ainda  companheiros, mas não os do Lula, embora ele já os tivesse, mas ainda como líder sindical.

A moçada bacana daquele momento ria com a boca mesmo, não tinha hahaha kkk rs, não tinha nem sms por onde rir, e “kjdhlsfh” seria coisa de quem apoiou o cotovelo no teclado sem querer. Logo depois disso, geral estaria ditando moda pelo ICQ, e geral, além de um espaço no Maracanã,  era “todo mundo”, as trinta pessoas que conhecíamos e constituíam o universo e suas regras. PessoAs, adeptas de artigos definidos, acho que nem existia o conceito de indefinição. Hoje, temo secretamente que todes xs pessoes comecem a falar assim porque vai ser como se eu estivesse me comunicando eternamente numa espécie de língua do P. Putz grilX, não decorei nem as regras do novo acordo ortográfico. Pombas, vou me ferrar.

As regras da galera dividiam o mundo – o nosso micromundo – entre quem era maneiro e quem não era. Nem sabíamos o que era polarização, política era uma coisa que acontecia só nas eleições, onde, aliás, o voto ainda era impresso. Sério, cara, não tô zoando, era tipo amigo oculto da família re-al. Não família real tipo Reino Unido, tipo a parada era decidida pelo que se marcava num pedacinho de papel mesmo. E Tipo era um carro que explodia.

Para essa geração que voltava da escola entulhada na mala da Quantum, fumou pelo cordão umbilical, tinha medo do lobisomem de Roque Santeiro, challenge era entender o que diabos era URV pra comprar hamburger no recreio às dez da manhã. Aos dezesseis anos eu já tinha vivido trinta planos econômicos, corta zero, muda moeda, caça marajá, Dadinho é o c%$@*lho, meu nome é Eneas. Match era uma prancha de bodyboard, date era o que escrevíamos no cabeçalho dos homeworks do IBEU, ghosting era no máximo gerúndio do Patrick Swayze fazendo pote de argila com a Demi Moore - gente que desaparecia no meio do relacionamento sem dar qualquer explicação era homem que não presta mesmo. As notícias inventadas que ganharam o eufemismo de fake news, lá atrás eram mentiras (essa palavra podia ser resgatada).

Galinha era quem ficava com muita gente,  sempre do sexo oposto, ficar era o que explicávamos para os nossos pais que constituía um estágio anterior ao namoro, não necessariamente envolvia transar, também não necessariamente evoluía para um namoro, e os garotos podiam ser muito galinha, mas nós ficaríamos com fama de piranha, vagabunda, ganharíamos apelidos como “maçaneta” porque "todo mundo passava a mão". Mão que talvez também quiséssemos passar neles, não fosse a culpa e o medo porque isso não era coisa de menina decente e não podíamos ceder aos desejos. Essas gerações que passaram a semana debatendo serem cringe ou não revogaram essas palavras e pensamentos também ou só aposentaram o mico?

Eu não fiz a dancinha do carpinteiro. Challenge para mim já é saber que piseiro é música, quem é Orlandinho, entender que são dois Luis Miranda, não ter taquicardia de FOMO ao ouvir um “você não viu isso?”.  Lá atrás era só acompanhar o Disk MTV, agora o crush diz que não quer se emocionar muito para não me assustar e entendo como “são tantas emoções, pandemia, estamos à flor da pele”. Uhn... não exatamente, mas nem posso reagir à figurinha que não enxergo porque tem um texto pequeno demais para a minha vista cansada. Há tanta vida lá fora, Lulu, olho o celular e penso: e aqui dentro sempre essa avalanche de assuntos que não dou conta de acompanhar.

Foi lá pelos idos da semana passada que eu conversava com uma mini criatura louca para ser adolescente quando ouvi: ““Dinda, se você fosse adolescente suas roupas seriam mais modernas, você se veste como um adulto”. Eu nem estava usando meu cardigan de cashmere e ela me vê como uma idosa.

Vestida com minha roupa de adulto tão confortável, penso que só tem uma coisa cringe na vida: ideias bolsonaristas. De resto, amor, toma seu café, maratona Friends e vai ser feliz. 

