22.3.20

Diário de uma pandemia - Vol II

Dia 11

Antes de começar esse volume II é necessária uma explicação sobre mim e o ato de cozinhar. Eu não tenho memórias de cenas na cozinha na infância. Na era Collor tivemos que demitir a cozinheira, disso saíram algumas piadas sobre os não-dotes culinários da minha mãe, e não sei como nos alimentamos até a crise passar. Meu pai é mestre em culinária de regatas: qualquer gororoba que se produza em um fogãozinho que balança para ser engolido por uma tripulação masculina esportista é um prato Michelin. Minha avó era um mistério, magicamente da cozinha dela alguém saía com minha iguaria preferida e nutrição básica infantil: bife com batatas fritas. E Nescau! Eu comia tão mal que minha tia secretamente colocava tudo o que encontrava e lhe parecia solúvel na minha bebida: ovo, Sustagen, biscoito Maria e sabe Deus mais o quê. Ela era hábil em uma receita – bala! Já adulta descobri que é palha italiana, mas para nós de férias em Petrópolis era “a bala da tia Zélia”. Nas festas até hoje temos “a mousse do tio Marcio”, que eu não tenho a menor ideia do que seja composta. É de chocolate, ponto.

Estranhamente, com essa mesma criação, minhas duas irmãs se tornaram chefs de cozinha. A comida na minha casa vem 95% desse delivery. Os outros 5% são meu café da manhã. Na adolescência, a cozinha do meu apartamento era o lugar onde minha mãe esperava ansiosamente por mim e minhas amigas quando voltávamos das festas e boites de madrugada para saber das fofocas. Sentávamos na mesa, sobre a bancada, e devíamos comer brigadeiro ou torrada com requeijão durante a resenha, era quase uma extensão da sala, assim como é a planta da minha casa hoje. “My kitchen is for dancing”, diz o pôster que eu ia comprar em uma hora qualquer.

Acordei no domingo, dia 6 da reclusão total, preparada para ir ao mercado. “Compra online” gritavam amigas no whatssapp para outra que quis se aventurar. Eu preciso apertar as laranjas para escolher as melhores, tenho que analisar os tomatinhos. Leio jornal em papel de manhã, livros impressos. Lia jornal em papel, cancelei antes de sentar para organizar meu cardápio da semana e a partir dele elaborar uma lista de compras. 40 minutos depois liguei aos prantos para minha irmã: eu nem sei como conservar minhas compras, qual é a cara de uma beterraba na gôndola? Vou falir em Ifood. Muito rapidamente em uma pandemia aprendemos que ombro virtual amigo é melhor do que Passiflora, o efeito calmante é imediato, sem contra-indicações. Parti para a rua.

Antes de sair voltei 3 vezes. E se eu sentir sede? (Por que sentiria tanta sede?) Bebe mais água logo. Esse é a roupa que vou usar em todas as saídas? Escolhe uma para não ter que desinfetar todas. Confere de novo se tem cartão e álcool gel na bolsa, essa bolsa é bem colada ao corpo para não encostar em nada? Entrei no carro já quase sem respirar. Levava junto uma lista de compras para meus pais. (Descobri nesse dia que meu pai é idoso - a classificação é pelo número de vezes que eles dizem que pre-ci-sam ir à rua. Estão ouvindo o encantador de idosos ou são parte da trama secreta que estão armando quando dão a desculpa esfarrapada de ir ao mercado a cada meia hora.)

O mercado escolhido me parecia amplo na memória: engano. Pessoas vinham se aproximando de forma tão ameaçadora que passei a fugir delas como se estivessem radioativas, virei Pac Man escapando dos fantasmas. Quando percebi uma mulher a um passo de mim na fila dos pães quase gritei como se fosse assalto. Comecei a me enfurecer com o desleixo dos distraídos, vão olhando para os produtos e não medem mentalmente a distância de um metro e meio, ao me afastar rápido corro o risco de trombar no humano de trás, as pessoas viraram carrinhos de bate-bate, o que houve com elas? Ou conosco.

“O arroz acabou? Acabou.” “Prezados clientes, não temos álcool.” “Amoooor, essa banana está boa? Filha, vem aqui com a mamãe.” Uma família inteira na rua??? Tira essa criança assintomática de perto de mim! Toquei em tantas coisas que tive a impressão de estar me esfregando nos produtos como cachorros se coçando nas paredes. E esse rosto que não para de coçar, não posso tocá-lo com as minhas mãos, por favor, nariz! Uma amiga liga, atendo em pânico. “Estou no mercado, está sendo horrível. Calma, as gotículas não voam sem espirro ou tosse. Tem certeza? Tenho fé. Alguém tossiu? Não. Então respira”. Paro na frente dos azeites, fecho os olhos, entoo mantras imaginários e começo um pranayama SOS. Abro os olhos lentamente e um homem me encara em um misto de interrogação, preocupação e “desocupa a seção de azeite porra”. Sorrio para ele, finalizo minhas compras e sigo para o carro.

A mala do meu carro, que até então só carregava cadeira, barraca de praia e um chapéu, fica lotada de sacolas como a Caravan dos meus pais nos tempos de inflação e Freeway na Barra.  Em uma casa com 8 pessoas a hora de guardar as compras virava linha de montagem, quase tocavam um sino recrutando todos os filhos para a Operação Despensa, e lá íamos nós tirando tudo das sacolas, guardando nos armários. Não passávamos Lisoform nos produtos, muito menos Lisoform no Lisoform! Não desinfetávamos o chão onde pousávamos as sacolas. Não olhávamos aquelas compras esbarrando em nossas roupas e pensávamos: é impossível eu escapar dessa, "eu desisto Senhor! Nunca serão". Éramos leves. O maior risco era alguém esconder os chocolates antes que os outros vissem. E se escondessem dentro dos guarda-chuvas fechados? Ninguém procuraria lá! E num dia nublado o pai pegaria esse guarda-chuva, carregaria até a padaria, só abriria ao sair e levaria uma enxurrada de Batons na cabeça no meio da rua.

Eu queria poder chamar meus irmãos para guardar as compras comigo.
Anotei na minha nova lista de coisas que vou fazer assim que esse episódio de Black Mirror acabar. Vai ser logo, só temos que respirar. Até na seção de azeite.     

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