19.7.20

Ruídos e comunicação


42-0453. Só isso, fácil de decorar, era o número do telefone da casa de Petrópolis. Eram muitos quartos, a mesa de jantar tinha tantos lugares que brincávamos de Escravos de Jó versão estendida na hora de tirar os pratos, mas para aquela multidão toda agregada ali só havia 1 telefone. Ele ficava na sala, em uma mesinha exclusiva com gaveta para o caderno de telefone, bloquinho para recados e uma cadeira para os falantes demorados. Ninguém demorava porque interurbano era caro, não era para ficar conversando no telefone. Ou vai ver não ficávamos conversando porque ninguém tinha privacidade ali, ou porque tínhamos mais o que fazer lá fora. Fato é que só existia um único aparelho, com aquele pequenino número que jamais esqueci apesar de não saber qual é o meu número atual - nem o de ninguém mais.

O telefone de Petrópolis era de disco e muitas coisas eu não entendo sobre os anos 80, mas entre elas estão saber como víamos TV com aquelas imagens sem definição e como ligávamos em aparelhos de disco. Se o número tinha muitos oitos ou noves, pelo-amor-de-deus não solta o disco antes de dar a volta completa! Escapou o dedo, tinha que começar a “discar” tudo de novo. Com a pressa de hoje eu jamais falaria com alguém que tivesse zero no número, levaria uma eternidade e já naqueles tempos eu gostava de telefone de tecla, achava chique.

Na casa dos meus pais tinha telefone de tecla, de disco e até em formato do Garfield, mas era impossível permanecer em uma conversa inteira sem interrupções, sempre alguém pegaria na extensão e ouviria um berro com potência para avisar em Marte: “desliga, tô falaaandoooo”. Éramos oito pessoas co-habitando o lugar, chegamos a ter três linhas na mesma casa-escritório (já vivi em um home-office em outra era). Era tanto telefone tocando que parecia call center – o que acontece em menor escala até hoje, não entendo quem liga tanto para eles enquanto eu nem tenho telefone fixo em casa.

Outras interrupções de conversa na vida aconteciam pelo maldito fax (aparelho que nunca decifrei e produzia um apito insuportável surgido do nada) e pela conexão de internet derrubada por alguém que tirou o telefone do gancho enquanto outra pessoa estava online. Era razão para assassinato, teríamos que ouvir de novo por minutos aquele ruído de sintonização com ETs até reconectar.

Nosso telefone era prefixo 226, o pior prefixo do país. Nunca dava linha, quando queríamos ligar para alguém era preciso se planejar meia hora antes, tirar o fone do gancho e ir fazer outra coisa, de vez em quando voltar ali para checar se já era possível telefonar - quase como acontecia ao ligar nossos primeiros computadores, que demoravam uma tarde inteira “inicializando” (palavra que nunca existiu fora do Windows). Na primeira vez em que viajei para fora do Brasil contei eufórica que lá nos Estados Unidos tirávamos o fone do gancho e já dava linha imediatamente! Fiquei chocada. Além da falta de sinal, os 226 eram os maiores points de linha cruzada da Telerj, aglomeração. Penso em quantos romances começaram em uma linha cruzada e quantos barracos ocorreram pela mesma razão. Era tanta linha cruzada que existia uma etiqueta sobre quem desligava, assim como a cortesia de orientar quem ligava errado querendo falar com alguém que nós já sabíamos ter um número parecido com o nosso. “Alô, é da casa do Alfredo? Não, você trocou o último dígito, o Alfredo é 2578, aqui é 2570. Ah, valeu.”

Nunca passei trote para o Alfredo, mas poderia ter feito isso. Houve uma fase em que adorávamos passar trotes. Trote é uma diversão tão arraigada na cultura que gera até hoje programas de rádio e televisão. Eu fiz amigos porque passei trotes para eles, emendamos a piada em uma conversa e dali fui até a churrasco na casa deles.
Nessa época não apertávamos Send, o telefone ligava sozinho. O Send apareceu na nossa vida quando passamos a andar pelos lugares empunhando aparelhos cinza com antena externa buscando conexão, deve ter ocorrência de gente que caiu da janela, penhasco atrás de sinal de celular. “No service” era a tradução da nossa frustração. Telefone de tecla virou démodé, eu almejava Startacs, baterias azuis que durassem mais de três horas. Luxo.

Os mais velhos achavam que ligar para o celular era coisa de emergência, falavam tão rápido, como se fossem gastar os minutos, que era como conversar com um narrador de turfe. Deviam pensar que celular era uma evolução do bip - o que era, de certa forma, mas entre eles passamos pelo Teletrim. Pagers. Meu amigo mais rico tinha um Teletrim & uma agenda eletrônica, ele era um ícone de tecnologia e status. No meu tempo de memória isso durou uns três meses, pouco mais que vídeo lasers.
Quando surgiram as linhas com identificador de chamadas, que até aquele momento chamávamos de Bina, a preocupação no meu grupo de amigas era como faríamos para ouvir a voz dos nossos crushes – que na época nem lembro como eram classificados – sem sermos reconhecidas. Sim, fazíamos isso: ligávamos para eles, ficávamos encantadas ouvindo um “alô. Alô? Plaft.” e sei lá o que acontecia depois. Éramos estranhas.

