19.7.20

Diário de uma pandemia - vol IX (Bat-histórias y bat-incertezas)

Dia 130

A ideia era conhecer histórias de maias e astecas, explorar a Riviera mexicana, mas nos apaixonamos de tal forma por Tulum que parecíamos viver um catálogo da Richards, no melhor sentido disso – todas as pessoas eram lindas, todos os dias de praia tinham aquele azul de um Pantone deslumbrante, sorríamos inebriados tomando margaritas em nosso rooftop, mesmo as histórias mais fantasiosas de guias duvidosos em ruínas que por vezes pareciam um pouco disneylândicas nos faziam felizes, para sempre teríamos Chichén-Itzá. E assim fomos nadar, acompanhados por um casal de alemães, em um cenote habitado por morcegos. Quando o instrutor nos mostrou as fotos das cavernas onde mergulharíamos tudo parecia divertidíssimo, aqueles lagos subterrâneos inéditos, excitantes, foi nesse clima que Marcelo olhou a foto dos morceguinhos no teto de uma das cavernas e proclamou a frase clássica da viagem: pero é una película de horror! Tivemos, os quatro e o instrutor, um ataque de riso, vestimos as roupas de neoprene alugadas no local (que só de lembrar hoje me deixam com vontade de pular em uma banheira de álcool 70), pegamos os snorkels e nos jogamos na água. Julia não foi: “não consigo respirar com isso”. Os snorkels, isso. De volta ao Brasil, Lucas contou que o cunhado médico não reagiu bem ao relato da aventura, achou muito imprudente nadarmos em uma caverna com morcegos. Que malucos nós, hahaha, nem sabíamos.

Anos depois alugamos uma casa na praia do Felix para férias de verão. Debruçada sobre o mar, a parte de cima da casa era toda aberta – sala, cozinha, nada tinha porta, parede nem vidro, uma total integração com a natureza que só nos exigia esconder todas as comidas à noite para não serem levadas pelos macacos. Em um mezanino nesse lugar dormia o Lucas. “Lucas, desce, vem dormir com a gente, colocamos seu colchão no nosso quarto”. Não queria, achava que os macacos não o levariam, olha a oportunidade de dormir naquele céu de estrelas entre árvores, só precisava de repelente (temíamos a zyka). Em uma noite Lucas estava lendo, deitado em seu berço esplêndido sob a lua, ouviu umas pegadinhas no chão de madeira, um farfalhar de asas, encarou dois olhinhos admirando-o na natureza – um morceguinho! Talvez um amigo remoto mexicano também em viagem?  

Um dia um chinês na província de Wuhan comeu um morcego, ou comeu um mamífero que comeu um morcego. Essa sequência de “quem come quem” já tinha dado tanta confusão na vida, mas nunca como naquele momento. Morcegos – o cunhado do Lucas estava certo – são notórios transmissores de doenças, e dessa vez a epidemia se alastrou pelo mundo inteiro. A contaminação era exponencial, os danos às pessoas podiam ser fatais, as perdas e o contágio aumentavam mais rapidamente do que a ciência conseguia mapear a patologia e controlá-la mesmo com esforços conjuntos, o único esforço eficaz imediato para não colapsar os sistemas de saúde e dizimar populações seria o isolamento. Foi assim que quem podia se trancou em casa, passou a higienizar qualquer objeto externo e lavar as mãos trocentas vezes por dia sem jamais levá-las ao rosto antes disso.

Em casa era onde eu estava há mais de cem dias quando um morcego entrou pela minha janela. Eu não estava na natureza, a parte dela que existia aqui tinha sido desmatada para construir meu prédio, minha rua, bairro e cidade, eu tinha portas e paredes, não estava em uma caverna, mas no meu sofá e o morcego apareceu assim, sem cerimônia: olá, amiga!

