29.3.20

Diário de uma pandemia - vol III

Dia 5000

Leio que as Olimpíadas deverão ser realizadas em 2021, mas o nome oficial do evento será Tóquio 2020, ou seja, se já está complicado saber que dia é hoje hoje, no ano quem, chamando 21 de 20, será a zorra total. Perdi dois aniversários, não abro mais o Facebook e desde que aposentei minha agenda da Company é por ali que sei quem parabenizar, não tenho mais noção de tempo. Virei a avó maravilhosa de Downtown Abbey perguntando espantada: o que é fim de semana?

Houve uma época em que minha vida social cumpria o circuito Jobi-Guanabara-Diagonal. Já foi Prelude-Rodeo-Zapatta. Uma pré qualquer-Matriz-BB Lanches. O negócio desandou de tal forma que virou Skype-HangOut-Teams. Whereby- Whatsapp-Zoom. Alguém além de mim está pensando na quantidade de dados que essas empresas estão coletando de nós? Não sei se era possível abrirmos mais a nossa vida do que já fazíamos com os Iphones, mas penso em promover chats falsos para confundi-los. Assim que eu acabar a faxina, as comidas, reuniões, emails, mensagens profissionais e pessoais, yoga, treino de força e, estou esquecendo de alguma coisa? ah, banho! farei isso. E tem as lives dos artistas. Temiam que sofrêssemos de tédio, que tédio? Estou à beira da exaustão, já desenvolvi F.O.M.O. de lives! “Tá vendo a do X? Não? A do Y você viu? Não?! Putz, teria adorado.” Não íamos ficar com nós mesmos meditando? Não leríamos livros e assistiríamos a filmes e séries? Só eu não sei organizar meu tempo? Eu sou um fracasso completo em quarentena. Precisarei de uma quarentena da quarentena.  Desconectada, por favor.

 A cada hora varro a casa, tem um saci aqui dentro desarrumando tudo. Penso em viver de touca para cair menos cabelo pelo chão, me sinto o Capitão Caverna com queda capilar. Conto a um amigo careca a inveja que sinto dele nesse momento e recebo de volta a foto de seus dois cachorros, enormes, soltando tanto pelo que em 24 horas formam um terceiro cão de pequeno porte. Não posso reclamar, vejo mães em reuniões com filhos tentando arrancar seus fones, a última respondeu desatenta “tá, filha, faz o que quiser” e, pela tela, vi a criança vindo com umas facas e bananas da cozinha atrás dela.

E essa moda da semana de “home school”, os pais terem que ser professores além de profissionais, cozinheiras, babás e faxineiros, veio de quem? É como fase de videogame – vamos acrescentar mais uma dificuldadezinha agora, não me importo se vocês tem estrutura mental e equipamentos para isso. Vai ter mãe abandonando filho no Jockey como fazem com os gatos. No meio de uma reunião passou uma criança atrás do pai gritando “ACABOOOOOOOU!!!”, achamos que tinham descoberto a vacina, mas era só o fim da aula online do garoto.

Chegam vídeos da menina que foi ao banheiro durante uma reunião por Zoom. Pobre Jeniffer, viralizou mais rápido que a gripe mundialmente. Fato que até o fim do isolamento veremos cônjuges alheios pelados, telas compartilhadas com imagens indevidas, a ressaca emocional pós-home office vai ser pior do que a das festas adolescentes quando eu ainda sofria disso.

No prédio, vizinhos criaram um grupo de whatssapp para decisões urgentes. São mais de 100 apartamentos, nunca falei com ninguém além dos funcionários e uns poucos conhecidos lá de fora, sinto calafrios ao pensar em uma reunião de condomínio por mensagens, mas precisávamos fazer uma vaquinha para comprar itens de proteção para os porteiros. Aglomeração virtual é pior do que aniversário do Guanabara atualmente, não tenho esse dom. Quando começaram os questionamentos sobre a procedência do álcool gel quase gritei CALABOCA TODOMUNDO E PASSA A GRANA. Foi tanta discordância que subgrupos se criaram e o meu está organizando um panelaço interno contra a síndica hoje às 20h30.

