A ideia era conhecer histórias de maias e astecas, explorar a Riviera mexicana, mas nos apaixonamos de tal forma por Tulum que parecíamos viver um catálogo da Richards, no melhor sentido disso – todas as pessoas eram lindas, todos os dias de praia tinham aquele azul de um Pantone deslumbrante, sorríamos inebriados tomando margaritas em nosso rooftop, mesmo as histórias mais fantasiosas de guias duvidosos em ruínas que por vezes pareciam um pouco disneylândicas nos faziam felizes, para sempre teríamos Chichén-Itzá. E assim fomos nadar, acompanhados por um casal de alemães, em um cenote habitado por morcegos. Quando o instrutor nos mostrou as fotos das cavernas onde mergulharíamos tudo parecia divertidíssimo, aqueles lagos subterrâneos inéditos, excitantes, foi nesse clima que Marcelo olhou a foto dos morceguinhos no teto de uma das cavernas e proclamou a frase clássica da viagem: pero é una película de horror! Tivemos, os quatro e o instrutor, um ataque de riso, vestimos as roupas de neoprene alugadas no local (que só de lembrar hoje me deixam com vontade de pular em uma banheira de álcool 70), pegamos os snorkels e nos jogamos na água. Julia não foi: “não consigo respirar com isso”. Os snorkels, isso. De volta ao Brasil, Lucas contou que o cunhado médico não reagiu bem ao relato da aventura, achou muito imprudente nadarmos em uma caverna com morcegos. Que malucos nós, hahaha, nem sabíamos.
Anos depois alugamos uma casa na praia do Felix para férias de
verão. Debruçada sobre o mar, a parte de cima da casa era toda aberta – sala,
cozinha, nada tinha porta, parede nem vidro, uma total integração com a
natureza que só nos exigia esconder todas as comidas à noite para não serem
levadas pelos macacos. Em um mezanino nesse lugar dormia o Lucas. “Lucas,
desce, vem dormir com a gente, colocamos seu colchão no nosso quarto”. Não
queria, achava que os macacos não o levariam, olha a oportunidade de dormir
naquele céu de estrelas entre árvores, só precisava de repelente (temíamos a
zyka). Em uma noite Lucas estava lendo, deitado em seu berço esplêndido sob a lua,
ouviu umas pegadinhas no chão de madeira, um farfalhar de asas, encarou dois
olhinhos admirando-o na natureza – um morceguinho! Talvez um amigo remoto
mexicano também em viagem?
Um
dia um chinês na província de Wuhan comeu um morcego, ou comeu um mamífero que
comeu um morcego. Essa sequência de “quem come quem” já tinha dado tanta
confusão na vida, mas nunca como naquele momento. Morcegos – o cunhado do Lucas
estava certo – são notórios transmissores de doenças, e dessa vez a epidemia se
alastrou pelo mundo inteiro. A contaminação era exponencial, os danos às
pessoas podiam ser fatais, as perdas e o contágio aumentavam mais rapidamente
do que a ciência conseguia mapear a patologia e controlá-la mesmo com esforços
conjuntos, o único esforço eficaz imediato para não colapsar os sistemas de
saúde e dizimar populações seria o isolamento. Foi assim que quem podia se
trancou em casa, passou a higienizar qualquer objeto externo e lavar as mãos trocentas
vezes por dia sem jamais levá-las ao rosto antes disso.
Em
casa era onde eu estava há mais de cem dias quando um morcego entrou pela minha
janela. Eu não estava na natureza, a parte dela que existia aqui tinha sido
desmatada para construir meu prédio, minha rua, bairro e cidade, eu tinha
portas e paredes, não estava em uma caverna, mas no meu sofá e o morcego apareceu
assim, sem cerimônia: olá, amiga!
Grito,
pulo, almofadas pelos ares, aos tropeços me fechei em um quarto onde ele não entraria
e tentei raciocinar o que fazer no meio da madrugada. “Posso abrir as janelas
da casa, durmo trancada aqui, amanhã ao acordar ele terá ido embora. Ou não
terá ido embora e passará a viver comigo. Não pode ficar aqui nem mais um
minuto, é o coronavírus em pessoa na minha sala. No caso, “em morcego””. Eu me
confinei, usei máscara, álcool gel, senti saudade, medo, ajudei, aprendi a
cozinhar, lavar, passar, vou perder a guerra porque o inimigo entrou pela
janela, isso não pode acontecer. Pesquisei no Google “como tirar morcegos de
casa”. Uma película de horror. Alguém precisa vir aqui. Não podem ser meus
pais, grupo de risco. Lucas! Não vê a rua há quatro meses, terá um choque anafilático.
Minha prima, vizinha, já entrou morcego na casa dela. Dormia. O tempo ia
passando, os coronavirus já podiam estar por toda a minha casa. Liguei para o
maior aliado de pessoas que moram sozinhas quando estão em apuros: o porteiro. “Por
favor pede para o segurança vir aqui, estou sendo atacada”. Já não sabia do que
tinha mais medo: ser contaminada pelo morcego ou pelo homem na porta que
apareceu de botas, sem máscara, com duas mãos lotadas de dedos tocando em tudo
que podia esconder o meliante de asas. Eu tentava decorar todos os lugares onde
ele passava e encostava para higienizar com álcool 70 depois, se um dia aquela
cena de ficção científica terminasse.
Nunca
achamos o morcego, supomos que ele voou embora enquanto eu me refugiava no
quarto, desde então tenho a certeza de que a qualquer momento ele vai sair de
uma gaveta ou pular do bolso de uma calça no armário pedindo abrigo por estar
sendo perseguido como exterminador do futuro, o vetor que esfregou a impermanência da vida na nossa cara, o transmissor ensurdecedor da notícia de que temos que lidar
com o não saber mesmo que, na crueldade ou maravilha dos fatos, nunca tenhamos
sabido e só não dormíamos e acordávamos pensando nisso.
Naquele domingo olhei para o
Cristo, aqueles braços abertos que nunca abraçam a cidade, não tinha uma única
nuvem no céu. Talvez as
areias das praias ainda estivessem mais vazias do que costumavam ser, talvez os
bares atendessem menos gente, mas fazia o mesmo calor de todos os invernos que
insistiam em não chegar no Rio de Janeiro. Eu ainda não estava na praia como estaria
em um domingo de sol até março daquele ano, mas quando desci para repetir o
mesmo trajeto que fazia há 18 domingos da nova rotina temporária, a feira de
antiguidades estava montada de novo na praça. Ao vê-la brotada ali nem pude
dizer que estava “de volta”. Não sei se um dia “voltaremos”. Estava no mesmo
lugar onde antes havia uma feira, mas não parecia ser a mesma feira. Ou os meus
olhos ainda não eram os mesmos olhos? Nunca mais seriam? Não sei se alguma vez voltamos,
mesmo quando repetimos padrões. Não sei o que em nós terá acontecido daqui a um
tempo, individualmente e coletivamente. Eu não sei, e às vezes queria poder
sair voando daqui.
Um comentário:
Será que me arrisco a dizer que um dia seremos os mesmos.....cheios de alegrias e esperanças....lendo isso lembro do meu quarto em Buenos Aires....eu e o Morcego....e daria tudo para voltar aquele dia eu e ele,,,,
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