14.6.20

Diário de uma pandemia - vol VIII (o dia em que não acabou)

Dia 95

E então? Três meses depois, aquelas músicas, livros, amores ainda te sustentam?

Quando começou, calculei três meses. Guiei-me por Wuhan, ficava olhando para os países que lidavam com a epidemia há mais tempo como se fossem spoilers. Sabia que existiriam condições um pouco distintas, mas não imaginava que teríamos aqui diferenças tão drásticas. O Brasil virou uma quadrilha mal organizada sem graça nenhuma. “Caminho da roça! É mentiiiira!”, sai todo mundo se esbarrando no sentido contrário. O foguete da Space X decolou sem me levar.

Entre hipóteses desencontradas e “o culpado é o morcego”, um filósofo inglês arrisca que a doença é uma conspiração dos que perderam seu amor para reatar com os ex, nem que seja por DM. Essa me parece a teoria mais confiável de tudo que se falou até agora.

No início dessa semana tocaram minha campainha no meio da tarde. Não surgíamos na porta de outra pessoa sem avisar, como isso poderia acontecer no meio da quarentena? Amigos que moram nos subúrbios acham graça dessa falta de costume daqui, onde ninguém senta nas calçadas para ver a vida passar nem aparece na casa dos outros sem ser convidado. Levantei no susto, olhei pelo vidro, era um entregador. “É a casa da dona Sirlene?” Não, mas como um entregador está andando pelos corredores procurando a dona Sirlene se ninguém pode entrar no prédio?

Um dia em março fui dormir fazendo piada sobre coronavirus e no seguinte acordei em uma pandemia, foi de repente que tudo se transformou porque eu não estava dando atenção aos sinais. É como se tivesse acontecido agora de novo.

Poucas noites depois da campainha tocar, saí para descartar o lixo e ouvi vozes novas no apartamento da vizinha. Tem... visitas na casa da vizinha? Voltei para a minha, desinfetei a maçaneta, quase coloquei um pano embebido em álcool enrolado na fresta da porta como se vírus fossem entrar que nem baratas pelos vãos. Se espirrarem na janela chega aqui? Fechei as janelas.

Na manhã seguinte fui à feira. Atravessei para ir às barraquinhas como faço há semanas, está muito calor? Havia alguma coisa estranha no ar. Muitas vozes, barulho de carro, um mendigo cambaleante grita frases desconexas, o rapaz do limão me aborda muito de perto, o rabo de um cachorro esbarra em mim, outro vizinho me cumprimenta talvez sorrindo “oi, há quanto tempo!”, tem elementos demais nessa praça. Corro para casa, aperto com a chave o botão do elevador antes cheio de circulares que informavam sobre funcionários contaminados e regras do parquinho, elas sumiram. Tiro o sapato na porta, passo álcool gel, removo a máscara, troco a roupa, bebo água, o celular... que fotos são essas? Minha cabeça está rodando um pouco. Pessoas na praia, na serra, é feriado. Mas... acabou? Suo nas mãos, meu coração está acelerado. Por que tem tanta gente na rua? “O prefeito autorizou.” Que prefeito? Ligo a TV depois de dois dias de pausa na contagem. Cadê a curva de contaminação? Aquela fila é para entrar em um shopping? Sonho há noventa dias com a nossa libertação, ela não seria assim.

Eu também queria dar um mergulho no mar. Será que ainda tenho anticorpos para a água salgada do Leblon? Ainda sei andar de Havaianas na areia? Eu queria vento! Qual o perigo de contaminação – por coronavírus, não hepatite e micoses? E essa culpa? Atravesso a rua para comprar rúcula e sinto como se traísse o movimento, crio justificativas, mas não convenço nem a mim mesma de que preciso cruzar o portão pela rúcula. “Tenho que ajudar o seu Jair da barraca das verduras. Seu Jair leva pra você. Na feira bate sol, tenho que produzir vitamina D. Senta no estacionamento do prédio. São quase cem apartamentos, e se todos sentarem no estacionamento? Organiza um rodizio. Passo dez horas por dia em zooms, como vou organizar condôminos?” Lágrimas. Eu também quero sair de casa.    

Já achamos que sairíamos melhores dessa experiência, lembra? Que faríamos um mundo melhor. Mundo melhor é tão subjetivo. Três meses depois, vamos aceitar que alguns não terão aprendido nada? Eu não sei por que estão na fila do shopping, mas não posso ir lá entendê-los. Posso ficar aqui. Não cabe a nós julgá-los, já é trabalho suficiente cuidarmos dos nossos caminhos e nossas histórias. Não deixemos que isso nos frustre. Nossa expectativa deve ser sobre o nosso papel nesse grupo imenso de seres habitantes do planeta, alguns na fila do shopping, outros no mat intensificando a yoga, outros acordando de noites mal dormidas, fazendo comida, faxina, tarefas que produzam trocado para dar garantia. Quando acabar e houver tanta necessidade reprimida, quando se intensificar a lógica do “eu primeiro que já esperei demais”, tomara que ainda sobre força e calma para os que estão mais acima na pirâmide poderem defender ideais e lutar pelo tal mundo melhor que nós vislumbramos, aquele no qual não cabe mais tanto acúmulo, vencedores, perdedores, onde entendemos que estamos no mesmo barco.

Seguiremos agindo como acreditamos mesmo sabendo que do outro lado existem pessoas iguaizinhas a nós em composição com a mesma certeza de sensatez, lançaremos palavras para reflexão sem a exigência de convencimento, apenas porque temos essa voz e certa capacidade de traduzir o que nos vai por dentro. Senão, parece luta vã – e não é. Como a visão da Médica Sem Fronteiras, que todos os dias salva pessoas da destruição causada por outras idênticas às vitimas e não perde a fé na humanidade - “porque somos muitos médicos e voluntários e humanos dispostos a ajudar e lutar contra o mal. Escolho olhar para esses”. Se ela ainda está lá, como nós não estaremos mais aqui?

Se cuida. This too shall pass.

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