Dizem que o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone: “o chefe da folia pelo telefone manda me avisar / que com alegria não se questione para se brincar”. Eu queria tanto receber essa ligação hoje... Mas certamente antes de ligar o chefe da folia mandaria uma mensagem: “oi, posso ligar para você?”. Não se liga mais para alguém sem permissão ou agendamento, falar no telefone ficou para os íntimos ou assuntos graves. Telefone não é mais considerado possibilidade principal de comunicação, é uma espécie de jornal impresso. Eu ainda assinava jornal impresso, no início da pandemia decidi suspendê-lo.
- Mas você conseguiu cancelar seu jornal impresso?
- Sim, liguei para lá.
- Como “ligou para lá”?
- Peguei meu telefone, apertei os números, apareceu uma voz, eu disse o que queria, aconteceu. Como o gênio da lâmpada.
- Não tinha pensado nisso. O site não funciona.

O Whatsapp criou os emojis para dar uma graça às conversas, para poupar palavras ou por acreditar que uma imagem vale mais do que mil delas? Em qualquer alternativa, gerou questões que nenhum gênio do Vale do Silicio supunha crível existir:
- Convidei-o para um chopp e ele respondeu com aquele emoji de coração ao redor.
- Que bom! E quando vão?
- Nunca, né. Resposta péssima.
- Como péssima, ele foi tão amoroso mandando corações!
- Amoroso com ele, aquele é o emoji narcisista – uma pessoa cheia de corações por si mesma.

O que também não funciona é a vida reduzida a videochamadas. São as falhas de áudio dos aplicativos ou o bombardeio de mensagens por todos os serviços que nos faz confundir ainda mais o que já dava problema? Alguém cobra por Whatssapp resposta do que foi perguntado por email e debatido no Messenger com um terceiro elemento. O quarto chega na reunião semanal por Whereby sem nem saber que o  assunto evoluiu – mas ninguém perde um meme recebido em 4 grupos diferentes, Twitter e Instagram.

Os chats em vídeo implementaram a máxima do “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha” (nunca entendi a origem disso, mas nunca observei dois burrinhos interagindo.). É quase uma conversa coletiva por Nextel: alguém fala, todos esperam um tempo para ver se acabou a frase e arriscam responder. Invariavelmente dois arriscam ao mesmo tempo, então todos param esperando a deixa – “pode falar, Bruna”. Bruna segue, quem realmente deveria responder fica mexendo a boca até todos murmurarem – “está mudo, Zezinho”. Isso quando todos ativam os vídeos! Nas reuniões em forma de podcast, sem apelo visual e só com vozes vindas do além, você que lute para desenvolver a sintonia máxima da dinâmica fala-responde e o foco.

Freud, Lacan ou algum deles diz que não devemos acreditar na comunicação, que só os tolos lutam por isso. Não existindo a comunicação perfeita - o domínio de que o dito chegará intacto ao destinatário - o emissor está libertado para dizer e agir como quiser, livre da exaustão de supor o efeito que suas palavras causarão do outro lado. “Desprenda-se disso e verá que sua vida ficará bem mais simples”, insiste o oráculo. Eu sigo interpretando papéis e palavras, tão inútil quanto tentar organizar um Zoom aglomerado.

Beethoven, por outras razões, conhecia bem o isolamento e compôs Para O Amor Distante, uma obra de lamentos por uma separação e anseios pelo reencontro. A música ganhou uma nova performance criada pelo On Site Opera onde um duo de pianista e soprano apresenta a composição para o espectador que está do outro lado da linha, ao telefone! A pessoa se inscreve para atuar como a amada distante e receber a ligação de amor. O texto de Para O Amor Distante foi composto por Alois Jeitteles, um jovem médico que trabalhou incansavelmente durante a epidemia de cólera que assolou seu país.

Já que enfrento tantas dificuldades para me comunicar mesmo com tanto avanço na tecnologia, reinstalei meu telefone fixo e aguardo a ligação dos artistas. Falarão em outra língua, mas vou ouvir do modo mais antigo que conheço uma mensagem que vai me deixar feliz.

2 comentários:

Patricia Salamonde disse...

Posso sentir o peso e textura lisa daquele telefone preto. Se tivesse um desses, te ligaria agora mesmo para te parabenizar pelo texto. Talvez desse sempre ocupado, pois muitas pessoas estariam fazendo o mesmo. E meu dedo ficaria cheio de calos ...

Anônimo disse...

Comentar um texto da Bruna considero ousadia.....a gente lé..se diverte e curte cd palavra mto mto bom mas eu sou do tempo do numero 2328 da D. PEDRO.....que saudades...era mais facil do que celular.,ou pelo menos para a tia