30.9.20

Homilia

Ela já entrou na igreja atrasada carregando um bebê, as tralhas do bebê, a bolsa, um presente e a outra criança junto porque não podiam faltar àquele sacramento festivo. Era a primeira vez que a filha entrava em uma igreja de forma consciente, a única outra provavelmente tinha sido no seu próprio batizado, cinco anos antes, quando ela e o marido se comprometeram a criar a menina na religião católica já que tinham submetido os padrinhos a um curso de padrinhos e os convidados a uma passadinha na missa em pleno verão carioca. Apesar disso, a filha jamais ouvira qualquer história sobre Deus, Jesus, Maria ou qualquer personagem relacionado.

- Mãe, vai demorar muito?

- Shhh! Não, meia horinha e acaba. Fica quietinha.

Nenhuma criança de 5 anos sabe o que é “fica quietinha nesse banco sem fazer nada por meia hora”. Ela nem sabia o que era meia hora, ontem, hoje ou amanhã, a noção de tempo das crianças já era toda atrapalhada mesmo antes da pandemia.

- Posso ver Ipad?

- Não, presta atenção no que o padre está falando, ele está contando uma história.

- Quem é o padre?

- (Meu Deus, minha filha nem sabe quem é o padre, me perdoa, Vó). É aquele de preto ali na frente.

- E quem é aquele homem sem roupa?

- Shhhh! Amor, fala baixinho, ouve o padre, não tem ninguém sem roupa.

E rapidamente já foi checando ao redor, são tantos escândalos escabrosos envolvendo Igreja católica que não custava se certificar de que nenhum tarado doente estava por ali.

- Aquele homem naquela cruz, Mamãe, a estátua.

- (Eu realmente preciso começar a ensinar alguma coisa sobre religião para essa criança.) É Jesus, filha, filho de Deus. (Se ela perguntar quem é Deus esse teto vai cair sobre mim.)

- Ele está machucado?

- Está porque colocaram ele na cruz, os machucados são as chagas onde estão os pregos e a coroa de espinhos.

- Quem colocou ele ali?

São em momentos como este que os pais de antigamente apenas diriam “não é da sua conta’, “isso não é coisa para a sua idade” ou “vai brincar com seu irmão”, desconversariam, mas os pais de hoje em dia não. Os pais de hoje em dia acham importante explicar as coisas, eles justificam, tem conversas e elaboram argumentações para quem só se importaria com a Elza, a Ana e o Olaf.

- Jesus foi traído por um dos seus amigos e crucificado.

E então a criança, obviamente, começou a chorar. Não um choro contido, aquele apertozinho no coração, mas um berreiro. Sentia as chagas de Jesus, a dor da traição, até a dor do apedrejamento de Maria Madalena se àquela altura já soubesse também dessa barbárie. O padre olhava, os pais da bebê na pia batismal olhavam, os padrinhos com a vela, os convidados se viravam para trás, talvez até as freiras no mosteiro acima olhassem condenando.

- Meu Deus, calma!

- Eu não gosto de Deus!

- Shhhh! Hehehe....

- Ele não fez nada?

- Levanta, Amor, sai da igreja, vamos lá fora, desculpa, licença, calma, para de chorar pelo amor de Deus.

- Não tem amor de Deus, ele não ajudou o filho dele?

- Ele não podia ajudar...

- Como não podia ajudar? Eu não quero que os meus amigos me coloquem na cruz, você e meu pai não vão poder me ajudar?

- Ninguém vai te colocar na cruz, eu garanto, e é claro que nós te ajudaríamos, mas isso não tem como acontecer, foi muito tempo atrás.

- Quando?

- Há dois mil e vinte anos. Quer dizer, há dois mil e vinte anos menos trinta e três, eu acho, há muitos anos, muitos mesmo, isso não acontece mais.

- Os amigos não traem mais?

É o que digo: há bem menos do que dois mil anos, até ainda ali pela década de oitenta  - onde muita coisa duvidosa aconteceu na criação das crianças, como cigarrinho de chocolate, transporte de alunos aglomerados em porta-malas de Caravans, apresentadoras de programas infantis em revistas eróticas nas bancas de jornais, mas ainda se implementava o “porque eu estou mandando” - essa conversa teria tomado outro rumo já no início, essa mãe teria aplicado a ferramenta do pecado e da culpa católica para direcionar a filha para onde quisesse como hoje faz o Felipe Neto e a família estaria sentada aguentando o batizado em silêncio. Mas não...

- Às vezes os amigos traem, mas só os maus amigos, os falsos.

