Ela já entrou na igreja atrasada carregando um bebê, as tralhas do bebê, a bolsa, um presente e a outra criança junto porque não podiam faltar àquele sacramento festivo. Era a primeira vez que a filha entrava em uma igreja de forma consciente, a única outra provavelmente tinha sido no seu próprio batizado, cinco anos antes, quando ela e o marido se comprometeram a criar a menina na religião católica já que tinham submetido os padrinhos a um curso de padrinhos e os convidados a uma passadinha na missa em pleno verão carioca. Apesar disso, a filha jamais ouvira qualquer história sobre Deus, Jesus, Maria ou qualquer personagem relacionado.
- Mãe, vai demorar muito?
- Shhh! Não, meia horinha e
acaba. Fica quietinha.
Nenhuma criança de 5 anos sabe o
que é “fica quietinha nesse banco sem fazer nada por meia hora”. Ela nem sabia
o que era meia hora, ontem, hoje ou amanhã, a noção de tempo das crianças já
era toda atrapalhada mesmo antes da pandemia.
- Posso ver Ipad?
- Não, presta atenção no que o
padre está falando, ele está contando uma história.
- Quem é o padre?
- (Meu Deus, minha filha nem sabe
quem é o padre, me perdoa, Vó). É aquele de preto ali na frente.
- E quem é aquele homem sem
roupa?
- Shhhh! Amor, fala baixinho,
ouve o padre, não tem ninguém sem roupa.
E rapidamente já foi checando ao
redor, são tantos escândalos escabrosos envolvendo Igreja católica que não
custava se certificar de que nenhum tarado doente estava por ali.
- Aquele homem naquela cruz, Mamãe,
a estátua.
- (Eu realmente preciso começar a
ensinar alguma coisa sobre religião para essa criança.) É Jesus, filha, filho
de Deus. (Se ela perguntar quem é Deus esse teto vai cair sobre mim.)
- Ele está machucado?
- Está porque colocaram ele na
cruz, os machucados são as chagas onde estão os pregos e a coroa de espinhos.
- Quem colocou ele ali?
São em momentos como este que os
pais de antigamente apenas diriam “não é da sua conta’, “isso não é coisa para
a sua idade” ou “vai brincar com seu irmão”, desconversariam, mas os pais de
hoje em dia não. Os pais de hoje em dia acham importante explicar as coisas,
eles justificam, tem conversas e elaboram argumentações para quem só se importaria
com a Elza, a Ana e o Olaf.
- Jesus foi traído por um dos
seus amigos e crucificado.
E então a criança, obviamente,
começou a chorar. Não um choro contido, aquele apertozinho no coração, mas um
berreiro. Sentia as chagas de Jesus, a dor da traição, até a dor do
apedrejamento de Maria Madalena se àquela altura já soubesse também dessa
barbárie. O padre olhava, os pais da bebê na pia batismal olhavam, os padrinhos
com a vela, os convidados se viravam para trás, talvez até as freiras no
mosteiro acima olhassem condenando.
- Meu Deus, calma!
- Eu não gosto de Deus!
- Shhhh! Hehehe....
- Ele não fez nada?
- Levanta, Amor, sai da igreja,
vamos lá fora, desculpa, licença, calma, para de chorar pelo amor de Deus.
- Não tem amor de Deus, ele não
ajudou o filho dele?
- Ele não podia ajudar...
- Como não podia ajudar? Eu não
quero que os meus amigos me coloquem na cruz, você e meu pai não vão poder me
ajudar?
- Ninguém vai te colocar na cruz,
eu garanto, e é claro que nós te ajudaríamos, mas isso não tem como acontecer,
foi muito tempo atrás.
- Quando?
- Há dois mil e vinte anos. Quer
dizer, há dois mil e vinte anos menos trinta e três, eu acho, há muitos anos,
muitos mesmo, isso não acontece mais.
- Os amigos não traem mais?
É o que digo: há bem menos do que
dois mil anos, até ainda ali pela década de oitenta - onde muita coisa duvidosa aconteceu na
criação das crianças, como cigarrinho de chocolate, transporte de alunos
aglomerados em porta-malas de Caravans, apresentadoras de programas infantis em
revistas eróticas nas bancas de jornais, mas ainda se implementava o “porque eu
estou mandando” - essa conversa teria tomado outro rumo já no início, essa mãe
teria aplicado a ferramenta do pecado e da culpa católica para direcionar a
filha para onde quisesse como hoje faz o Felipe Neto e a família estaria
sentada aguentando o batizado em silêncio. Mas não...
- Às vezes os amigos traem, mas
só os maus amigos, os falsos.
- Foram os amigos falsos do Jesus
que colocaram ele na cruz e o pai dele não pôde fazer nada?
- Isso, mas depois ficou tudo
bem.
- Ele saiu da cruz e foi para
casa?
- Sim. Na verdade... calma, ele
fica bem no final, mas morreu e depois voltou a viver e foi feliz para sempre
(e falou bem rápido antes que as lágrimas também voltassem, mas como omitir a
parte da morte? E se a menina saísse por aí dizendo que Jesus desceu da cruz e saiu
andando para casa apesar dos amigos falsos e do Pai impotente, que é
onipresente e ela ainda nem sabe?)
- Meu cachorro também vai voltar
a viver então?
- (Por que, Senhor, decidi trazer
essa criança à Igreja?) Não, filha, seu cachorro virou uma estrelinha, ninguém
volta a viver, isso só aconteceu com Jesus. (E com o Jon Snow em Game of
Thrones, que seria uma história bem mais simples para eu explicar do que essa
droga de novo testamento.)
- Por quê? Ele era especial que
nem um príncipe?
- Era mais que um príncipe, ele
era filho de Deus! E Deus é muito poderoso.
- Se ele é tão poderoso como não
sabia dos amigos falsos? Por que deixou o filho dele ir para a cruz e morrer, ele
era mau? E a mãe do Jesus?
- (É virgem, casada com José.) Filha,
esquece Jesus, esquece Deus, tudo isso. Sabe aquela estátua de um gordinho
sorrindo que a mamãe trouxe de viagem? É Buda. Nós seremos budistas a partir de
hoje, vamos agora sentar debaixo dessa árvore e meditar. E meditar é de olho
fechado, sem olhar para mais nada. Senta.
- Depois posso ver Ipad?
- Pode.
Um comentário:
Só da sua cabeça mesmo!!!!voce é uma figura.
Postar um comentário