É preciso organizar essas manifestações janelais, não sei quando é pró e quando é contra o Bozo, quando aplaudem se é para os profissionais de saúde ou para um saxofonista vizinho solitário. Edu mandou um vídeo onde uma pessoa gritava “Eu falei faraó” e os vizinhos mais incríveis responderam “êêê, faraó”. Amanhã à noite, ao som da primeira panela, farei o mesmo e já responderei “it´s a match” para quem me acompanhar. Luisa me diz que um homem gritou “a Terra é redonda, porraaaa”. Tememos que vire uma prática passarem a berrar angústias nas varandas. Terapeuticamente fará um bem danado ao berrante, mas não sei se o mesmo acontecerá com os demais.

Cancelei três reuniões para fazer comida, precisava de concentração e tempo, se incendiasse a casa nem bombeiros viriam para não encostar em nada. Encaro uns legumes e peitos de frango congelados. Vejo na receita que devo cortar cubinhos dos legumes, colocá-los no tabuleiro sem sobrepor uns aos outros, jogar azeite e pimenta e cozinhá-los a 180 graus. Esse forno não liga direito ou eu é que não sei ligá-lo? Tem help desk pra isso? Cadê a Ju, a Dores, secretárias fundamentais na vida de qualquer pessoa? Forno aceso, tabuleiro lá dentro, depois de 15 minutos devo virá-los. Por que cortei cubinhos tão pequenoooooosssss??? Vou passar dois meses virando beterraba, não comecei a ler nenhum livro, já perdi cinco lives assando cenouras! E esses frangos não podem dizer que estão prontos como o peru da Sadia no comercial, com aquele negocinho que pula?  Esse timer que está tocando, coloquei para qual preparo? Não sei mais vinte minutos desde o que já passaram!

Lembro do meu dia a dia no estúdio, a comunicação dando pane ao vivo, a mesa do diretor de vídeo travando no ar, aquele Lollapalloza interrompido por tempestade de raio sem previsão de retorno, correria no Controle de Exibição e equipe escondida nas vans, como eu era feliz. O Kid Abelha tem toda razão: as coisas são mais fáceis na televisão. 

Choro em tantos momentos e tão banais que já tenho mais medo de estar grávida ou com hormônios descontrolados do que com Covid. Gustavo me contou que logo nos primeiros dias dois amigos debatiam se estavam infectados porque apresentavam sintomas estranhos: diarréia e “um nozinho na garganta”. “Isso é angústia, boçal, bom que aos quarenta anos você vai aprender a lidar com suas emoções.” A pandemia deixa todos um pouco emotivos, não é o caso de ir ao hospital. Porém, se você chorar ao ver o Babu perdendo a prova do anjo no BBB... procura um médico. Psiquiatra, não infectologista. Eu só me emocionei com Sandy & Jr cantando no Altas Horas “não dá pra não pensar em você / tá cada vez mais difícil não poder te ver”. Mas ali onde eu chorei qualquer um chorava. Não? Eu vi Altas Horas.

Se sobrevivermos à pandemia terminaremos com TOC e bipolares, os psiquiatras serão os novos infectologistas - se alguém tiver dinheiro para pagá-los. Prevejo também um boom imobiliário devido ao volume de divórcios - se alguém tiver dinheiro para aluguel e advogado.

O Verissimo acha que estamos ficando burros e repetitivos. Ontem tive minha primeira conversa online pessoal que não envolvia coronavírus, foi tão aliviante. Combinamos de ver filmes para debater na próxima semana. Aqui também diversificarei, no próximo texto falarei sobre... É... vocês podem ler o acervo desse site?




22.3.20

Diário de uma pandemia - Vol II

Dia 11

Antes de começar esse volume II é necessária uma explicação sobre mim e o ato de cozinhar. Eu não tenho memórias de cenas na cozinha na infância. Na era Collor tivemos que demitir a cozinheira, disso saíram algumas piadas sobre os não-dotes culinários da minha mãe, e não sei como nos alimentamos até a crise passar. Meu pai é mestre em culinária de regatas: qualquer gororoba que se produza em um fogãozinho que balança para ser engolido por uma tripulação masculina esportista é um prato Michelin. Minha avó era um mistério, magicamente da cozinha dela alguém saía com minha iguaria preferida e nutrição básica infantil: bife com batatas fritas. E Nescau! Eu comia tão mal que minha tia secretamente colocava tudo o que encontrava e lhe parecia solúvel na minha bebida: ovo, Sustagen, biscoito Maria e sabe Deus mais o quê. Ela era hábil em uma receita – bala! Já adulta descobri que é palha italiana, mas para nós de férias em Petrópolis era “a bala da tia Zélia”. Nas festas até hoje temos “a mousse do tio Marcio”, que eu não tenho a menor ideia do que seja composta. É de chocolate, ponto.

