22.8.21

Buda is the new black

Na chegada recebi uma sacola para colocar tudo o que eles achavam que eu não precisaria lá. Chaves, carteira, documento... meu celular? Senti no peito a separação. Minhas barrinhas de cereal? “Fome é um hábito”. No meu caso é desnutrição, mas era o primeiro contato com todos ali, cedi. Os remédios não dá, sou dependente de Neosaldina. “Você vai aprender a superar a dor”. Inclusive a de cabeça? Uau. A partir daquele momento não poderíamos mais falar. Eu já odiava acampamentos na infância, por que estava me metendo em um retiro de meditação com quarto coletivo e banheiro para 35 mulheres? Que inveja de quem é feliz só comendo chocolate. (Volte duas casas no Nobre Caminho.)

Nossa rotina consistia em acordar às quatro horas para a primeira meditação e seguir o dia alternando sessões guiadas e palestras gravadas que traziam os ensinamentos de Goenka, um simpático industrial aposentado, líder da comunidade indiana em Mianmar que tornou-se professor da técnica e a difundiu pelo mundo. Ele me ensinaria “a arte de viver”. Para isso eu precisava começar aprendendo a respirar.

Uma instrutora nos acompanhava no salão de meditação, mas só falava conosco nas consultas pessoais. A sala anexa guardava o maior estoque de almofadas já visto, e ao longo do tempo fui entendendo que tudo aquilo seria usado para construirmos ninhos que gerassem mais conforto e aliviassem as dores nas partes do corpo não acostumadas a sentar por horas e horas no chão. Ou seja, todas as partes do meu corpo.

No final do segundo dia a instrutora chamou uma a uma para saber sobre nossa evolução. Ela conversava em voz baixíssima para não atrapalhar a concentração das demais, mas minha mente achou mais legal tentar captar os diálogos. Apesar das orientações de não prestar atenção nos outros nem nos compararmos, meus pensamentos pareciam micos pulando no cérebro e notavam tudo o que todo mundo fazia. Eu seria tão reprovada que talvez fosse proibida de um dia pisar na Índia.

- Olá, Stephania. Já sente alguma sensação ao respirar?

- Contração e expansão, uma sensação suave.

- Naline?

- Sinto um calor.

- Larissa?

- Uma luz branca.

(Luz branca não é sensação, Larissa. E se você tivesse visto Shrek saberia que é a morte, não vá ao encontro dela.)

Essa não foi a instrutora falando, foi minha imaginação, a instrutora só fez cara de plenitude e seguiu a checagem.

- Manuela?

- Sinto uma espécie de coceira no nariz.

(Alergia, eu te ofereceria um Alegra, mas confiscaram meus remédios.)

- Carolina?

- Uma sonolência.

(Porque você está de pijama o dia todo!)

- Bruna?

- Não sinto nada.

Era a verdade. Pensei em dizer que as demais só podiam estar inventando, mas não queria levar mais uma nota baixa de mim mesma. Ela deu um sorrisinho iluminado e me tranquilizou:

- Tudo bem. Não fique ansiosa.

“É o que vim aprender, não está funcionando!”, mas só consenti.

À medida que as horas passavam, quase tudo ia me incomodando mais: o cheiro da sala, o quarto fechado, as toalhas molhadas, a água que não esquentava, o sabão em pasta para lavar os pratos. Até ali, eu nunca tinha sentido conforto nas árvores, na grama, no céu mesmo quando estava todo cinza, mas logo minha mente afugentava aquela paz e corria para inventar qualquer coisa que fizesse o tempo passar mais depressa, como se assim fôssemos chegar a algum lugar.

Apesar das ideias de revolta - não vou mais acordar com o sino, vou esconder comida para a tarde - eu seguia na prática. Não podia ser só crer no Buda e funcionar? Tão mais fácil. O frio aumentava, as pessoas iam acrescentando camadas de roupas coloridas e descombinadas: meias por fora das calças, gorros estampados, até que passaram a andar enroladas em mantas e... pronto, lá estava eu horrorosamente julgando tudo e planejando abrir uma loja da Uniqlo na porta para vender casacos Ultra Light Down. Quando me dava conta do quão errada estava no propósito, tinha a certeza de que Buda himself apareceria para me fuzilar com o olhar. Ele é Buda, Bruna, não faria isso. É você quem faz.

Mal sabia Buda que eu ainda pioraria. Como não podíamos falar, passei a inventar apelidos, personalidades e histórias para cada aluna, transformei todas em personagens para entreter meus intervalos. Minha dor de cabeça de fome era tão forte que fui autorizada a ganhar torrada extra com geléia à noite, e ao ver meu nome na bancada de alimentação especial senti tamanha alegria que dancei I Feel Good. Mentalmente, claro. E mentalmente também criei uma técnica que renovou meu vigor: passei a observar tudo como se aquilo estivesse sendo narrado pelo Porchat. Quem notasse meu sorriso concluiria: atingiu o nirvana. Eu me distanciava do Dhamma a passos de girafa com pressa.

Dias depois, parcialmente frustrada, mas totalmente decidida, procurei a instrutora e declarei que não podia mais ficar, eu tinha aguentado o máximo que podia naquele momento. Porchat e eu iríamos embora. Enquanto esperava a sacola com meus pertences desnecessários guardados, sentindo aversão àquele celular que me entregariam cheio de hiper-conexão, um aluno desistente me ofereceu carona e saímos de lá pela estrada libertados como Telma e Louise. Mentira. Voltamos nos apoiando no orgulho da auto-superação, loucos por um hamburger, tendo aprendido muito mais do que imaginávamos.

Dois anos depois explodiu uma pandemia no mundo. Passamos a viver isolados e conscientes de não saber como será o dia seguinte. Como eu aguentaria um mundo inteiro em completa angústia agora?  

Uma tarde, entre corrermos do balanço do parque para o escorrega para a gangorra, minha afilhada girava em um brinquedo que a fazia gargalhar e disse:

- Dinda, eu quero ficar aqui para sempre com você!

- Para sempre girando nesse brinquedo?

- Sim! – E ria mais ainda abrindo os braços no vento.

Queremos a descoberta que vai mudar nossa vida, o grande propósito, a missão que justificará nossa existência, o feito emoldurável, a paixão arrebatadora. Experimenta focar no manjericão da jardineira que cresceu sem pulgão, na cachoeira com muita água porque choveu essa semana, no cachorro tentando pegar todas as bolinhas de uma vez só, dança na sala. Essa FELICIDADE gigante perseguida é bem mais simples, tão simples que nem acreditamos que possa ser só isso, mas repara como te faz bem. É essa sensação aí o TUDO. Tudo é só isso. O resto é ansiedade fabricada, ilusão.