28.5.21

Sintomáticos

 - Boa tarde, tenho uma consulta com a Dra Gastro.

- Qual o motivo da consulta hoje?

- Acho que estou com apendicite.

- Não está.

- Você é a recepcionista, quero que a Dra Gastro me examine.

- O consultório está cheio, não estamos atendendo librianos.

- Isso é discriminação.

- É otimização, vocês não conseguem responder com rapidez nem consulta oftalmológica.

- Porque perguntam se prefiro uma fileira de letra ou outra como se fosse montagem de prato no Spoleto.

- Consegue dizer rapidamente como estão suas fezes?

- Feias.

- Marrom clara, mediana, escura, preta?

- Tem uma cartela de Pantone para avaliar?

- Viu? E você não estava com apendicite nas últimas três consultas desse mês. Não está agora.

- Não estou conseguindo mais digerir.

- Alimentos ou informações?

- Ambos.  Preciso que a Dra Gastro me examine agora.

 *****************************

 - Seus exames chegaram, estão ótimos.

- Mas eu estou péssima.

- Pode passar uns dias na natureza?

- Lá tem internet?

- Seria bom cortar a internet. Também leite e bebidas gasosas.

- Não tomo leite nem bebidas gasosas.

- Nem champagne? Pode ser isso, seria bom tomar champagne às vezes, celebrar alguma coisa.

- A senhora acha que eu não estou conseguindo digerir porque não tenho celebrado coisas?

- Você pode ter o que chamamos de “síndrome do intestino irritável”.

- Quem “chamamos”? A OMS chama, o Tedros Adhanom?

- Todos chamamos.

- E o que é isso?

- Não sabemos muito bem, mas muitas pessoas tem tido.

- Covid?

- Não é um vírus, achamos que é por estilo de vida. Você anda estressada?

- A senhora não?

- Precisa fazer algo para relaxar.

- Onde? Nenhum país nos aceita, não tenho como fugir daqui, um lugar onde nem sei que tipo de tomada vou encontrar cada vez que preciso recarregar eletrônicos.

- Tem conseguido se divertir um pouco?

- Tenho acelerado áudios no Whatsapp.

- Vamos fazer um diário da sua alimentação, quero que mostre tudo que come, rotina, como está se sentindo.

- Basicamente um perfil no Instagram.

- Você faz suas refeições com esses dois celulares ao lado?

- Sim, eles podem estar emitindo radiação?

- Estão emitindo ansiedade. Desliga e volta daqui a um mês com o diário.

- Já fiz o diário: como tudo o que pode ser feito na Air Fryer ou entregue em 30 minutos pelo IFood, passo os dias sentada alternando janelas do computador falando com pessoas em quadradinhos e estou me sentindo...

- Shhh, calma, tudo bem, não precisa se envergonhar por chorar. Levanta a cabeça, respira.

- Que “respira”! Nesse ambiente fechado, estou em apneia desde que entrei. Não estava chorando, eu estava checando o Google aqui no celular: não tenho os sintomas dessa tal síndrome. Tenho um cérebro irritado.

- Os sintomas variam muito.

- Covid?

- Acho que já estamos nos repetindo.

- Estamos: CPI, povo na rua, talvez votemos no Lula de novo. Dra Gastro? A senhora parece pálida, tudo bem?

- Não estou conseguindo digerir.

3.4.21

Diário de uma pandemia – Vol XII (A vacina)

Setembro de 2020.

- Está ocupada?

- Em reunião.

- É urgente, preciso falar. O porteiro está com Covid.

- Putz! Ele está bem?

- Está bem sem olfato, mas o pior não é isso. O vizinho que se mudou daqui na semana passada também está com Covid. Foi o vetor da contaminação, nos informou ontem.

- O porteiro tem 70 anos, é diabético, não tem plano de saúde, mora com a esposa, filho e neto em dois quartos aí. Como o pior é o vizinho, ele trabalha em um asilo?

- Eu estive com ele.

- Mas você estava de máscara, esteve com ele à distância, protegido, certo?

- Eu abracei o vizinho.