Estranhamente, com essa mesma criação, minhas duas irmãs se tornaram chefs de cozinha. A comida na minha casa vem 95% desse delivery. Os outros 5% são meu café da manhã. Na adolescência, a cozinha do meu apartamento era o lugar onde minha mãe esperava ansiosamente por mim e minhas amigas quando voltávamos das festas e boites de madrugada para saber das fofocas. Sentávamos na mesa, sobre a bancada, e devíamos comer brigadeiro ou torrada com requeijão durante a resenha, era quase uma extensão da sala, assim como é a planta da minha casa hoje. “My kitchen is for dancing”, diz o pôster que eu ia comprar em uma hora qualquer.

Acordei no domingo, dia 6 da reclusão total, preparada para ir ao mercado. “Compra online” gritavam amigas no whatssapp para outra que quis se aventurar. Eu preciso apertar as laranjas para escolher as melhores, tenho que analisar os tomatinhos. Leio jornal em papel de manhã, livros impressos. Lia jornal em papel, cancelei antes de sentar para organizar meu cardápio da semana e a partir dele elaborar uma lista de compras. 40 minutos depois liguei aos prantos para minha irmã: eu nem sei como conservar minhas compras, qual é a cara de uma beterraba na gôndola? Vou falir em Ifood. Muito rapidamente em uma pandemia aprendemos que ombro virtual amigo é melhor do que Passiflora, o efeito calmante é imediato, sem contra-indicações. Parti para a rua.

Antes de sair voltei 3 vezes. E se eu sentir sede? (Por que sentiria tanta sede?) Bebe mais água logo. Esse é a roupa que vou usar em todas as saídas? Escolhe uma para não ter que desinfetar todas. Confere de novo se tem cartão e álcool gel na bolsa, essa bolsa é bem colada ao corpo para não encostar em nada? Entrei no carro já quase sem respirar. Levava junto uma lista de compras para meus pais. (Descobri nesse dia que meu pai é idoso - a classificação é pelo número de vezes que eles dizem que pre-ci-sam ir à rua. Estão ouvindo o encantador de idosos ou são parte da trama secreta que estão armando quando dão a desculpa esfarrapada de ir ao mercado a cada meia hora.)

O mercado escolhido me parecia amplo na memória: engano. Pessoas vinham se aproximando de forma tão ameaçadora que passei a fugir delas como se estivessem radioativas, virei Pac Man escapando dos fantasmas. Quando percebi uma mulher a um passo de mim na fila dos pães quase gritei como se fosse assalto. Comecei a me enfurecer com o desleixo dos distraídos, vão olhando para os produtos e não medem mentalmente a distância de um metro e meio, ao me afastar rápido corro o risco de trombar no humano de trás, as pessoas viraram carrinhos de bate-bate, o que houve com elas? Ou conosco.

“O arroz acabou? Acabou.” “Prezados clientes, não temos álcool.” “Amoooor, essa banana está boa? Filha, vem aqui com a mamãe.” Uma família inteira na rua??? Tira essa criança assintomática de perto de mim! Toquei em tantas coisas que tive a impressão de estar me esfregando nos produtos como cachorros se coçando nas paredes. E esse rosto que não para de coçar, não posso tocá-lo com as minhas mãos, por favor, nariz! Uma amiga liga, atendo em pânico. “Estou no mercado, está sendo horrível. Calma, as gotículas não voam sem espirro ou tosse. Tem certeza? Tenho fé. Alguém tossiu? Não. Então respira”. Paro na frente dos azeites, fecho os olhos, entoo mantras imaginários e começo um pranayama SOS. Abro os olhos lentamente e um homem me encara em um misto de interrogação, preocupação e “desocupa a seção de azeite porra”. Sorrio para ele, finalizo minhas compras e sigo para o carro.