Grito, pulo, almofadas pelos ares, aos tropeços me fechei em um quarto onde ele não entraria e tentei raciocinar o que fazer no meio da madrugada. “Posso abrir as janelas da casa, durmo trancada aqui, amanhã ao acordar ele terá ido embora. Ou não terá ido embora e passará a viver comigo. Não pode ficar aqui nem mais um minuto, é o coronavírus em pessoa na minha sala. No caso, “em morcego””. Eu me confinei, usei máscara, álcool gel, senti saudade, medo, ajudei, aprendi a cozinhar, lavar, passar, vou perder a guerra porque o inimigo entrou pela janela, isso não pode acontecer. Pesquisei no Google “como tirar morcegos de casa”. Uma película de horror. Alguém precisa vir aqui. Não podem ser meus pais, grupo de risco. Lucas! Não vê a rua há quatro meses, terá um choque anafilático. Minha prima, vizinha, já entrou morcego na casa dela. Dormia. O tempo ia passando, os coronavirus já podiam estar por toda a minha casa. Liguei para o maior aliado de pessoas que moram sozinhas quando estão em apuros: o porteiro. “Por favor pede para o segurança vir aqui, estou sendo atacada”. Já não sabia do que tinha mais medo: ser contaminada pelo morcego ou pelo homem na porta que apareceu de botas, sem máscara, com duas mãos lotadas de dedos tocando em tudo que podia esconder o meliante de asas. Eu tentava decorar todos os lugares onde ele passava e encostava para higienizar com álcool 70 depois, se um dia aquela cena de ficção científica terminasse.

Nunca achamos o morcego, supomos que ele voou embora enquanto eu me refugiava no quarto, desde então tenho a certeza de que a qualquer momento ele vai sair de uma gaveta ou pular do bolso de uma calça no armário pedindo abrigo por estar sendo perseguido como exterminador do futuro, o vetor que esfregou a impermanência da vida na nossa cara, o transmissor ensurdecedor da notícia de que temos que lidar com o não saber mesmo que, na crueldade ou maravilha dos fatos, nunca tenhamos sabido e só não dormíamos e acordávamos pensando nisso.

Naquele domingo olhei para o Cristo, aqueles braços abertos que nunca abraçam a cidade, não tinha uma única nuvem no céu. Talvez as areias das praias ainda estivessem mais vazias do que costumavam ser, talvez os bares atendessem menos gente, mas fazia o mesmo calor de todos os invernos que insistiam em não chegar no Rio de Janeiro. Eu ainda não estava na praia como estaria em um domingo de sol até março daquele ano, mas quando desci para repetir o mesmo trajeto que fazia há 18 domingos da nova rotina temporária, a feira de antiguidades estava montada de novo na praça. Ao vê-la brotada ali nem pude dizer que estava “de volta”. Não sei se um dia “voltaremos”. Estava no mesmo lugar onde antes havia uma feira, mas não parecia ser a mesma feira. Ou os meus olhos ainda não eram os mesmos olhos? Nunca mais seriam? Não sei se alguma vez voltamos, mesmo quando repetimos padrões. Não sei o que em nós terá acontecido daqui a um tempo, individualmente e coletivamente. Eu não sei, e às vezes queria poder sair voando daqui. 

Ruídos e comunicação


42-0453. Só isso, fácil de decorar, era o número do telefone da casa de Petrópolis. Eram muitos quartos, a mesa de jantar tinha tantos lugares que brincávamos de Escravos de Jó versão estendida na hora de tirar os pratos, mas para aquela multidão toda agregada ali só havia 1 telefone. Ele ficava na sala, em uma mesinha exclusiva com gaveta para o caderno de telefone, bloquinho para recados e uma cadeira para os falantes demorados. Ninguém demorava porque interurbano era caro, não era para ficar conversando no telefone. Ou vai ver não ficávamos conversando porque ninguém tinha privacidade ali, ou porque tínhamos mais o que fazer lá fora. Fato é que só existia um único aparelho, com aquele pequenino número que jamais esqueci apesar de não saber qual é o meu número atual - nem o de ninguém mais.

O telefone de Petrópolis era de disco e muitas coisas eu não entendo sobre os anos 80, mas entre elas estão saber como víamos TV com aquelas imagens sem definição e como ligávamos em aparelhos de disco. Se o número tinha muitos oitos ou noves, pelo-amor-de-deus não solta o disco antes de dar a volta completa! Escapou o dedo, tinha que começar a “discar” tudo de novo. Com a pressa de hoje eu jamais falaria com alguém que tivesse zero no número, levaria uma eternidade e já naqueles tempos eu gostava de telefone de tecla, achava chique.

