42-0453. Só isso, fácil de decorar,
era o número do telefone da casa de Petrópolis. Eram muitos quartos, a mesa de
jantar tinha tantos lugares que brincávamos de Escravos de Jó versão estendida na
hora de tirar os pratos, mas para aquela multidão toda agregada ali só havia 1
telefone. Ele ficava na sala, em uma mesinha exclusiva com gaveta para o
caderno de telefone, bloquinho para recados e uma cadeira para os falantes
demorados. Ninguém demorava porque interurbano era caro, não era para ficar
conversando no telefone. Ou vai ver não ficávamos conversando porque ninguém tinha
privacidade ali, ou porque tínhamos mais o que fazer lá fora. Fato é que só
existia um único aparelho, com aquele pequenino número que jamais esqueci
apesar de não saber qual é o meu número atual - nem o de ninguém mais.
O telefone de Petrópolis era de
disco e muitas coisas eu não entendo sobre os anos 80, mas entre elas estão saber
como víamos TV com aquelas imagens sem definição e como ligávamos em aparelhos de
disco. Se o número tinha muitos oitos ou noves, pelo-amor-de-deus não solta o
disco antes de dar a volta completa! Escapou o dedo, tinha que começar a “discar”
tudo de novo. Com a pressa de hoje eu jamais falaria com alguém que tivesse
zero no número, levaria uma eternidade e já naqueles tempos eu gostava de
telefone de tecla, achava chique.
Na casa dos meus pais tinha
telefone de tecla, de disco e até em formato do Garfield, mas era impossível
permanecer em uma conversa inteira sem interrupções, sempre alguém pegaria na
extensão e ouviria um berro com potência para avisar em Marte: “desliga, tô
falaaandoooo”. Éramos oito pessoas co-habitando o lugar, chegamos a ter três
linhas na mesma casa-escritório (já vivi em um home-office em outra era). Era
tanto telefone tocando que parecia call center – o que acontece em menor escala
até hoje, não entendo quem liga tanto para eles enquanto eu nem tenho telefone
fixo em casa.
Outras interrupções de conversa na
vida aconteciam pelo maldito fax (aparelho que nunca decifrei e produzia um
apito insuportável surgido do nada) e pela conexão de internet derrubada por alguém
que tirou o telefone do gancho enquanto outra pessoa estava online. Era razão
para assassinato, teríamos que ouvir de novo por minutos aquele ruído de
sintonização com ETs até reconectar.
Nosso telefone era prefixo 226, o
pior prefixo do país. Nunca dava linha, quando queríamos ligar para alguém era
preciso se planejar meia hora antes, tirar o fone do gancho e ir fazer outra
coisa, de vez em quando voltar ali para checar se já era possível telefonar - quase
como acontecia ao ligar nossos primeiros computadores, que demoravam uma tarde
inteira “inicializando” (palavra que nunca existiu fora do Windows). Na
primeira vez em que viajei para fora do Brasil contei eufórica que lá nos
Estados Unidos tirávamos o fone do gancho e já dava linha imediatamente! Fiquei
chocada. Além da falta de sinal, os 226 eram os maiores points de linha cruzada
da Telerj, aglomeração. Penso em quantos romances começaram em uma linha
cruzada e quantos barracos ocorreram pela mesma razão. Era tanta linha cruzada
que existia uma etiqueta sobre quem desligava, assim como a cortesia de
orientar quem ligava errado querendo falar com alguém que nós já sabíamos ter
um número parecido com o nosso. “Alô, é da casa do Alfredo? Não, você trocou o último
dígito, o Alfredo é 2578, aqui é 2570. Ah, valeu.”
Nunca passei trote para o Alfredo,
mas poderia ter feito isso. Houve uma fase em que adorávamos passar trotes.
Trote é uma diversão tão arraigada na cultura que gera até hoje programas de rádio
e televisão. Eu fiz amigos porque passei trotes para eles, emendamos a piada em
uma conversa e dali fui até a churrasco na casa deles.
Nessa época não apertávamos Send, o
telefone ligava sozinho. O Send apareceu na nossa vida quando passamos a andar
pelos lugares empunhando aparelhos cinza com antena externa buscando conexão,
deve ter ocorrência de gente que caiu da janela, penhasco atrás de sinal de celular.
“No service” era a tradução da nossa frustração. Telefone de tecla virou
démodé, eu almejava Startacs, baterias azuis que durassem mais de três horas. Luxo.
Os mais velhos achavam que ligar
para o celular era coisa de emergência, falavam tão rápido, como se fossem
gastar os minutos, que era como conversar com um narrador de turfe. Deviam
pensar que celular era uma evolução do bip - o que era, de certa forma, mas entre
eles passamos pelo Teletrim. Pagers. Meu amigo mais rico tinha um Teletrim &
uma agenda eletrônica, ele era um ícone de tecnologia e status. No meu tempo de
memória isso durou uns três meses, pouco mais que vídeo lasers.