A mala do meu carro, que até então só carregava cadeira, barraca de praia e um chapéu, fica lotada de sacolas como a Caravan dos meus pais nos tempos de inflação e Freeway na Barra.  Em uma casa com 8 pessoas a hora de guardar as compras virava linha de montagem, quase tocavam um sino recrutando todos os filhos para a Operação Despensa, e lá íamos nós tirando tudo das sacolas, guardando nos armários. Não passávamos Lisoform nos produtos, muito menos Lisoform no Lisoform! Não desinfetávamos o chão onde pousávamos as sacolas. Não olhávamos aquelas compras esbarrando em nossas roupas e pensávamos: é impossível eu escapar dessa, "eu desisto Senhor! Nunca serão". Éramos leves. O maior risco era alguém esconder os chocolates antes que os outros vissem. E se escondessem dentro dos guarda-chuvas fechados? Ninguém procuraria lá! E num dia nublado o pai pegaria esse guarda-chuva, carregaria até a padaria, só abriria ao sair e levaria uma enxurrada de Batons na cabeça no meio da rua.

Eu queria poder chamar meus irmãos para guardar as compras comigo.
Anotei na minha nova lista de coisas que vou fazer assim que esse episódio de Black Mirror acabar. Vai ser logo, só temos que respirar. Até na seção de azeite.     

15.3.20

Diário de uma pandemia - vol I


Dia 0
Periodicamente nos encontramos, há mais de dez anos, sempre perto dos aniversários. Dessa vez era o do Herbert. Muitos abraços com saudades, ele brincou que é grupo de risco por ter mais de 80 anos, Jussara disse que o marido está obcecado por coronavirus, fizemos graça de que ele é o mais jovem de nós, combinamos de reservar mesa na varanda na próxima vez já que o restaurante está sempre lotado, pena Helena não ter vindo, estava se sentindo mal, Roberto comentou que ela passou o Carnaval na Itália. Fez-se um silêncio. Nos olhamos por um tempo, Herbert pediu para experimentar o gin da Pat. “Ainda podemos beber em outros copos?” Hahaha, todos rimos, “me dá um gole do seu Moscow Mule”. Pedrinho passou na mesa, o show vai começar em breve no andar debaixo, daqui a pouco descemos, Pat comentou que o marido, dono de casas noturnas, está preocupado de acontecer aqui o mesmo que na Europa, se fecharem tudo como vai ser? Vamos pra praça, Pat! Fazemos como Pedrinho, passamos o chapéu entre o público! Garçom, traz por favor mais um gin. Adorei esse polvo, vai ser nosso novo prato oficial. Ainda vamos poder nos reunir? Trazemos álcool gel, Rosa tem tanto que colocou na porta de casa, na mesa do escritório, peço um pouco hahahaha, que doida, traz o nosso com gelo, açúcar e limão! Vamos pedir o Uber? Toca aí o botão para esse sinal fechar.

Do Havaí, irmã manda um vídeo lindo da chegada da nossa mãe para visitá-la.


Dia 1
Acordei com uma mensagem do Lucas no grupo da família. Estava indo para casa, só voltaria ao escritório em abril. O governo da Dinamarca tinha decretado medidas preventivas. A Primeira Ministra proibiu eventos com mais de 100 pessoas, a orientação era evitar contato na rua. Os bares e restaurantes seriam fechados e os serviços públicos colocaram os funcionários em home office. Fiquei imaginando-o sozinho no apartamento de decoração escandinava falando conosco por Skype, o frio lá fora, as ruas vazias. Sua voz me fez visualizar, pela primeira vez, uma epidemia.

Fui tomar banho. Meus grupos de whatssapp lotaram de mensagens. Ouvi o áudio de um médico do Incor relatando a contaminação da equipe que atende infectados em outros países. Ele enumerava leitos de UTI em São Paulo, concluindo que o Brasil não daria conta de tantos doentes. Ao meio dia esse “áudio do Jatene” já tinha chegado diversas vezes até mim e circulado tão rapidamente quanto um vírus, mensagens diziam ser fake news, mais mensagens diziam ser fake que era fake news, reportagens na web declaravam a autenticidade do relato.

No escritório tivemos uma reunião para saber orientações do Comitê de Gestão de Crise.

Jorge sugeriu cumprimentarmos uns aos outros com um toquinho de pés. Eu sugeri juntar as mãos na altura do peito e dizer Namastê.

Dudu me ofereceu um pote de 500 ml de álcool gel. Disse “consegui um carregamento, chega na terça-feira. Só estou avisando aos mais próximos”. Pedi dois.

