No dia 31 ele apareceu no picadeiro ao lado da piscina, deu uns vôos tão altos que nos surpreendemos, nem sabíamos que patos voavam daquele jeito. Você vai pensar: é claro que voam, como acha que eles migram? Não acho, nunca tinha pensado em patos. Se aqueles patos também eram capazes de voar por que nunca saíram dali? Eu também não sairia se fosse eles, quase não saí sendo eu, o problema foi que não convenci ninguém a me remunerar para poder ficar.
No
dia seguinte ao vôo flagrei o pato no galpão de rações. Levou um susto com a
minha presença, saiu apressado disfarçando a invasão, mas vi quando achou que
eu tinha sumido e deu meia volta porta adentro. Eu estava à espreita, segui ele! Sim, eu
estava bem à toa seguindo patos. O que um pato fazia no galpão de comida dos
cavalos, e sozinho de novo? Uhn, não está lidando bem com reveillon, acontece,
tem gente que detesta, fica melancólico nessa época do ano, vai ver ele também.
Comecei a desconfiar que aquele pudesse ter problemas de socialização, era o
único apartado. Era também um dos poucos patos em um grupo formado
majoritariamente por gansos, não sei como é isso entre eles, se rola um “aff,
deixa pra lá, são nanicos, patos”, aí do outro lado reviram olhos - “ai, gansos
arrogantes, esse pescoço comprido sempre esticado, peito estufado, se acham
heteros em sedução”. Talvez eu pudesse ler uns dois ou três livros “Freud para
patos” e ajudá-lo. Fazer uma Constelação, um Tethahealing, uma Barra de Access no
pato! Não quiseram me contratar para nenhuma terapia.
Com
a fazenda inteira para viver, o grupo de gansos repetia todos os dias o mesmo circuito:
estrada, lago, estrada. Sempre em bando, só se separavam um pouco quando iam
boiar. Será que nunca se cansam da mesma rotina? Precisam expandir os
horizontes, vamos exercitar esses pezinhos e cruzar até a outra margem! Quis promover
excursões, levar patos e gansos até o rio lá em cima, organizar passeios para
as jabuticabeiras com parada nas casas de João de Barro, visitas-guiadas às
cocheiras. Não demonstraram nenhum interesse em me seguir, estavam muito bem
ali. O pato voador, inclusive, vai ver era só um pato que curtia sua própria
companhia, precisava de uns momentos para si. Bloco do pato sozinho. Meu
empreendedorismo com aves teve o% de eficácia.
As
galinhas d´Angola eram mais equilibradas e exploradoras, davam seus rolezinhos
às vezes por conta própria, às vezes se agrupavam. Entravam nos estábulos, se
metiam pelos pastos, tenho muita simpatia por elas, adoro o look, a escolha das
cores, só discordamos depois de uns dias daquela gritaria “tôfraco-tôfraco”. Parou o drama! Fraca tô eu, vocês viveram
2020? Toma um Targifor, um banho de chuva, um vinho com amigos, dá um mergulho
e muda esse disco. Adiantou, acho que já na manhã seguinte ouvi algumas gritando
“tôótima-tôótima”. Coaching de galinha d´Angola! Até postei, mas além de umas duas
curtidas não rendeu nada.
Um
quadro no espaço dos veterinários com o controle dos casais de cavalos e éguas parecia
o banco de dados do Tinder: Faísca + Damasco, Gafieira + Atrevido, Brisa + Lótus,
Escócia + Doutor, e na sequência Gafieira + Doutor, Faísca + Lótus, Brisa +
Atrevido... Os cruzamentos no haras seguem a mesma lógica de suruba com delay
do Baixo Gávea da minha memória pré-Covid: todo mundo pega todo mundo, só não
ao mesmo tempo.
Dos
tantos cruzamentos nascem potrinhos fofíssimos, magrinhos com uns gambitinhos
onde se equilibram com o esforço da pouca prática. Em dois dias de vida um
potrinho já tinha mais condições de se locomover e arrumar comida do que eu
depois de algumas taças e faço isso há mais de vinte anos. Eu poderia ficar por
lá promovendo matches, formaria os casais, organizaria os dates, faço isso tão
bem com a minha própria vida, seria altruísta oferecer esse dom ao reino
equino. Discordaram. Não entendi bem se da minha auto-percepção ou da
necessidade do meu serviço, reagiram com umas risadas, entendi que fui mais bem
sucedida como coach de galinha d´Angola.
Os
dias de descanso estavam acabando, minhas ideias profissionais se esgotando,
nem uma live da banda dos sapos martelo consegui emplacar. Era uma sinfonia à
noite, talvez fossem martelo, com certeza eram sapos. De vez em quando ouvíamos
um relinchar de cavalo, às vezes outros respondiam, não sei o que conversavam.
As fontes mantinham um barulho contínuo de água corrente. A partir das três da
tarde começavam os trovões, um tempo depois vinha a chuva, as gotas batendo nas
claraboias e nas folhas das palmeiras. A madeira da casa rangia aos passos e as
cristaleiras trepidavam anunciando alguém que se aproximava. O barulho dos
gansos, maritacas, galinhas, no começo da manhã e fim da tarde as dobradiças e
trincas, sempre alguém abrindo ou fechando as tantas janelas na única marcação
de tempo permitida. Um dia uns uivos. Uma noite uma moto, lá longe. Muitas risadas.
Voltei
para a cidade, de onde vejo o mundo por uma tela ao som de Makitas e interfone
anunciando IFood, mas no último minuto colei num poste o cartaz “Trago o equino
amado em 3 dias”. Vai que aquela pegação deixa uns corações partidos pelo
caminho...
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