15.3.20

Diário de uma pandemia - vol I


Dia 0
Periodicamente nos encontramos, há mais de dez anos, sempre perto dos aniversários. Dessa vez era o do Herbert. Muitos abraços com saudades, ele brincou que é grupo de risco por ter mais de 80 anos, Jussara disse que o marido está obcecado por coronavirus, fizemos graça de que ele é o mais jovem de nós, combinamos de reservar mesa na varanda na próxima vez já que o restaurante está sempre lotado, pena Helena não ter vindo, estava se sentindo mal, Roberto comentou que ela passou o Carnaval na Itália. Fez-se um silêncio. Nos olhamos por um tempo, Herbert pediu para experimentar o gin da Pat. “Ainda podemos beber em outros copos?” Hahaha, todos rimos, “me dá um gole do seu Moscow Mule”. Pedrinho passou na mesa, o show vai começar em breve no andar debaixo, daqui a pouco descemos, Pat comentou que o marido, dono de casas noturnas, está preocupado de acontecer aqui o mesmo que na Europa, se fecharem tudo como vai ser? Vamos pra praça, Pat! Fazemos como Pedrinho, passamos o chapéu entre o público! Garçom, traz por favor mais um gin. Adorei esse polvo, vai ser nosso novo prato oficial. Ainda vamos poder nos reunir? Trazemos álcool gel, Rosa tem tanto que colocou na porta de casa, na mesa do escritório, peço um pouco hahahaha, que doida, traz o nosso com gelo, açúcar e limão! Vamos pedir o Uber? Toca aí o botão para esse sinal fechar.

Do Havaí, irmã manda um vídeo lindo da chegada da nossa mãe para visitá-la.


Dia 1
Acordei com uma mensagem do Lucas no grupo da família. Estava indo para casa, só voltaria ao escritório em abril. O governo da Dinamarca tinha decretado medidas preventivas. A Primeira Ministra proibiu eventos com mais de 100 pessoas, a orientação era evitar contato na rua. Os bares e restaurantes seriam fechados e os serviços públicos colocaram os funcionários em home office. Fiquei imaginando-o sozinho no apartamento de decoração escandinava falando conosco por Skype, o frio lá fora, as ruas vazias. Sua voz me fez visualizar, pela primeira vez, uma epidemia.

Fui tomar banho. Meus grupos de whatssapp lotaram de mensagens. Ouvi o áudio de um médico do Incor relatando a contaminação da equipe que atende infectados em outros países. Ele enumerava leitos de UTI em São Paulo, concluindo que o Brasil não daria conta de tantos doentes. Ao meio dia esse “áudio do Jatene” já tinha chegado diversas vezes até mim e circulado tão rapidamente quanto um vírus, mensagens diziam ser fake news, mais mensagens diziam ser fake que era fake news, reportagens na web declaravam a autenticidade do relato.

No escritório tivemos uma reunião para saber orientações do Comitê de Gestão de Crise.

Jorge sugeriu cumprimentarmos uns aos outros com um toquinho de pés. Eu sugeri juntar as mãos na altura do peito e dizer Namastê.

Dudu me ofereceu um pote de 500 ml de álcool gel. Disse “consegui um carregamento, chega na terça-feira. Só estou avisando aos mais próximos”. Pedi dois.

Recebi uma matéria que ensina a limpar Iphone com uma solução de 1:1 de água e álcool, importante desligar o telefone antes da limpeza.

Paula mandou uma foto das prateleiras do Zona Sul sem papel higiênico. Percebi que sou péssima em preparação para fim do mundo: fiquei sem gasolina na greve dos caminhoneiros, sem água mineral no começo do ano, servi meu ultimo macarrão ao meu pai anteontem quando foi me visitar. Chequei com Julia, ela comprou um fardo de papel higiênico. Quando passamos a estocar fardos?

Do Havaí, mãe e irmã mandam fotos em uma praia com tartarugas gigantes.


Dia 2
Além da garrafa de água mineral passarei a levar também álcool gel para a academia. Um exercício, uma camada de álcool nas mãos e braços. Olhei os aparelhos onde preciso sentar para a musculação, não sabia como desinfetá-los. Do paninho disposto na prateleira me sorriram bilhões de germes e vírus. Além da garrafa de água mineral passarei a levar também álcool gel e Perfex para a academia.

Um senhor de 87 anos também fazia sua série, mais ninguém além de nós. Sei que ele tem essa idade porque perguntei ao professor depois de um leg press, uma cadeira extensora e uma série de bíceps preocupada por ele não ter lavado a mão. Pensei em ligar para a família irresponsável dele ou ir à polícia. Estão tentando assassiná-lo.
  