Silêncio.

- Você abraçou o vizinho? 

- Abracei o vizinho.

- Eu sou sua filha e você não me abraça há meses, me abraçou umas 3 ou 4 vezes na vida inteira. Por que você abraçou um vizinho, de quem jamais ouvi falar, em plena pandemia?

- Ele estava indo embora.

- Da Terra?

- Fui pego de surpresa.

- Ele se jogou nos seus braços?

- Ele tocou a campainha, achei que fosse reclamar, mas veio se despedir de mim.

- Porque estava sendo abduzido?

- Ficamos muito próximos esse ano, o prédio todo se ajudou.

- Extremamente próximos, já percebi, menos de dois metros.

- Ele me trouxe uma caixa de bombons!

- Você desinfetou a caixa imediatamente?

- Eu abracei o vizinho.

- Não sei mais lidar. Vou me oferecer como cobaia na Fiocruz.

 

Abril de 2021

Fico atualizando a aba aberta com o perfil do prefeito esperando a divulgação das novas datas de vacinação. Sabemos a origem das vacinas, falamos sobre insumos, cepas, percentual de proteção. Quando entram no posto improvisado do bairro, a agente de saúde explica que será aplicada a primeira dose de Coronavac e eles deverão retornar em vinte e oito dias para a última etapa de imunização.

- Vinte e oito dias úteis? Ou corridos? Vinte e oito dias como no fim desse mês agora?

- Sim, senhora, eles podem voltar no dia 30 já.

- E estarão protegidos?

Eu sei que a moça pensou “por favor, senhora, me poupe de perguntas óbvias, a senhora assiste a Globonews o dia inteiro, lê jornais, stalkeia Margareth Dalcolmo & Dimas Covas, acompanhe seus pais até a cadeira para que sejam vacinados e vá para casa”, mas ela, gentilmente, apenas sorriu. Minutos depois o Lulu Santos entraria naquele posto e cantaria uma versão de A Cura homenageando o SUS.

 

Eles se revoltam, enviam textinhos emotivos “encaminhados com frequência” no WhatsApp  para nos convencer de que são adultos de posse das suas faculdades mentais e responsáveis por seus atos, o que não nos tranquiliza nem remotamente. Repetem à exaustão “eu sei o que estou fazendo”, “não estou me colocando em risco”, “lá não tinha ninguém” e quase nos convencem de que enlouquecemos acometidos pela paranoia de que um vírus matará nossos pais e por isso precisamos guardá-los em uma redoma, até que somos puxados de volta pelo William Bonner ou quando captamos a fonte da informação que eles trazem serelepes e seguros: “eu li no Facebook! Uma amiga mandou no grupo”. É o gatilho para o ímpeto de invadir os servidores do Zuckerberg e desconfigurá-los de forma definitiva. O YouTube tem a versão “Infantil”, pleiteamos que o Facebook disponibilize a versão “Nossos Pais”.

Já dominaram a arte da faxina, zeraram todas as plataformas de streaming, incorporaram expressões turcas à fala depois de devorar infinitos episódios de séries estranhíssimas, lavaram os cabides dos armários três vezes, desmontaram e montaram todos os eletrodomésticos que quebraram nesse período e revelaram talentos artísticos na criação de videos para aniversariantes que os tornariam celebridades no TikTok. Apelando para a mais baixa chantagem emocional ganharam permissão para rever os netos: “e se eu morrer sem ter vivido com eles?”. Confeccionamos uma indumentária plástica composta por capa de chuva, luvas de borracha, óculos, camadas sobre camadas de máscara, ensinamos técnica de apneia para usarem durante o abraço. Olho admirada a capacidade de adaptação e recuperação deles, de nós, de um mundo inteiro gastando o significado de reinvenção.  

 

Meire prepara a seringa, explica que aquela quantidade é referente a uma dose. Confiro cem vezes se a agulha está nos braços deles, se o líquido foi totalmente aplicado, tento não chorar de alegria, deixar ali a tonelada de medo que pesa em mim há 1 ano, mantenho uma cara de normalidade, mas não resisto no final.

Eu abracei a enfermeira.

