31.10.21

Diário de uma pandemia – Vol XIV (Do retorno)

Dia 595

Não era meu aniversário, aquele grupo enorme de amigos na porta de casa não podia ser uma festa surpresa delivery.

- Que inesperado, vão entrando. Opa, sapatos não. Eita, dois beijinhos? Não era soquinho, super gêmeos?

- Trouxemos bebida, vou colocar na geladeira.

- Passa álcool, tem na pia, tem na mesa também, que surpresa, pessoal! Legal. Quer dizer, mais ou menos, não me lembro se antigamente aparecíamos assim na casa dos outros, bum, todo mundo junto! É o novo normal? Eu cancelei o jornal...

- Viemos conversar com você.

- Está tudo bem? Cadê meus pais?

- Estamos aqui. Essa é a questão: está ficando tudo bem. Lá fora.

- E, como seus melhores amigos, achamos que você precisa de ajuda na ressocialização então viemos te buscar para voltar ao mundo como antes.

- Entendi. É que “como antes” não vai ser possível, passou tempo, né? Nem enxergo mais as coisas como antes e não é modo de dizer, é vista cansada mesmo, cansadíssima. Aliás, eu não sei se não nos vemos há tanto tempo que alguns de vocês não estou reconhecendo. Esses homens aqui, a gente se conhece?

- Somos os seus futuros crushes.

- Nunca vi vocês na vida.

- Porque ainda não aparecemos nela, precisamos que você vá a lugares para isso. Não usa nem Tinder...

- Crush, querido, eu não uso nem Uber. Não pego táxi que não conheço, quiçá gente nessa situação.

- Por isso viemos, amiga. Você precisa começar a sair de casa.

- Agora que ela ficou super bem decorada? Internet com giga velocidade, sofá perfeito, esse sofá levou oito meses para chegar. Inclusive eu acho que vocês estão um pouco aglomerados nele, mantenham-se, por favor, a um metro e meio de distância, pelo menos de mim. Exceto esse futuro crush de camisa preta, que pode se aproximar com PCR negativo em mãos para agilizar, por favor. 

- Chegamos a 70% da população vacinada, deu certo! Os hospitais desativaram as UTIs de Covid!

- Achei que fôssemos cantar nas ruas, abraçados, quando isso acontecesse.

- Podemos cantar nas ruas, o Circo reabriu, vamos de novo nos encontrar do lado direito do palco, imagina!

- Essa parte do “imagina” é que... Tia, você está com uma máscara de pano?

- Sim! Tomei a terceira dose já. Ao ar livre fico até sem.

- Estou achando tudo um pouco intempestivo.

- Tem quase dois anos!

- Exatamente! E agora vamos alopradamente despir nossas bocas, espirrar livremente?  Imagina uma plateia lotada de gente sem máscara cantando, arremessando vírus em todas as direções, minhas duas narinas expostas como um aspirador robô catando tudo.

- Vamos começar indo a shows em espaços abertos.

- Com bandas que toquem mais baixo? Não sei se tem necessidade daquele volume do som tão alto. E não tenho mais condições de passar horas em pé, envelheci dezenove meses desde aquela Orquestra Imperial. Estou sentada em reunião todo esse tempo. 

- Então vamos à praia nesse fim de semana, você ia à praia até com chuva.

- Acho que não tem mais necessidade também, aquela falação, né? Uma falta de privacidade, era queijo coalho passando, frescobol, a maré subia, vinha criança embrulhada na arrebentação, posso seguir indo à cachoeira, é mais civilizado. Cada um espera a vez do outro para se molhar, não tem aquilo de co-existir banhado pelo mesmo líquido que traz resíduos sabe-se lá de qual origem. E ninguém leva caixinha bluetooth para a cachoeira.

- Esse é um bom argumento, vamos à cachoeira então, mas depois vamos almoçar fora. Comida direto da cozinha para a mesa, garçom ao invés de entregador, ver gente, dividir conta, saideira.

- Esse fim de semana não vou poder, estou pesquisando casas na serra para alugar.

- Mas agora todos estão voltando, acabou o home office.

- Olha aí, grande valor de negociação.

- Vamos ver o filme que estreou daquele diretor que você adora, está todo mundo comentando.

- Tenho acompanhado. E acompanhado também a curva de crescimento dos Imutáveis, adoecidos pelo vírus do “deixa tudo como era”, está aumentando. Eles são muito agressivos e parecem imunes ao que combinamos. Íamos "rever nossas posturas e valores"*, “o abraço vai ser mais verdadeiro, a conversa, mais sincera, o olhar, mais sensível, a vida, mais simples e solidária”**, lembra?

- Eles não são imunes, são apenas muito resistentes, mas nunca são assintomáticos então é fácil identificá-los e se proteger.

- Eles se isolam? Porque não criei novos protocolos para isso, não sei a distância segura, as pessoas que não testei, estão mesmo vivendo sem máscara lá fora?  No momento em que sairmos dessa casa é o mundo que nos engole. Acordaremos com a ânsia de aonde ir, como se ocupar, o que parecer, o que postar, uma roda viva de estímulos e atrações e voltaremos a viver como hamsters atrás da cenourinha de felicidade buscando lá fora o que só existe aqui dentro.

- De casa ou de nós? Se for de nós é mais fácil porque basta levarmos conosco.

- Tem sempre outro palco onde não estamos, outra festa para a qual não fomos convidados, são sempre ingressos esgotados, o novo restaurante que não conhecemos, a nova música que não ouvimos nem ninguém ouviu, só passaram por ela. Como passarão por mim, como passarei por eles sem nunca mais saber como realmente estão. E não daremos mais os abraços que queríamos tanto, daremos um tapinha nas costas e falaremos por cima sem atenção, ninguém nunca mais ficará mudo, mas ninguém vai mais se ouvir. E seremos contaminados com a mesma doença de antes.

- Estamos imunizados por uma experiência que jamais esqueceremos. Existem negacionistas, mas são como a minoria barulhenta.

- Será? Eu sou grupo de risco. Vão indo e me contem. Estou me guardando para quando o Carnaval chegar.

- Esperamos por você na Sapucaí então.

- Combinado. Enquanto isso, deixa o crush de camisa preta aqui. Aprendi a fazer risoto.


*Ialorixá Wanda d´Omolu, abr/2020 (link)

**Pastor Henrique Vieira, abr/2020 (link)