2.8.20

Diário de uma pandemia - vol X

Dia 144

Quatro meses e meio e ainda não sei fazer batatas palito no forno. “Não coloca muito azeite”, diz uma irmã, “seca bem antes de cozinhar”, diz a outra. Mais uma tentativa e me rendo à air fryer – o quarto maior amor dos quarentenados depois dos mops, aspiradores robô e da Teresa Cristina.

No primeiro dia de uso do robô passo duas horas seguindo o aparelho pela casa como se fosse um filhote recém-chegado. Em vinte minutos queria devolvê-lo – eu, sozinha, já teria aspirado metade dos cômodos naquele tempo. Donos mais experientes garantem que posso deixá-lo trabalhar sem supervisão, relaxo na segunda vez. Abro um vinho, coloco uma música, estendo meus pés no sofá – ah, a alegria de ter um chão sendo limpo sem meu esforço! Um sorriso de satisfação... bleft-pi-piiiiiiiiii. Cadê o troço? Sigo o apito, tensão pelo estrondo vindo da área, chego à cena de guerra, uma batalha sangrenta onde o sangue é poeira, toda a sujeira contida dentro do antigo aspirador arremessada pelos ares e ele despedaçado no chão. Robô apitando paralisado com rodinhas emboladas em fios de cabelo que comprovam minha tendência acelerada à calvície. Não se sabe se o novato avistou o antigo aspirador e o atacou derrubando-o para marcar território ou se o outro enciumado se jogou sobre o robô cuspindo tudo de imundo que continha dentro de si. Saldo da noite: Bruna, vassoura, pá de lixo e pano de chão. Like old (pandemic) times.

Diferentemente de old times, recebo o email de um evento na França confirmando a realização e informando que, esse ano, posso participar virtualmente. "Entendemos que o banimento de viajantes do seu país para a Europa significa que você não poderá estar presente conosco, mas foi pensando em pessoas como você que criamos uma plataforma online”. Pessoas como eu em dúvida sobre o futuro? Pessoas como eu buscando orientação e perdidas? Pessoas como eu colaborando com o coletivo? Não, pessoas como eu: banidas.

O presidente passa a atormentar emas além de nós, o país segue sem Ministro da Saúde em meio à pandemia, mais um governador se encaminha a Bangu, o prefeito ninguém nunca soube mesmo o que faz, tudo é liberado menos sentar na areia, uns tomam chopp nos bares que restaram enquanto outros continuam evitando até elevador. A vida social passa a ser uma grande clandestinidade, com escapadas generalizadas para encontrar flertes do Tinder ou amigos em praças discretas, a culpa católica se torna pluma se comparada à culpa pandêmica e o julgamento alheio passa a amedrontar mais que o vírus.

Chega o dia de voltar ao estúdio. Um protocolo de segurança nos permite algumas horas confinados no mesmo espaço de onde saímos em março.

- Que horas você vai?

- Depois do almoço.

- Eu também, aviso quando chegar para nos encontrarmos.

OMG, “aviso quando chegar!”, “para nos encontrarmos!”, eu não pronuncio essas frases desde o Carnaval!

A ansiedade prévia causa até insônia. Peguei o carregador do celular? E do notebook? Leva água, lá não tem mais copo. Lá ainda tem água? Nunca mais deram notícias da geosmina. Onde guardei o crachá? Posso sentir fome, não tem mais catering, prepara um sanduíche. Toma um Allegra, evita espirrar. Pode demorar, tem que trocar a máscara a cada três horas, leva umas cinco. Não, exagero, leva três. E um saco plástico para guardar as usadas. Coloca um casaco na bolsa, lembra? Estúdio é frio, te faz espirrar. Pego a mochila de camping, não coube tudo na bolsa.

Na entrada do prédio medem minha temperatura. “Boa tarde, senhora. Trinta e seis e meio, bom trabalho”. “Obrigada. Quer dizer, para você também. Trinta e seis e meio, que bom, né? Tá, deixa pra lá.”

Entro na sala. É um espaço para cem pessoas, vazio. Um silêncio absoluto onde antes eu me esforçava para ouvir meus pensamentos no meio de frases díspares como “fechando esse patrocínio batemos a meta do mês” e “é fake esse nude, a bunda dele não estaria aqui se a cabeça do outro está lá”. Agora ouço o som dos meus passos no piso enquanto caminho entre as mesas com novas marcações alternadas de bloqueio e caixas fechadas com todas as coisas que deixamos para trás.

No caminho para o estúdio passo na praça de alimentação para checar o que restou como se andasse em escombros do pós-guerra. Avisto, na porta do restaurante onde eu almoçava, os funcionários! Sorrimos escancaradamente, apesar das máscaras sabemos que sorrimos, tento conter as lágrimas de felicidade por vê-los e alívio por saber que ainda tem empregos. Como viveremos com essa vontade quase incontrolável de abraçar as pessoas queridas que revemos?

Tudo volta, agora sob os olhares de um fiscal da Segurança de Saúde. “Você gosta dessa tarja? Vocês estão muito próximos. O cenário está lindo! Não sai da sua posição, fala pelo comunicador. Vamos passar o roteiro? Passa álcool nesse equipamento. Não consigo montar meu faceshield, alguém me ajuda! Encaixa essa parte naquela, não, na outra, assim não, do outro jeito, mais inclinado, ah faz para mim, não posso encostar no seu, pronto deu certo, vem aprovar a vinheta, socorro, não vejo nada, passa álcool, não posso andar, está tudo embaçado, pareço míope, como vou trabalhar? Tirou a película de proteção? Não. Aí dificulta”. Ouço minha própria voz como retorno. Vocês me ouvem? Alô, som! Viro o Tim Maia com EPIs. Máscara & Faceshield & Óculos & Fone & 3, 2, 1 Gravando. Eu lembro que o coração batia feliz assim.

Em Berlim, milhares vão às ruas protestar contra restrições impostas pela pandemia empunhando cartazes como "Corona: alarme falso". Os manifestantes negacionistas dizem estar “fazendo barulho porque vocês estão nos roubando a liberdade”. Não sei exatamente quem são os “vocês” a quem se dirigem na indignação, mas penso em também protestar contra quem me atrapalha. “F&*@-se, cólica menstrual!”. “Abaixo a lei da gravidade!”. “Devolvam meu Papai Noel!”. Meus sobrinhos se inspiram: “contra a hora de dormir!”. “Pelo direito de não pentear o cabelo!”.

Não levamos adiante a ideia das passeatas, mantenho em nível pessoal a vontade de “start a revolution from my bed” e sigo vendo a live da Teresa Cristina enquanto corto batatas.

- É TT, mais uma noite.

- É, mas é menos uma noite! Pensa assim.