11.9.20

Diário de uma pandemia - vol XI

Dia 184

Deu errado o teste da vacina mas eu precisava almoçar. Precisava acabar a reunião e resolver o problema da produção, resolver o problema da outra produção também e responder emails. Mas deu errado o teste da vacina. Eu sei, já entendi, efeitos colaterais inesperados, não, não nasceram rabinhos nos testados, deu um problema, suspenderam essa vacina, depois leio com calma. Mas deu errado o teste da vacina.

A piada não funciona, os artistas não conseguem, precisam de plateia, como fazer plateia, cria uma plateia em outro espaço com mais espaço, distancia bem, testa todo mundo, tenta mandar o sinal, joga o áudio das risadas para o estúdio, conseguimos palmas? Temos plateia, quinze pessoas, quinze pessoas? É uma plateia, temos plateia, melhorou a piada. E o beijo? Não pode beijo, como se beija à distância? Não se beija, tira amor do texto, coloca o amor na pós-produção, faz o amor virtual, amor em computação, tanto amor tem sido assim mesmo, deixa o amor. E a vontade de desistir, faz nada não, deixa para depois. Não tem “depois”. O John Lennon estava certo, é isso aqui agora mesmo a vida, “o que acontece enquanto fazemos outros planos”. Mas costumava ser quase tudo para depois, os grandes planos de felicidade. A viagem. A casa. Aquela ideia. Vou ser muito feliz quando chegar o Carnaval. Nas férias. Quando conhecer alguém. Quando as crianças crescerem. Quando mudar de emprego. Quando tiver mais dinheiro. Quando emagrecer. Quando tiver coragem. Quando tiver vacina. Cancelaram tanta coisa que cancelaram o depois. E agora? Isso sobrou, o agora. Mas agora eu não posso ir a lugar nenhum, agora não tem ninguém para me dar a mão. Lamento, senhora, é só agora mesmo. Mas o que eu faço com agora, estou equilibrando os pratinhos para não caírem, vai passar, é um dia a menos agora, agora tem um monte de gente no restaurante, vai lá agora então, mas agora a taxa ainda está alta, quando ela cair eu volto, volto depois. Depois? Já não sei mais que dia é hoje, não sei mais quando é depois. O depois está chegando igualzinho ao agora há uns seis meses. Ou há uns seis anos?

Eu irei ao show. Farei uma festa. Abraçarei. Encontrarei. Dançarei espremida. Beberei pela rua gargalhando encostando em tudo. E se o futuro do presente virar futuro do pretérito? Eu iria. Beijaria. Abraçaria. Mas o futuro do presente chega quando? Eu quero dançar. Beijar. Viajar. Correr. Rir agora. Não quero adiar nem quero mais chorar eu quero viver agora. Tenho medo de esquecer como era, apagar. Vou embaralhar o futuro e o presente de tudo que posso fazer agora.   

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