Na casa dos meus pais tinha telefone de tecla, de disco e até em formato do Garfield, mas era impossível permanecer em uma conversa inteira sem interrupções, sempre alguém pegaria na extensão e ouviria um berro com potência para avisar em Marte: “desliga, tô falaaandoooo”. Éramos oito pessoas co-habitando o lugar, chegamos a ter três linhas na mesma casa-escritório (já vivi em um home-office em outra era). Era tanto telefone tocando que parecia call center – o que acontece em menor escala até hoje, não entendo quem liga tanto para eles enquanto eu nem tenho telefone fixo em casa.

Outras interrupções de conversa na vida aconteciam pelo maldito fax (aparelho que nunca decifrei e produzia um apito insuportável surgido do nada) e pela conexão de internet derrubada por alguém que tirou o telefone do gancho enquanto outra pessoa estava online. Era razão para assassinato, teríamos que ouvir de novo por minutos aquele ruído de sintonização com ETs até reconectar.

Nosso telefone era prefixo 226, o pior prefixo do país. Nunca dava linha, quando queríamos ligar para alguém era preciso se planejar meia hora antes, tirar o fone do gancho e ir fazer outra coisa, de vez em quando voltar ali para checar se já era possível telefonar - quase como acontecia ao ligar nossos primeiros computadores, que demoravam uma tarde inteira “inicializando” (palavra que nunca existiu fora do Windows). Na primeira vez em que viajei para fora do Brasil contei eufórica que lá nos Estados Unidos tirávamos o fone do gancho e já dava linha imediatamente! Fiquei chocada. Além da falta de sinal, os 226 eram os maiores points de linha cruzada da Telerj, aglomeração. Penso em quantos romances começaram em uma linha cruzada e quantos barracos ocorreram pela mesma razão. Era tanta linha cruzada que existia uma etiqueta sobre quem desligava, assim como a cortesia de orientar quem ligava errado querendo falar com alguém que nós já sabíamos ter um número parecido com o nosso. “Alô, é da casa do Alfredo? Não, você trocou o último dígito, o Alfredo é 2578, aqui é 2570. Ah, valeu.”

Nunca passei trote para o Alfredo, mas poderia ter feito isso. Houve uma fase em que adorávamos passar trotes. Trote é uma diversão tão arraigada na cultura que gera até hoje programas de rádio e televisão. Eu fiz amigos porque passei trotes para eles, emendamos a piada em uma conversa e dali fui até a churrasco na casa deles.
Nessa época não apertávamos Send, o telefone ligava sozinho. O Send apareceu na nossa vida quando passamos a andar pelos lugares empunhando aparelhos cinza com antena externa buscando conexão, deve ter ocorrência de gente que caiu da janela, penhasco atrás de sinal de celular. “No service” era a tradução da nossa frustração. Telefone de tecla virou démodé, eu almejava Startacs, baterias azuis que durassem mais de três horas. Luxo.

Os mais velhos achavam que ligar para o celular era coisa de emergência, falavam tão rápido, como se fossem gastar os minutos, que era como conversar com um narrador de turfe. Deviam pensar que celular era uma evolução do bip - o que era, de certa forma, mas entre eles passamos pelo Teletrim. Pagers. Meu amigo mais rico tinha um Teletrim & uma agenda eletrônica, ele era um ícone de tecnologia e status. No meu tempo de memória isso durou uns três meses, pouco mais que vídeo lasers.
Quando surgiram as linhas com identificador de chamadas, que até aquele momento chamávamos de Bina, a preocupação no meu grupo de amigas era como faríamos para ouvir a voz dos nossos crushes – que na época nem lembro como eram classificados – sem sermos reconhecidas. Sim, fazíamos isso: ligávamos para eles, ficávamos encantadas ouvindo um “alô. Alô? Plaft.” e sei lá o que acontecia depois. Éramos estranhas.