8.3.21

Chaya

 Não sei quantos anos ela tinha quando saiu de casa, talvez entre dez e quinze? Nunca me contou se tinha vivos na memória os momentos até ali, como eram seus dias, esses que vivemos manhã-tarde-noite, primavera-verão-outono-inverno, dia de semana-fim de semana, dias “normais”, sempre mais ou menos iguais, até que não.

Não sei se, quando nos conhecemos, ela ainda se lembrava de como as coisas foram acontecendo e de como foram os anos a seguir. Como podem perceber, nós nunca conversamos. Talvez porque eu fosse uma criança e ela uma avó de cabelos meio vermelhos. Uma criança bem atenta ao que os adultos falavam, eu teria captado qualquer parte dessa história se tivessem contado ao meu redor, mas nunca falaram e eu também nunca tinha pensado sobre a vida anterior dela. Também não guardaria essa lembrança imaginando “vai que um dia meu mundo muda assim”, os medos das crianças são bem mais simples, o monstro debaixo da cama não é uma incerteza que vai ocupando todo o quarto como fumaça pesada.

Será que houve um dia específico que provocou uma sequência de mudanças na vida dela, um março de 2020? Um novembro de 2018? Será que ela percebeu? E como viviam as pessoas nas casas, nos campos, não por fora de cada um, mas dentro de si: tinham apertos no peito de angústia, choravam sentados em cadeiras na sala no meio do dia, secavam o rosto e seguiam com suas tarefas? As mudanças até o momento em que saíram de lá foram acontecendo silenciosamente no tempo, aumentando gradativamente, ignorando os que insistiam em ignorá-las? Será que eles sabiam no dia em que saíram que nunca mais voltariam, que o curso da história dela mudaria completamente? O que ela achava que faria nos meses seguintes: comemorariam um aniversário? Reuniriam a família para Rosh Hashaná? Será que ela já escolhia nomes poloneses para os filhos que um dia teria?

Minha avó era camponesa e vivia com a família em um território europeu que um dia foi invadido por tropas antissemitas de Joseph Stalin. A vida dela inteira foi atropelada nesse dia. Nesse dia, o que aconteceu com toda a vida que ela imaginava que teria pela frente? Quando os pais, irmãos e amigos perceberam que não teria volta?

Berko e Sosia Wladowski conseguiram fugir da Europa e chegaram com as filhas em São Paulo. Sosia passou a ser chamada de Sofia, Ides virou Ida e minha avó, Chaya, tornou-se Clara. Chaya, nos anos trinta, na Polônia, provavelmente se casaria com um homem também judeu, possivelmente não escolheria seu marido a partir do amor que sentiriam um pelo outro nem dos planos em comum que fariam ao namorar. Dificilmente Chaya sonhava ter uma profissão, com o que ela sonhava quando deitava para dormir ou brincava de futuro? O que sentiu quando entrou no navio que a trouxe para o Brasil?  Eles confiavam completamente que aquele novo país traria de volta segurança e uma vida “normal” ou àquela altura nem existia mais o conceito de normalidade?  

Nunca passou um avião, daqueles que passavam nas praias com faixas voando atrás, anunciando “Chaya, sua vida vai mudar agora”. Não entrou uma pessoa na tela, bateu uma claquete e começou um novo episódio. Ela não estava andando, esbarrou em um ponto final, tentou avançar, caiu em um espaço em branco onde estava escrito “novo capítulo”. Mas um dia as tropas chegaram, não puderam derrotá-las e ela precisou fugir. Que história estava sendo escrita e por quem até ali?

E se estivermos dentro de outro livro, formos parte de outra história, mas esse for o capítulo onde nossas vidas mudam e nunca mais serão as mesmas, existe um navio? Vai para onde?

13.2.21

Pela saudade que me invade

O calor inclemente, “vamos fazer Carnaval no inverno, gente?”. Seis da manhã. Prepara a cachaça, cola o cílio postiço com olho ardendo de sono, vai na raça. Manda mensagem no grupo, eu passo para te buscar, chega cedo, pode lotar. A casa inteira tem purpurina, vai descendo, no táxi você termina, já sabe que horas o bloco sai? 