Recebi uma matéria que ensina a limpar Iphone com uma solução de 1:1 de água e álcool, importante desligar o telefone antes da limpeza.

Paula mandou uma foto das prateleiras do Zona Sul sem papel higiênico. Percebi que sou péssima em preparação para fim do mundo: fiquei sem gasolina na greve dos caminhoneiros, sem água mineral no começo do ano, servi meu ultimo macarrão ao meu pai anteontem quando foi me visitar. Chequei com Julia, ela comprou um fardo de papel higiênico. Quando passamos a estocar fardos?

Do Havaí, mãe e irmã mandam fotos em uma praia com tartarugas gigantes.


Dia 2
Além da garrafa de água mineral passarei a levar também álcool gel para a academia. Um exercício, uma camada de álcool nas mãos e braços. Olhei os aparelhos onde preciso sentar para a musculação, não sabia como desinfetá-los. Do paninho disposto na prateleira me sorriram bilhões de germes e vírus. Além da garrafa de água mineral passarei a levar também álcool gel e Perfex para a academia.

Um senhor de 87 anos também fazia sua série, mais ninguém além de nós. Sei que ele tem essa idade porque perguntei ao professor depois de um leg press, uma cadeira extensora e uma série de bíceps preocupada por ele não ter lavado a mão. Pensei em ligar para a família irresponsável dele ou ir à polícia. Estão tentando assassiná-lo.
  
Tínhamos marcado teste de luz no novo cenário, quando cheguei ao subsolo onde ficam os estúdios comecei a contar o número de pessoas circulando por ali sem janela. Na sala de vídeo éramos quase 10 olhando para os monitores. Alternei entre a empolgação pelo programa novo e o TOC crescente, mas não falei nada. Só me esquivei de tocar no meu próprio rosto, mesmo com alergia nos olhos.

Passei a evitar maçanetas, testar abrir portas com os cotovelos, apertar botões de elevador com canetas, li que água sanitária diluida tambem pode ser usada em teclados e mouses se acabar o álcool. Desliguei meu Iphone pela primeira vez para seu novo banho diario.

Vou ao Zona Sul comprar minhas laranjas pera semanais para café da manhã. Tantas pessoas entram com carrinhos de tamanhos que pensei só existirem no Freeway que começo a suar de nervosismo, saio com 2 dúzias de laranja lima por engano.

Leio Domenico de Masi no jornal. Diz que, na Itália, a pandemia se manifestou em quatro etapas: a primeira é de descrença; a segunda é de grande caos; a terceira é espectral; a quarta é o acomodamento da resignação.


Três pessoas vieram me abraçar hoje. Em dois casos paramos antes de nos tocarmos. Um eu não via há tempos então não resistimos, mas logo chegou uma pessoa com álcool gel para passarmos nos braços. Percebi que sou querida, vou sentir falta disso.

Do Havaí, mãe e irmã mandam fotos do passeio a um vulcão com o irmão que chegou para férias.


Dia 3
Em um grupo de whatssapp amigos não brigam mais por politica, agora se acusam de irresponsáveis por não estarem fechados em casa. Penso que em breve o contato majoritário com as pessoas pode ser por ali.

Em outro grupo, Maria relata seus cuidados com a gravidez em Washington, não está mais saindo para trabalhar e quer saber como estamos. Pedro diz que lá na Alemanha os supermercados parecem saqueados. Christiano acha que o pior está por vir e mostra seu carrinho de supermercado em São Paulo com 2 fardos de papel higiênico, sob meus protestos. Pergunto se com pasta de dente ninguém se preocupa. Combinamos de quem encontrar álcool gel em sua cidade mandar por correio para os demais.

Um DJ faz um Stories da sua festa lotada e escreve “Resistência”. Alguém comenta “Quero ver resistência com febre de 40 graus e avós mortos”.

Do Havaí, irmã liga com um tom preocupado dizendo que desistiram da ida à California. Não sabem se o espaço aéreo americano será fechado, se mãe e irmão poderão voltar ao Brasil na data marcada. Debatemos o risco da nossa mãe asmática pegar avião e ir a aeroportos.  

Ligo para o Rony, pegamos o barco e rumamos para as Cagarras, longe de qualquer aglomeração e sinal de celular. Levo meu livro da Elena Ferrante – é assim que quero pensar na Itália, Lenu e Lila nas praias de Ischia. Para não enjoar tomo meio Meclin, e ao chegar em casa hiberno por quatorze horas.


