Não sei quantos anos ela tinha quando saiu de casa, talvez entre dez e quinze? Nunca me contou se tinha vivos na memória os momentos até ali, como eram seus dias, esses que vivemos manhã-tarde-noite, primavera-verão-outono-inverno, dia de semana-fim de semana, dias “normais”, sempre mais ou menos iguais, até que não.
Não
sei se, quando nos conhecemos, ela ainda se lembrava de como as coisas foram
acontecendo e de como foram os anos a seguir. Como podem perceber, nós nunca
conversamos. Talvez porque eu fosse uma criança e ela uma avó de cabelos meio vermelhos.
Uma criança bem atenta ao que os adultos falavam, eu teria captado qualquer
parte dessa história se tivessem contado ao meu redor, mas nunca falaram e eu
também nunca tinha pensado sobre a vida anterior dela. Também não guardaria essa
lembrança imaginando “vai que um dia meu mundo muda assim”, os medos das
crianças são bem mais simples, o monstro debaixo da cama não é uma incerteza que
vai ocupando todo o quarto como fumaça pesada.
Será
que houve um dia específico que provocou uma sequência de mudanças na vida
dela, um março de 2020? Um novembro de 2018? Será que ela percebeu? E como
viviam as pessoas nas casas, nos campos, não por fora de cada um, mas dentro de
si: tinham apertos no peito de angústia, choravam sentados em cadeiras na sala
no meio do dia, secavam o rosto e seguiam com suas tarefas? As mudanças até o
momento em que saíram de lá foram acontecendo silenciosamente no tempo,
aumentando gradativamente, ignorando os que insistiam em ignorá-las? Será que
eles sabiam no dia em que saíram que nunca mais voltariam, que o curso da
história dela mudaria completamente? O que ela achava que faria nos meses
seguintes: comemorariam um aniversário? Reuniriam a família para Rosh Hashaná?
Será que ela já escolhia nomes poloneses para os filhos que um dia teria?
Minha
avó era camponesa e vivia com a família em um território europeu que um dia foi
invadido por tropas antissemitas de Joseph Stalin. A vida dela inteira foi
atropelada nesse dia. Nesse dia, o que aconteceu com toda a vida que ela imaginava
que teria pela frente? Quando os pais, irmãos e amigos perceberam que não teria
volta?
Berko
e Sosia Wladowski conseguiram fugir da Europa e chegaram com as filhas em São
Paulo. Sosia passou a ser chamada de Sofia, Ides virou Ida e minha avó, Chaya,
tornou-se Clara. Chaya, nos anos trinta, na Polônia, provavelmente se casaria
com um homem também judeu, possivelmente não escolheria seu marido a partir do
amor que sentiriam um pelo outro nem dos planos em comum que fariam ao namorar.
Dificilmente Chaya sonhava ter uma profissão, com o que ela sonhava quando
deitava para dormir ou brincava de futuro? O que sentiu quando entrou no navio
que a trouxe para o Brasil? Eles
confiavam completamente que aquele novo país traria de volta segurança e uma
vida “normal” ou àquela altura nem existia mais o conceito de normalidade?
Nunca
passou um avião, daqueles que passavam nas praias com faixas voando atrás,
anunciando “Chaya, sua vida vai mudar agora”. Não entrou uma pessoa na tela,
bateu uma claquete e começou um novo episódio. Ela não estava andando, esbarrou
em um ponto final, tentou avançar, caiu em um espaço em branco onde estava
escrito “novo capítulo”. Mas um dia as tropas chegaram, não puderam derrotá-las
e ela precisou fugir. Que história estava sendo escrita e por quem até ali?
E
se estivermos dentro de outro livro, formos parte de outra história, mas esse
for o capítulo onde nossas vidas mudam e nunca mais serão as mesmas, existe um
navio? Vai para onde?
Um comentário:
Difícil comentar...uma historia intensa q nos faz pensar...tanto no passado quanto no futuro ....mas sempre a Bruna nos surpreende com sua escrita apaixonante...desta vez bateu fundo...
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