Tínhamos marcado teste de luz no novo cenário, quando cheguei ao subsolo onde ficam os estúdios comecei a contar o número de pessoas circulando por ali sem janela. Na sala de vídeo éramos quase 10 olhando para os monitores. Alternei entre a empolgação pelo programa novo e o TOC crescente, mas não falei nada. Só me esquivei de tocar no meu próprio rosto, mesmo com alergia nos olhos.

Passei a evitar maçanetas, testar abrir portas com os cotovelos, apertar botões de elevador com canetas, li que água sanitária diluida tambem pode ser usada em teclados e mouses se acabar o álcool. Desliguei meu Iphone pela primeira vez para seu novo banho diario.

Vou ao Zona Sul comprar minhas laranjas pera semanais para café da manhã. Tantas pessoas entram com carrinhos de tamanhos que pensei só existirem no Freeway que começo a suar de nervosismo, saio com 2 dúzias de laranja lima por engano.

Leio Domenico de Masi no jornal. Diz que, na Itália, a pandemia se manifestou em quatro etapas: a primeira é de descrença; a segunda é de grande caos; a terceira é espectral; a quarta é o acomodamento da resignação.


Três pessoas vieram me abraçar hoje. Em dois casos paramos antes de nos tocarmos. Um eu não via há tempos então não resistimos, mas logo chegou uma pessoa com álcool gel para passarmos nos braços. Percebi que sou querida, vou sentir falta disso.

Do Havaí, mãe e irmã mandam fotos do passeio a um vulcão com o irmão que chegou para férias.


Dia 3
Em um grupo de whatssapp amigos não brigam mais por politica, agora se acusam de irresponsáveis por não estarem fechados em casa. Penso que em breve o contato majoritário com as pessoas pode ser por ali.

Em outro grupo, Maria relata seus cuidados com a gravidez em Washington, não está mais saindo para trabalhar e quer saber como estamos. Pedro diz que lá na Alemanha os supermercados parecem saqueados. Christiano acha que o pior está por vir e mostra seu carrinho de supermercado em São Paulo com 2 fardos de papel higiênico, sob meus protestos. Pergunto se com pasta de dente ninguém se preocupa. Combinamos de quem encontrar álcool gel em sua cidade mandar por correio para os demais.

Um DJ faz um Stories da sua festa lotada e escreve “Resistência”. Alguém comenta “Quero ver resistência com febre de 40 graus e avós mortos”.

Do Havaí, irmã liga com um tom preocupado dizendo que desistiram da ida à California. Não sabem se o espaço aéreo americano será fechado, se mãe e irmão poderão voltar ao Brasil na data marcada. Debatemos o risco da nossa mãe asmática pegar avião e ir a aeroportos.  

Ligo para o Rony, pegamos o barco e rumamos para as Cagarras, longe de qualquer aglomeração e sinal de celular. Levo meu livro da Elena Ferrante – é assim que quero pensar na Itália, Lenu e Lila nas praias de Ischia. Para não enjoar tomo meio Meclin, e ao chegar em casa hiberno por quatorze horas.


Dia 4
Acordo renovada, comemoro que o descanso deve ter fortalecido meu sistema imunológico! Nos raros momentos em que abri os olhos não conseguia decifrar as mensagens pela embriaguez do remédio e escuro sem óculos. Senti a leveza de passar quase um dia sem o bombardeio por Iphone. Tenho mais de cem mensagens não lidas.

Abro a do Havaí. Mãe, irmã e irmão mandam vídeo onde todos dançam na sala de casa. Ninguém supera o cunhado dançando.

Ligo para a companhia aérea, compro uma passagem em promoção, corro para o Galeão com meia dúzia de peças na mala e em vinte e quatro horas começo minha quarentena em Maui.

Ao chegar no aeroporto, informam que durante meu trajeto a American Airlines suspendeu todos os vôos.

Coloco meus fones higienizados, escolho uma playlist, resgato uma mensagem de Julia com um trecho de texto do Juan Pablo Villalobos - en tu cuarentena o en la mía? Dou "encaminhar".

2 comentários:

zélia disse...

Me arriscar em comentar algo escrito pela Bruna é SUICIDIO....mas bem...como sempre é sensacional...uma mistura de angústia pela crise...e divertimento como ela escreve...Parabéns minha escritora preferida

rerodriguesmartins disse...

Consigo visualizar cada situação perfeitamente descrita por você. Adoro ler sentindo que vejo não apenas o que está escrito mas o que passa dentr do coração. Parabéns!