Antes de começar esse volume II é
necessária uma explicação sobre mim e o ato de cozinhar. Eu não tenho memórias
de cenas na cozinha na infância. Na era Collor tivemos que demitir a
cozinheira, disso saíram algumas piadas sobre os não-dotes culinários da minha
mãe, e não sei como nos alimentamos até a crise passar. Meu pai é mestre em
culinária de regatas: qualquer gororoba que se produza em um fogãozinho que
balança para ser engolido por uma tripulação masculina esportista é um prato
Michelin. Minha avó era um mistério, magicamente da cozinha dela alguém saía com
minha iguaria preferida e nutrição básica infantil: bife com batatas
fritas. E Nescau! Eu comia tão mal que minha tia secretamente colocava tudo o
que encontrava e lhe parecia solúvel na minha bebida: ovo, Sustagen, biscoito
Maria e sabe Deus mais o quê. Ela era hábil em uma receita – bala! Já adulta descobri
que é palha italiana, mas para nós de férias em Petrópolis era “a bala da tia Zélia”.
Nas festas até hoje temos “a mousse do tio Marcio”, que eu não tenho a menor
ideia do que seja composta. É de chocolate, ponto.
Estranhamente, com essa mesma criação,
minhas duas irmãs se tornaram chefs de cozinha. A comida na minha casa vem
95% desse delivery. Os outros 5% são meu café da manhã. Na adolescência, a
cozinha do meu apartamento era o lugar onde minha mãe esperava ansiosamente por mim e minhas amigas quando voltávamos das festas e boites de madrugada para saber das
fofocas. Sentávamos na mesa, sobre a bancada, e devíamos comer brigadeiro ou torrada
com requeijão durante a resenha, era quase uma extensão da sala, assim como é a
planta da minha casa hoje. “My kitchen is for dancing”, diz o pôster que eu ia
comprar em uma hora qualquer.
Acordei no domingo, dia 6 da reclusão
total, preparada para ir ao mercado. “Compra online” gritavam amigas no
whatssapp para outra que quis se aventurar. Eu preciso apertar as laranjas para
escolher as melhores, tenho que analisar os tomatinhos. Leio jornal em papel de
manhã, livros impressos. Lia jornal em papel, cancelei antes de sentar para
organizar meu cardápio da semana e a partir dele elaborar uma lista de compras.
40 minutos depois liguei aos prantos para minha irmã: eu nem sei como conservar
minhas compras, qual é a cara de uma beterraba na gôndola? Vou falir em Ifood.
Muito rapidamente em uma pandemia aprendemos que ombro virtual amigo é melhor
do que Passiflora, o efeito calmante é imediato, sem contra-indicações. Parti
para a rua.
Antes de sair voltei 3 vezes. E se
eu sentir sede? (Por que sentiria tanta sede?) Bebe mais água logo. Esse é a roupa que vou usar em
todas as saídas? Escolhe uma para não ter que desinfetar todas. Confere de novo
se tem cartão e álcool gel na bolsa, essa bolsa é bem colada ao corpo para não encostar
em nada? Entrei no carro já quase sem respirar. Levava junto uma lista de
compras para meus pais. (Descobri nesse dia que meu pai é idoso - a classificação é pelo número de vezes que
eles dizem que pre-ci-sam ir à rua. Estão ouvindo o encantador de idosos ou são parte
da trama secreta que estão armando quando dão a desculpa esfarrapada de ir ao mercado a cada meia
hora.)
O mercado escolhido me parecia
amplo na memória: engano. Pessoas vinham se aproximando de forma tão ameaçadora
que passei a fugir delas como se estivessem radioativas, virei Pac Man escapando dos fantasmas. Quando percebi uma
mulher a um passo de mim na fila dos pães quase gritei como se fosse
assalto. Comecei a me enfurecer com o desleixo dos distraídos, vão olhando para
os produtos e não medem mentalmente a distância de um metro e meio, ao
me afastar rápido corro o risco de trombar no humano de trás, as pessoas
viraram carrinhos de bate-bate, o que houve com elas? Ou conosco.
“O arroz acabou? Acabou.” “Prezados
clientes, não temos álcool.” “Amoooor, essa banana está boa? Filha, vem aqui
com a mamãe.” Uma família inteira na rua??? Tira essa criança assintomática de
perto de mim! Toquei em tantas coisas que tive a impressão de estar me
esfregando nos produtos como cachorros se coçando nas paredes. E esse rosto que
não para de coçar, não posso tocá-lo com as minhas mãos, por favor, nariz! Uma
amiga liga, atendo em pânico. “Estou no mercado, está sendo horrível. Calma, as gotículas não voam sem espirro ou tosse. Tem certeza? Tenho fé. Alguém tossiu? Não. Então respira”. Paro na frente dos azeites, fecho
os olhos, entoo mantras imaginários e começo um pranayama SOS. Abro os olhos lentamente e um homem me encara em um misto de
interrogação, preocupação e “desocupa a seção de azeite porra”. Sorrio para
ele, finalizo minhas compras e sigo para o carro.
A mala do meu carro, que até então
só carregava cadeira, barraca de praia e um chapéu, fica lotada de sacolas como
a Caravan dos meus pais nos tempos de inflação e Freeway na Barra. Em uma casa com 8 pessoas a hora de guardar as
compras virava linha de montagem, quase tocavam um sino recrutando todos os
filhos para a Operação Despensa, e lá íamos nós tirando tudo das sacolas,
guardando nos armários. Não passávamos Lisoform nos produtos, muito menos Lisoform no Lisoform! Não desinfetávamos
o chão onde pousávamos as sacolas. Não olhávamos aquelas compras esbarrando em
nossas roupas e pensávamos: é impossível eu escapar dessa, "eu desisto Senhor! Nunca serão". Éramos leves. O
maior risco era alguém esconder os chocolates antes que os outros vissem. E se
escondessem dentro dos guarda-chuvas fechados? Ninguém
procuraria lá! E num dia nublado o pai pegaria esse guarda-chuva, carregaria
até a padaria, só abriria ao sair e levaria uma enxurrada de Batons na cabeça no meio da rua.
Eu queria poder chamar meus irmãos
para guardar as compras comigo.
Anotei na minha nova lista de coisas que vou fazer assim que esse episódio de Black Mirror acabar. Vai ser logo, só temos que respirar. Até na seção de azeite.
Anotei na minha nova lista de coisas que vou fazer assim que esse episódio de Black Mirror acabar. Vai ser logo, só temos que respirar. Até na seção de azeite.
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