Na chegada recebi uma sacola
para colocar tudo o que eles achavam que eu não precisaria lá. Chaves,
carteira, documento... meu celular? Senti no peito a separação. Minhas
barrinhas de cereal? “Fome é um hábito”. No meu caso é desnutrição, mas era o
primeiro contato com todos ali, cedi. Os remédios não dá, sou dependente de
Neosaldina. “Você vai aprender a superar a dor”. Inclusive a de cabeça? Uau. A
partir daquele momento não poderíamos mais falar. Eu já odiava acampamentos na
infância, por que estava me metendo em um retiro de meditação com quarto
coletivo e banheiro para 35 mulheres? Que inveja de quem é feliz só comendo
chocolate. (Volte duas casas no Nobre Caminho.)
Nossa rotina consistia em acordar
às quatro horas para a primeira meditação e seguir o dia alternando sessões
guiadas e palestras gravadas que traziam os ensinamentos de Goenka, um simpático
industrial aposentado, líder da comunidade indiana em Mianmar que tornou-se
professor da técnica e a difundiu pelo mundo. Ele me ensinaria “a arte de viver”.
Para isso eu precisava começar aprendendo a respirar.
Uma instrutora nos acompanhava no
salão de meditação, mas só falava conosco nas consultas pessoais. A sala anexa
guardava o maior estoque de almofadas já visto, e ao longo do tempo fui
entendendo que tudo aquilo seria usado para construirmos ninhos que gerassem
mais conforto e aliviassem as dores nas partes do corpo não acostumadas a
sentar por horas e horas no chão. Ou seja, todas as partes do meu corpo.
No final do segundo dia a
instrutora chamou uma a uma para saber sobre nossa evolução. Ela conversava em
voz baixíssima para não atrapalhar a concentração das demais, mas minha mente
achou mais legal tentar captar os diálogos. Apesar das orientações de não
prestar atenção nos outros nem nos compararmos, meus pensamentos pareciam micos
pulando no cérebro e notavam tudo o que todo mundo fazia. Eu seria tão reprovada
que talvez fosse proibida de um dia pisar na Índia.
- Olá, Stephania. Já sente
alguma sensação ao respirar?
- Contração e expansão, uma
sensação suave.
- Naline?
- Sinto um calor.
- Larissa?
- Uma luz branca.
(Luz branca não é sensação,
Larissa. E se você tivesse visto Shrek saberia que é a morte, não vá ao
encontro dela.)
Essa não foi a instrutora
falando, foi minha imaginação, a instrutora só fez cara de plenitude e seguiu a
checagem.
- Manuela?
- Sinto uma espécie de coceira
no nariz.
(Alergia, eu te ofereceria um
Alegra, mas confiscaram meus remédios.)
- Carolina?
- Uma sonolência.
(Porque você está de pijama o
dia todo!)
- Bruna?
- Não sinto nada.
Era a verdade. Pensei em dizer
que as demais só podiam estar inventando, mas não queria levar mais uma nota
baixa de mim mesma. Ela deu um sorrisinho iluminado e me tranquilizou:
- Tudo bem. Não fique ansiosa.
“É o que vim aprender, não está
funcionando!”, mas só consenti.
À medida que as horas passavam,
quase tudo ia me incomodando mais: o cheiro da sala, o quarto fechado, as toalhas
molhadas, a água que não esquentava, o sabão em pasta para lavar os pratos. Até
ali, eu nunca tinha sentido conforto nas árvores, na grama, no céu mesmo quando
estava todo cinza, mas logo minha mente afugentava aquela paz e corria para
inventar qualquer coisa que fizesse o tempo passar mais depressa, como se assim
fôssemos chegar a algum lugar.
Apesar das ideias de revolta - não
vou mais acordar com o sino, vou esconder comida para a tarde - eu seguia na
prática. Não podia ser só crer no Buda e funcionar? Tão mais fácil. O frio
aumentava, as pessoas iam acrescentando camadas de roupas coloridas e
descombinadas: meias por fora das calças, gorros estampados, até que passaram a
andar enroladas em mantas e... pronto, lá estava eu horrorosamente julgando
tudo e planejando abrir uma loja da Uniqlo na porta para vender casacos Ultra
Light Down. Quando me dava conta do quão errada estava no propósito, tinha a
certeza de que Buda himself apareceria para me fuzilar com o olhar. Ele é Buda,
Bruna, não faria isso. É você quem faz.
Mal sabia Buda que eu ainda
pioraria. Como não podíamos falar, passei a inventar apelidos, personalidades e
histórias para cada aluna, transformei todas em personagens para entreter meus
intervalos. Minha dor de cabeça de fome era tão forte que fui autorizada a
ganhar torrada extra com geléia à noite, e ao ver meu nome na bancada de
alimentação especial senti tamanha alegria que dancei I Feel Good. Mentalmente,
claro. E mentalmente também criei uma técnica que renovou meu vigor: passei a observar
tudo como se aquilo estivesse sendo narrado pelo Porchat. Quem notasse meu
sorriso concluiria: atingiu o nirvana. Eu me distanciava do Dhamma a passos de
girafa com pressa.
Dias depois, parcialmente
frustrada, mas totalmente decidida, procurei a instrutora e declarei que não podia
mais ficar, eu tinha aguentado o máximo que podia naquele momento. Porchat e eu iríamos embora. Enquanto
esperava a sacola com meus pertences desnecessários guardados, sentindo aversão
àquele celular que me entregariam cheio de hiper-conexão, um aluno desistente me
ofereceu carona e saímos de lá pela estrada libertados como Telma e Louise. Mentira.
Voltamos nos apoiando no orgulho da auto-superação, loucos por um hamburger,
tendo aprendido muito mais do que imaginávamos.
Dois anos depois explodiu uma
pandemia no mundo. Passamos a viver isolados e conscientes de não saber como
será o dia seguinte. Como eu aguentaria um mundo inteiro em completa angústia
agora?
Uma tarde, entre corrermos do
balanço do parque para o escorrega para a gangorra, minha afilhada girava em um
brinquedo que a fazia gargalhar e disse:
- Dinda, eu quero ficar aqui
para sempre com você!
- Para sempre girando nesse
brinquedo?
- Sim! – E ria mais ainda
abrindo os braços no vento.
Queremos a descoberta que vai mudar nossa vida, o grande propósito, a missão que justificará nossa existência, o feito emoldurável, a paixão arrebatadora. Experimenta focar no manjericão da jardineira que cresceu sem pulgão, na cachoeira com muita água porque choveu essa semana, no cachorro tentando pegar todas as bolinhas de uma vez só, dança na sala. Essa FELICIDADE gigante perseguida é bem mais simples, tão simples que nem acreditamos que possa ser só isso, mas repara como te faz bem. É essa sensação aí o TUDO. Tudo é só isso. O resto é ansiedade fabricada, ilusão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário