Há cerca de um mês vinham se
reunindo na intenção de resolver, eles próprios, questões do
bairro que já não contavam mais com ações do eleito poder público. Em um
encontro no elevador tiveram a ideia, espalharam cartazes pelos postes e assim
formou-se um grupo de pessoas dispostas a trocar as reclamações por
iniciativas. As calçadas estavam apinhadas de mendigos, o barulho dos bares à
noite impossibilitava o descanso, a frequência de assaltos na praça fazia
daquele espaço área a ser evitada. O estado de abandono era tão sério que uma enorme
pintura no chão havia surgido de repente. Na calada da noite alguém havia coberto
de verde e amarelo o asfalto ao redor do chafariz. “Eu também reparei!”,
exclamou um, “acho que foi na madrugada de domingo”, completou outro, “eu tenho
uma máquina de água a jato que limpa”, exclamou o terceiro. Quando começava a
falar um quarto, um braço tímido se ergueu no meio da sala:
- Será que não pintaram por causa
da Copa?
Silêncio.
- Nós costumávamos enfeitar as
ruas pra Copa - continuou.
Talvez porque ninguém mais falasse,
ou para estabelecer um vínculo com os demais, ele ia perguntar se não tinham
visto o amistoso, mas foi interrompido.
- Que Copa?
- Da Rússia.
As pessoas tentavam acessar um
arquivo corrompido em seus cérebros, estavam todos em processamento de dados.
Rússia do Putin?
Não interessa se a Rússia tem Putin,
a dúvida é quem nós temos para jogar.
Não importa quem temos para
jogar, temos eleições para realizar.
E estamos sob intervenção militar.
- O Tite já escalou o time, disse
o rapaz. Tem Firmino, Gabriel Jesus e Neymar.
Neymar é garoto-propaganda. Ele é
também titular?
O alvoroço tomara conta da reunião.
Os angustiados calculavam se já havia quatro anos desde o 7X1, os traumatizados
não queriam se envolver de novo e se frustrar, os esperançosos viam a
possibilidade de recuperação econômica movida pela animação do povo e tentavam
convencer os exasperados que defendiam que não poderiam trocar luta por alienação. Em
um ponto todos eram unânimes: mesmo que se confirmasse a realização de um
campeonato mundial de futebol em poucos dias, não havia tempo hábil para se
aprontar. Não havia camisas, anúncios de novas tecnologias em TVs, música-tema, videntes
com previsões, propagandas grandiosas emocionantes, promoção de refrigerante ou aumento na produção de cerveja, não tinha
clima para festa. A população sabia escalar os juízes do Supremo e conhecia os comentaristas
da Globonews, os jogadores aposentados que em outros tempos formavam mesas
redondas nem tinham investido em fonoaudiólogos de tão certos que estavam que ninguém
nunca mais acompanharia Seleção. Havia o risco de um candidato machista homofóbico
defensor da tortura presidir o país, o assassinato de uma vereadora ocupava
manchetes há meses sem sinal de solução, o preço do dólar e da gasolina
chegava ao do Matte limão de copinho nos restaurantes baratos que ainda tinham
clientes, o povo estava esgotado e as crianças idolatravam Youtubers jogadores de videogames, quem em sã consciência
pararia tudo para torcer por futebol?
- Se o Brasil fizer gol poderemos
nos abraçar.
Então todos correram para a banca
à procura de álbum de figurinhas para se preparar.