- Foram os amigos falsos do Jesus que colocaram ele na cruz e o pai dele não pôde fazer nada?

- Isso, mas depois ficou tudo bem.

- Ele saiu da cruz e foi para casa?

- Sim. Na verdade... calma, ele fica bem no final, mas morreu e depois voltou a viver e foi feliz para sempre (e falou bem rápido antes que as lágrimas também voltassem, mas como omitir a parte da morte? E se a menina saísse por aí dizendo que Jesus desceu da cruz e saiu andando para casa apesar dos amigos falsos e do Pai impotente, que é onipresente e ela ainda nem sabe?)

- Meu cachorro também vai voltar a viver então?

- (Por que, Senhor, decidi trazer essa criança à Igreja?) Não, filha, seu cachorro virou uma estrelinha, ninguém volta a viver, isso só aconteceu com Jesus. (E com o Jon Snow em Game of Thrones, que seria uma história bem mais simples para eu explicar do que essa droga de novo testamento.)

- Por quê? Ele era especial que nem um príncipe?

- Era mais que um príncipe, ele era filho de Deus! E Deus é muito poderoso.

- Se ele é tão poderoso como não sabia dos amigos falsos? Por que deixou o filho dele ir para a cruz e morrer, ele era mau? E a mãe do Jesus?

- (É virgem, casada com José.) Filha, esquece Jesus, esquece Deus, tudo isso. Sabe aquela estátua de um gordinho sorrindo que a mamãe trouxe de viagem? É Buda. Nós seremos budistas a partir de hoje, vamos agora sentar debaixo dessa árvore e meditar. E meditar é de olho fechado, sem olhar para mais nada. Senta.

- Depois posso ver Ipad?

- Pode.

11.9.20

Diário de uma pandemia - vol XI

Dia 184

Deu errado o teste da vacina mas eu precisava almoçar. Precisava acabar a reunião e resolver o problema da produção, resolver o problema da outra produção também e responder emails. Mas deu errado o teste da vacina. Eu sei, já entendi, efeitos colaterais inesperados, não, não nasceram rabinhos nos testados, deu um problema, suspenderam essa vacina, depois leio com calma. Mas deu errado o teste da vacina.

A piada não funciona, os artistas não conseguem, precisam de plateia, como fazer plateia, cria uma plateia em outro espaço com mais espaço, distancia bem, testa todo mundo, tenta mandar o sinal, joga o áudio das risadas para o estúdio, conseguimos palmas? Temos plateia, quinze pessoas, quinze pessoas? É uma plateia, temos plateia, melhorou a piada. E o beijo? Não pode beijo, como se beija à distância? Não se beija, tira amor do texto, coloca o amor na pós-produção, faz o amor virtual, amor em computação, tanto amor tem sido assim mesmo, deixa o amor. E a vontade de desistir, faz nada não, deixa para depois. Não tem “depois”. O John Lennon estava certo, é isso aqui agora mesmo a vida, “o que acontece enquanto fazemos outros planos”. Mas costumava ser quase tudo para depois, os grandes planos de felicidade. A viagem. A casa. Aquela ideia. Vou ser muito feliz quando chegar o Carnaval. Nas férias. Quando conhecer alguém. Quando as crianças crescerem. Quando mudar de emprego. Quando tiver mais dinheiro. Quando emagrecer. Quando tiver coragem. Quando tiver vacina. Cancelaram tanta coisa que cancelaram o depois. E agora? Isso sobrou, o agora. Mas agora eu não posso ir a lugar nenhum, agora não tem ninguém para me dar a mão. Lamento, senhora, é só agora mesmo. Mas o que eu faço com agora, estou equilibrando os pratinhos para não caírem, vai passar, é um dia a menos agora, agora tem um monte de gente no restaurante, vai lá agora então, mas agora a taxa ainda está alta, quando ela cair eu volto, volto depois. Depois? Já não sei mais que dia é hoje, não sei mais quando é depois. O depois está chegando igualzinho ao agora há uns seis meses. Ou há uns seis anos?

Eu irei ao show. Farei uma festa. Abraçarei. Encontrarei. Dançarei espremida. Beberei pela rua gargalhando encostando em tudo. E se o futuro do presente virar futuro do pretérito? Eu iria. Beijaria. Abraçaria. Mas o futuro do presente chega quando? Eu quero dançar. Beijar. Viajar. Correr. Rir agora. Não quero adiar nem quero mais chorar eu quero viver agora. Tenho medo de esquecer como era, apagar. Vou embaralhar o futuro e o presente de tudo que posso fazer agora.