É fevereiro! Mas ela não vai.

As portinhas das lojas miúdas do Saara, os corredores da Caçula, metrô Uruguaiana. As réguas de medir tecido, cola quente, tule, lamê, pluma, glitter, paetê.

É fevereiro! Mas ela não vai.

Alguém tem celular velho para emprestar? Sem apego, podem roubar. O que ainda cabe nessa pochete? Não precisa levar filtro solar! Esconde o dinheiro, não esquece documento, leva lencinho, nunca se sabe as condições dos banheiros que a gente vai enfrentar. Começa a usar o All Star meses antes para amaciar, esse arco para o arranjo da cabeça vai segurar? Corta fita metálica, sobrou do ano passado alguma meia arrastão que dê para aproveitar?

É fevereiro! Mas ela não vai.

Onde concentra? Cadê o bloco? Em que boiada você está? Disseram que na Gamboa está melhor, vamos subir para Santa Teresa, uns amigos estão indo para Madureira, pega o trem, vamos cantando até lá! Olha o túnel! Vou chegar mais perto da bateria, a gente vai rolar lá embaixo nessa ladeira! Eu quero ser cordeira. Alcança aquele ambulante, sua cara está toda brilhante, me dá um gole desse negócio. Atrás do cortejo, levanta a mão. Manda sua localização!

É fevereiro! Mas ela não vai.

Concentra nos Correios ou Balança? Não decorei o samba, só sei o refrão, de resto, vaga lembrança. Já entendi, setor 6, dou tchau pra vocês. Me encontra na dispersão, lado esquerdo da Apoteose. Só saio depois da campeã, eu vou pular essa cerca, hoje só volto amanhã.

É fevereiro! Mas ela não vai.

Alô setor 1, alô Velha Guarda, arrepia Salgueiro, olha a Beija-Flor aí gente, a Mangueira chegou, alô Mocidade Independente chegou a hora, alô povão agora é sério, vai na ginga Portela, chora cavaco, explode coração, gira o pavilhão, porta-bandeira, deixa a praça virar um salão, é tudo nosso.  

É fevereiro! Mas ela não vai.

Não vai deixar o desamor caciqueando na avenida. Não vai ter jacaré de bracinhos curtos para cima extravasando a vida, povo esmigalhado, não vai ter pirata, marinheiro, faraó, beijo sem medo compartilhado. Não vai ter palhaço, colombina, arlequim, pierrot está preocupado com a conta do ar condicionado. 

É fevereiro e ela não vai. 


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Tô me guardando pra quando o Carnaval voltar.

10.1.21

Refazenda

No dia 31 ele apareceu no picadeiro ao lado da piscina, deu uns vôos tão altos que nos surpreendemos, nem sabíamos que patos voavam daquele jeito. Você vai pensar: é claro que voam, como acha que eles migram? Não acho, nunca tinha pensado em patos. Se aqueles patos também eram capazes de voar por que nunca saíram dali? Eu também não sairia se fosse eles, quase não saí sendo eu, o problema foi que não convenci ninguém a me remunerar para poder ficar.

No dia seguinte ao vôo flagrei o pato no galpão de rações. Levou um susto com a minha presença, saiu apressado disfarçando a invasão, mas vi quando achou que eu tinha sumido e deu meia volta porta adentro.  Eu estava à espreita, segui ele! Sim, eu estava bem à toa seguindo patos. O que um pato fazia no galpão de comida dos cavalos, e sozinho de novo? Uhn, não está lidando bem com reveillon, acontece, tem gente que detesta, fica melancólico nessa época do ano, vai ver ele também. Comecei a desconfiar que aquele pudesse ter problemas de socialização, era o único apartado. Era também um dos poucos patos em um grupo formado majoritariamente por gansos, não sei como é isso entre eles, se rola um “aff, deixa pra lá, são nanicos, patos”, aí do outro lado reviram olhos - “ai, gansos arrogantes, esse pescoço comprido sempre esticado, peito estufado, se acham heteros em sedução”. Talvez eu pudesse ler uns dois ou três livros “Freud para patos” e ajudá-lo. Fazer uma Constelação, um Tethahealing, uma Barra de Access no pato! Não quiseram me contratar para nenhuma terapia.

