5.11.23

Libertador

Ainda eram dez da manhã e eles já estavam lá, uns cinco ou seis em roda com suas camisas do time, cervejas na mão e aquele comportamento hetero masculino que transborda ao se reunirem – a surpreendente memória que sabe cada drible dos últimos 50 anos e o girar de cabeça a la Exorcista em direção à fêmea que passa com seu doce balanço a caminho... de casa mesmo, nesse caso. Os bares ainda nem tinham preparado mesas e cadeiras, os fogos de artificio já estouravam e o bairro ecoava cânticos da torcida tricolor, abrigando pelas esquinas torcedores e torcedoras em concentração.  Eu, que não coloco minha felicidade nas mãos de 1 homem, não colocaria nos pés de onze então planejava viver mais um sábado normal no balneário carioca.

Cerca de duzentos vôos trouxeram da Argentina torcedores do time rival. Me preocupei ao saber que quarenta porcento nem tinha ingresso, alguém monitoraria a volta deles? Achei que podiam estar fugindo de Milei e Massa e Boca ser só uma desculpa, não é possível que pessoas que vivam aquela hiperinflação gastem dinheiro assim. É possível, e eu nunca fugi daqui, vieram com Advincula e lotavam Copacabana em festa.

Podia ouvir meus passos ao caminhar na rua durante a partida, passava por amontoados de pessoas hipnotizadas em frente a TVs e quis me certificar de que assistiam mesmo a um jogo de futebol e não a notícias da guerra com aquela cara de apreensão. Vez ou outra emitiam gritos de “uuuuulll” – que corresponde a um gol perdido – até que a explosão do 1X0 foi sonoramente anunciada, seguida por 1X1, prorrogação e como nem garçons em restaurantes me atendiam, me rendi e liguei a TV. Um jogador simulava desmaio por um tapa na cara em uma atuação sofrível, outros batiam peito com peito estufados em discussões que sempre me deixam curiosa sobre qual língua usam, o técnico com uma duvidosa forma física para quem trabalha com esporte andava como uma fera enjaulada na beira do campo, 110 minutos de jogo e o juiz ia ampliando aquela tensão. A vantagem do streaming é que ele nos poupa a ansiedade, o delay na transmissão protege com os spoilers que vem das interjeições berradas pelos vizinhos muitos segundos antes de vermos o lance na tela.     

Fim de jogo no Maracanã, garanto que as únicas duas garrafas de cerveja da casa estão geladas para receber os combatentes que vem do estádio. Chegam eufóricos, com os olhos vermelhos. “Maconha?” Não, lágrimas. Pulam, me abraçam, contam que ligaram para o avô do caminho, “é o último campeonato dele”, choram mais. “Mas está doente?”, me espanto. “Não”. Ok.

Dias antes eu tinha recebido pedido de socorro de uma amiga querendo companhia para escapar de casa por algumas horas, “meu marido está péssimo”. Algo grave? “O Botafogo perdeu”. Eu mesma tinha deixado em outra casa um flamenguista que foi dos beijos aos monossílabos em 1 tempo mal jogado, saímos com a certeza de que eles se recuperariam até o meio da semana, quando viveriam tudo aquilo de novo por outro campeonato.

Rodadas depois, quando rubro-negros e botafoguenses já tinham urrado de alegria e esmagado os controles remotos de ódio diversas vezes em partidas diferentes, conversávamos sobre relacionamentos. Eu desaguava em lágrimas de dor e raiva jogando em cima de mim acusações de incapacidade, uma vontade de quebrar a casa, me autopunir pela suposta repetição de erros, uma fraqueza que fazia desaparecer as cores do mundo até então perfeitamente (des)harmônico e vibrante, ainda mais colorido pela vivência de um encontro. Tentando achar razão minimamente acolhedora para aquela falha terrível, solucei: “Por que escolhemos passar por isso?”. “Vai acontecer de novo”, ele respondeu, com a calma dos que estão lendo um manual de instruções. Para mim, era a força dos que praguejam contra quem queremos mal. Não era. Ele só sabia que todo ano tem Libertadores, Campeonato Brasileiro, Carioca, Taças e todo o carrossel de emoções que isso envolve - e a torcida está ali, transferindo para aqueles homens desconhecidos seus sentimentos mais intensos, tirando de si a responsabilidade exaustiva de lidar sozinha com eles. Como em toda paixão.

John Kennedy platinado mal acabara de fazer o gol histórico previsto pelo técnico e já diziam: em dezembro tem Mundial, boraaaaa.


(Em fevereiro tem Carnaval)