Dizem que o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone: “o chefe da folia pelo telefone manda me avisar / que com alegria não se questione para se brincar”. Eu queria tanto receber essa ligação hoje... Mas certamente antes de ligar o chefe da folia mandaria uma mensagem: “oi, posso ligar para você?”. Não se liga mais para alguém sem permissão ou agendamento, falar no telefone ficou para os íntimos ou assuntos graves. Telefone não é mais considerado possibilidade principal de comunicação, é uma espécie de jornal impresso. Eu ainda assinava jornal impresso, no início da pandemia decidi suspendê-lo.
- Mas você conseguiu cancelar seu jornal impresso?
- Sim, liguei para lá.
- Como “ligou para lá”?
- Peguei meu telefone, apertei os números, apareceu uma voz, eu disse o que queria, aconteceu. Como o gênio da lâmpada.
- Não tinha pensado nisso. O site não funciona.

O Whatsapp criou os emojis para dar uma graça às conversas, para poupar palavras ou por acreditar que uma imagem vale mais do que mil delas? Em qualquer alternativa, gerou questões que nenhum gênio do Vale do Silicio supunha crível existir:
- Convidei-o para um chopp e ele respondeu com aquele emoji de coração ao redor.
- Que bom! E quando vão?
- Nunca, né. Resposta péssima.
- Como péssima, ele foi tão amoroso mandando corações!
- Amoroso com ele, aquele é o emoji narcisista – uma pessoa cheia de corações por si mesma.

O que também não funciona é a vida reduzida a videochamadas. São as falhas de áudio dos aplicativos ou o bombardeio de mensagens por todos os serviços que nos faz confundir ainda mais o que já dava problema? Alguém cobra por Whatssapp resposta do que foi perguntado por email e debatido no Messenger com um terceiro elemento. O quarto chega na reunião semanal por Whereby sem nem saber que o  assunto evoluiu – mas ninguém perde um meme recebido em 4 grupos diferentes, Twitter e Instagram.

Os chats em vídeo implementaram a máxima do “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha” (nunca entendi a origem disso, mas nunca observei dois burrinhos interagindo.). É quase uma conversa coletiva por Nextel: alguém fala, todos esperam um tempo para ver se acabou a frase e arriscam responder. Invariavelmente dois arriscam ao mesmo tempo, então todos param esperando a deixa – “pode falar, Bruna”. Bruna segue, quem realmente deveria responder fica mexendo a boca até todos murmurarem – “está mudo, Zezinho”. Isso quando todos ativam os vídeos! Nas reuniões em forma de podcast, sem apelo visual e só com vozes vindas do além, você que lute para desenvolver a sintonia máxima da dinâmica fala-responde e o foco.

Freud, Lacan ou algum deles diz que não devemos acreditar na comunicação, que só os tolos lutam por isso. Não existindo a comunicação perfeita - o domínio de que o dito chegará intacto ao destinatário - o emissor está libertado para dizer e agir como quiser, livre da exaustão de supor o efeito que suas palavras causarão do outro lado. “Desprenda-se disso e verá que sua vida ficará bem mais simples”, insiste o oráculo. Eu sigo interpretando papéis e palavras, tão inútil quanto tentar organizar um Zoom aglomerado.

Beethoven, por outras razões, conhecia bem o isolamento e compôs Para O Amor Distante, uma obra de lamentos por uma separação e anseios pelo reencontro. A música ganhou uma nova performance criada pelo On Site Opera onde um duo de pianista e soprano apresenta a composição para o espectador que está do outro lado da linha, ao telefone! A pessoa se inscreve para atuar como a amada distante e receber a ligação de amor. O texto de Para O Amor Distante foi composto por Alois Jeitteles, um jovem médico que trabalhou incansavelmente durante a epidemia de cólera que assolou seu país.

Já que enfrento tantas dificuldades para me comunicar mesmo com tanto avanço na tecnologia, reinstalei meu telefone fixo e aguardo a ligação dos artistas. Falarão em outra língua, mas vou ouvir do modo mais antigo que conheço uma mensagem que vai me deixar feliz.