10.6.18

Pro povo do gueto mandar avisar (vai rolar a festa)


Há cerca de um mês vinham se reunindo na intenção de resolver, eles próprios, questões do bairro que já não contavam mais com ações do eleito poder público. Em um encontro no elevador tiveram a ideia, espalharam cartazes pelos postes e assim formou-se um grupo de pessoas dispostas a trocar as reclamações por iniciativas. As calçadas estavam apinhadas de mendigos, o barulho dos bares à noite impossibilitava o descanso, a frequência de assaltos na praça fazia daquele espaço área a ser evitada. O estado de abandono era tão sério que uma enorme pintura no chão havia surgido de repente. Na calada da noite alguém havia coberto de verde e amarelo o asfalto ao redor do chafariz. “Eu também reparei!”, exclamou um, “acho que foi na madrugada de domingo”, completou outro, “eu tenho uma máquina de água a jato que limpa”, exclamou o terceiro. Quando começava a falar um quarto, um braço tímido se ergueu no meio da sala:

- Será que não pintaram por causa da Copa?

Silêncio.

- Nós costumávamos enfeitar as ruas pra Copa - continuou.

Talvez porque ninguém mais falasse, ou para estabelecer um vínculo com os demais, ele ia perguntar se não tinham visto o amistoso, mas foi interrompido.

- Que Copa?

- Da Rússia.

As pessoas tentavam acessar um arquivo corrompido em seus cérebros, estavam todos em processamento de dados.

Rússia do Putin?
Não interessa se a Rússia tem Putin, a dúvida é quem nós temos para jogar.
Não importa quem temos para jogar, temos eleições para realizar.
E estamos sob intervenção militar.
- O Tite já escalou o time, disse o rapaz. Tem Firmino, Gabriel Jesus e Neymar.
Neymar é garoto-propaganda. Ele é também titular?

O alvoroço tomara conta da reunião. Os angustiados calculavam se já havia quatro anos desde o 7X1, os traumatizados não queriam se envolver de novo e se frustrar, os esperançosos viam a possibilidade de recuperação econômica movida pela animação do povo e tentavam convencer os exasperados que defendiam que não poderiam trocar luta por alienação. Em um ponto todos eram unânimes: mesmo que se confirmasse a realização de um campeonato mundial de futebol em poucos dias, não havia tempo hábil para se aprontar. Não havia camisas, anúncios de novas tecnologias em TVs, música-tema, videntes com previsões, propagandas grandiosas emocionantes, promoção de refrigerante ou aumento na produção de cerveja, não tinha clima para festa. A população sabia escalar os juízes do Supremo e conhecia os comentaristas da Globonews, os jogadores aposentados que em outros tempos formavam mesas redondas nem tinham investido em fonoaudiólogos de tão certos que estavam que ninguém nunca mais acompanharia Seleção. Havia o risco de um candidato machista homofóbico defensor da tortura presidir o país, o assassinato de uma vereadora ocupava manchetes há meses sem sinal de solução, o preço do dólar e da gasolina chegava ao do Matte limão de copinho nos restaurantes baratos que ainda tinham clientes, o povo estava esgotado e as crianças idolatravam Youtubers jogadores de videogames, quem em sã consciência pararia tudo para torcer por futebol?     
  
- Se o Brasil fizer gol poderemos nos abraçar.

Então todos correram para a banca à procura de álbum de figurinhas para se preparar.