Com a fazenda inteira para viver, o grupo de gansos repetia todos os dias o mesmo circuito: estrada, lago, estrada. Sempre em bando, só se separavam um pouco quando iam boiar. Será que nunca se cansam da mesma rotina? Precisam expandir os horizontes, vamos exercitar esses pezinhos e cruzar até a outra margem! Quis promover excursões, levar patos e gansos até o rio lá em cima, organizar passeios para as jabuticabeiras com parada nas casas de João de Barro, visitas-guiadas às cocheiras. Não demonstraram nenhum interesse em me seguir, estavam muito bem ali. O pato voador, inclusive, vai ver era só um pato que curtia sua própria companhia, precisava de uns momentos para si. Bloco do pato sozinho. Meu empreendedorismo com aves teve o% de eficácia.

As galinhas d´Angola eram mais equilibradas e exploradoras, davam seus rolezinhos às vezes por conta própria, às vezes se agrupavam. Entravam nos estábulos, se metiam pelos pastos, tenho muita simpatia por elas, adoro o look, a escolha das cores, só discordamos depois de uns dias daquela gritaria “tôfraco-tôfraco”. Parou o drama! Fraca tô eu, vocês viveram 2020? Toma um Targifor, um banho de chuva, um vinho com amigos, dá um mergulho e muda esse disco. Adiantou, acho que já na manhã seguinte ouvi algumas gritando “tôótima-tôótima”. Coaching de galinha d´Angola! Até postei, mas além de umas duas curtidas não rendeu nada.

Um quadro no espaço dos veterinários com o controle dos casais de cavalos e éguas parecia o banco de dados do Tinder: Faísca + Damasco, Gafieira + Atrevido, Brisa + Lótus, Escócia + Doutor, e na sequência Gafieira + Doutor, Faísca + Lótus, Brisa + Atrevido... Os cruzamentos no haras seguem a mesma lógica de suruba com delay do Baixo Gávea da minha memória pré-Covid: todo mundo pega todo mundo, só não ao mesmo tempo.

Dos tantos cruzamentos nascem potrinhos fofíssimos, magrinhos com uns gambitinhos onde se equilibram com o esforço da pouca prática. Em dois dias de vida um potrinho já tinha mais condições de se locomover e arrumar comida do que eu depois de algumas taças e faço isso há mais de vinte anos. Eu poderia ficar por lá promovendo matches, formaria os casais, organizaria os dates, faço isso tão bem com a minha própria vida, seria altruísta oferecer esse dom ao reino equino. Discordaram. Não entendi bem se da minha auto-percepção ou da necessidade do meu serviço, reagiram com umas risadas, entendi que fui mais bem sucedida como coach de galinha d´Angola.

Os dias de descanso estavam acabando, minhas ideias profissionais se esgotando, nem uma live da banda dos sapos martelo consegui emplacar. Era uma sinfonia à noite, talvez fossem martelo, com certeza eram sapos. De vez em quando ouvíamos um relinchar de cavalo, às vezes outros respondiam, não sei o que conversavam. As fontes mantinham um barulho contínuo de água corrente. A partir das três da tarde começavam os trovões, um tempo depois vinha a chuva, as gotas batendo nas claraboias e nas folhas das palmeiras. A madeira da casa rangia aos passos e as cristaleiras trepidavam anunciando alguém que se aproximava. O barulho dos gansos, maritacas, galinhas, no começo da manhã e fim da tarde as dobradiças e trincas, sempre alguém abrindo ou fechando as tantas janelas na única marcação de tempo permitida. Um dia uns uivos. Uma noite uma moto, lá longe. Muitas risadas.

Voltei para a cidade, de onde vejo o mundo por uma tela ao som de Makitas e interfone anunciando IFood, mas no último minuto colei num poste o cartaz “Trago o equino amado em 3 dias”. Vai que aquela pegação deixa uns corações partidos pelo caminho...