Quando surgiram as linhas com identificador
de chamadas, que até aquele momento chamávamos de Bina, a preocupação no meu
grupo de amigas era como faríamos para ouvir a voz dos nossos crushes – que na
época nem lembro como eram classificados – sem sermos reconhecidas. Sim,
fazíamos isso: ligávamos para eles, ficávamos encantadas ouvindo um “alô. Alô?
Plaft.” e sei lá o que acontecia depois. Éramos estranhas.
Dizem que o primeiro samba gravado
no Brasil foi Pelo Telefone: “o chefe
da folia pelo telefone manda me avisar / que com alegria não se questione para
se brincar”. Eu queria tanto receber essa ligação hoje... Mas certamente antes de
ligar o chefe da folia mandaria uma mensagem: “oi, posso ligar para você?”. Não
se liga mais para alguém sem permissão ou agendamento, falar no telefone ficou
para os íntimos ou assuntos graves. Telefone não é mais considerado
possibilidade principal de comunicação, é uma espécie de jornal impresso. Eu
ainda assinava jornal impresso, no início da pandemia decidi suspendê-lo.
- Mas você conseguiu cancelar seu
jornal impresso?
- Sim, liguei para lá.
- Como “ligou para lá”?
- Peguei meu telefone, apertei os
números, apareceu uma voz, eu disse o que queria, aconteceu. Como o gênio da
lâmpada.
- Não tinha pensado nisso. O site
não funciona.
O Whatsapp criou os emojis para dar
uma graça às conversas, para poupar palavras ou por acreditar que uma imagem
vale mais do que mil delas? Em qualquer alternativa, gerou questões que nenhum gênio
do Vale do Silicio supunha crível existir:
- Convidei-o para um chopp e ele
respondeu com aquele emoji de coração ao redor.
- Que bom! E quando vão?
- Nunca, né. Resposta péssima.
- Como péssima, ele foi tão amoroso
mandando corações!
- Amoroso com ele, aquele é o emoji
narcisista – uma pessoa cheia de corações por si mesma.
O que também não funciona é a vida
reduzida a videochamadas. São as falhas de áudio dos aplicativos ou o
bombardeio de mensagens por todos os serviços que nos faz confundir ainda mais
o que já dava problema? Alguém cobra por Whatssapp resposta do que foi
perguntado por email e debatido no Messenger com um terceiro elemento. O quarto
chega na reunião semanal por Whereby sem nem saber que o assunto evoluiu – mas ninguém perde um meme
recebido em 4 grupos diferentes, Twitter e Instagram.
Os chats em vídeo implementaram a
máxima do “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha” (nunca entendi a
origem disso, mas nunca observei dois burrinhos interagindo.). É quase uma
conversa coletiva por Nextel: alguém fala, todos esperam um tempo para ver se
acabou a frase e arriscam responder. Invariavelmente dois arriscam ao mesmo
tempo, então todos param esperando a deixa – “pode falar, Bruna”. Bruna segue,
quem realmente deveria responder fica mexendo a boca até todos murmurarem – “está
mudo, Zezinho”. Isso quando todos ativam os vídeos! Nas reuniões em forma de
podcast, sem apelo visual e só com vozes vindas do além, você que lute para
desenvolver a sintonia máxima da dinâmica fala-responde e o foco.
Freud, Lacan ou algum deles diz que
não devemos acreditar na comunicação, que só os tolos lutam por isso. Não
existindo a comunicação perfeita - o domínio de que o dito chegará intacto ao
destinatário - o emissor está libertado para dizer e agir como quiser, livre da
exaustão de supor o efeito que suas palavras causarão do outro lado. “Desprenda-se
disso e verá que sua vida ficará bem mais simples”, insiste o oráculo. Eu sigo
interpretando papéis e palavras, tão inútil quanto tentar organizar um Zoom aglomerado.
Beethoven, por outras razões, conhecia bem o
isolamento e compôs Para O Amor Distante, uma obra de lamentos por uma separação
e anseios pelo reencontro. A música ganhou uma nova performance
criada pelo On Site Opera
onde um duo de pianista e soprano apresenta a composição para o espectador que
está do outro lado da linha, ao telefone! A pessoa se inscreve para atuar como
a amada distante e receber a ligação de amor. O texto de Para O Amor
Distante foi composto por
Alois Jeitteles, um jovem médico que trabalhou incansavelmente durante a
epidemia de cólera que assolou seu país.
Já que enfrento tantas dificuldades para me
comunicar mesmo com tanto avanço na tecnologia, reinstalei meu telefone fixo e
aguardo a ligação dos artistas. Falarão em outra língua, mas vou ouvir do modo
mais antigo que conheço uma mensagem que vai me deixar feliz.
2 comentários:
Posso sentir o peso e textura lisa daquele telefone preto. Se tivesse um desses, te ligaria agora mesmo para te parabenizar pelo texto. Talvez desse sempre ocupado, pois muitas pessoas estariam fazendo o mesmo. E meu dedo ficaria cheio de calos ...
Comentar um texto da Bruna considero ousadia.....a gente lé..se diverte e curte cd palavra mto mto bom mas eu sou do tempo do numero 2328 da D. PEDRO.....que saudades...era mais facil do que celular.,ou pelo menos para a tia
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