Dia 4
Acordo renovada, comemoro que o descanso deve ter fortalecido meu sistema imunológico! Nos raros momentos em que abri os olhos não conseguia decifrar as mensagens pela embriaguez do remédio e escuro sem óculos. Senti a leveza de passar quase um dia sem o bombardeio por Iphone. Tenho mais de cem mensagens não lidas.

Abro a do Havaí. Mãe, irmã e irmão mandam vídeo onde todos dançam na sala de casa. Ninguém supera o cunhado dançando.

Ligo para a companhia aérea, compro uma passagem em promoção, corro para o Galeão com meia dúzia de peças na mala e em vinte e quatro horas começo minha quarentena em Maui.

Ao chegar no aeroporto, informam que durante meu trajeto a American Airlines suspendeu todos os vôos.

Coloco meus fones higienizados, escolho uma playlist, resgato uma mensagem de Julia com um trecho de texto do Juan Pablo Villalobos - en tu cuarentena o en la mía? Dou "encaminhar".

1.3.20

Um saravá pra folia (teu samba é uma reza)


E agora, José? A festa acabou. Como será o amanhã?

Clara, abre o pano do passado.

A sala era grande, enorme, sofás, janelões, a TV era um aparelho anacrônico no canto e eu ficava ali na madrugada, entre os quadros dos antepassados cujos olhos de fotografia me acompanhavam aonde quer que eu fosse. Minha meta era conseguir assistir até a última escola a desfilar, mas nunca conseguia, meus olhinhos de criança ardiam de sono antes, derrotados apesar da vontade de ao menos ver a Beija Flor. A Beija Flor do Joãozinho Trinta, ratos e urubus. Aquele Cristo proibido. Eu queria ter sido um daqueles mendigos.

Meus bailes eram no Clube Petropolitano. A orquestra tocava marchinhas e sambas clássicos no salão, meus primos mais velhos cortavam buracos para os olhos nas fronhas que viravam máscaras, os homens se fantasiavam de mulheres e ficávamos no muro da casa, eufóricos, munidos de garrafinhas para jogar água nos carros que passavam na rua de paralelepípedos da cidade imperial. Mais tarde passei a ir aos bailes à noite e acompanhar a orquestra que deixava o palco arrastando os foliões do salão para a rua. Até hoje eu sou aquela que fica depois do cortejo com a bateria dos blocos cantando os sambas mais lindos, deixando tudo no cordão.

Na Gamboa, a Rua do Propósito fica na Praça da Harmonia.

Eu queria ter estado nos pagodes da casa da Tia Ciata, na Pequena África do Rio de Janeiro no início do século. Queria ter ouvido Donga, João da Baiana e Sinhô versarem sambas de improviso. Queria ter visto Paulo de Oliveira criar trajes de gala nas cores da escola para impor respeito aos integrantes da sua Portela. Queria ter presenciado Noel Rosa mudar a letra de Pierrô Apaixonado, rindo da dor do amigo Heitor dos Prazeres.

Eu não nasci no samba, foi um enredo qualquer que nos juntou, um batuque que atravessou meu caminho e caí na rua atrás do Bola Preta. Caía uma chuva, eu caí de amores. Mas esse amor já estava lá. Okê, Okê, Oxossi! Aquelas palavras que eu repetia cantando sem entender me levaram a fazer o caminho contrário ao dos baianos que desembarcaram por aqui com seu samba de roda, acabei no Gantois ouvindo tudo aquilo de novo e pensando “ah, então é isso?”. Epa hei, Iansã!

Eu não nasci no samba, mas me tornei a colombina que entrou num butiquim, bebeu, bebeu, saiu assim, assim dizendo: pierrô cacete, vai tomar sorvete com o arlequim porque tudo passa, amor. A quarta-feira sempre vem, não importa. Eu estou aqui, no temporal na Sapucaí aplaudindo a Mangueira, vibrando emocionada ao ver passar pregado na cruz o Jesus da gente, mesmo que na cor e estrada ele não se pareça comigo. Nós temos muito a ver no que bate no peito. Hoje ele não foi proibido, olha por nós.

Procuro por mim no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão e sempre me encontro.