Depois de tantos foi meu primeiro Carnaval sem
você. Sabe que muitas vezes ainda te conto se está sol ou chovendo ao abrir a
cortina de manhã? É um hábito, assim como comentar sobre personagens da série
ou reparar nos cachorros que queríamos adotar.
Foram dias leves. Todas as ruas
eram permitidas, não havia risco de te ver e sofrer. Como eu sabia? Por uma libertação. Nada
daquela felicidade dramática, como Alice descreveu ao olharmos fotos antigas.
Como sofríamos por essas ruas! Hoje vejo meninas soluçantes pelas calçadas com
fantasias e corações aos pedaços e sorrio compaixonadamente. Vai passar, eu
penso. E faz parte da festa, são para isso tantos sambas e surdos tão potentes,
joga esses sentimentos todos no cordão, querida.
Olha, meu amor, esquece a dor da vida, deixa o desamor caciqueando na avenida.
Olha, meu amor, esquece a dor da vida, deixa o desamor caciqueando na avenida.
Desconfio que muitas delas nem
conheçam esses caciques, tamoios, mulatos, mas tento não discriminar e manter a
festa democrática. Cada um sabe porque veio e não falta é dor para curar.
A luta esse ano foi outra. Pelas
ruas do Centro, quadras e barracões tentaram acabar com o Carnaval, mas sabe o
que descobri? Não se volta atrás! Passei anos lamentando tudo acabar na
quarta-feira e entendi que não acaba, talvez até ali comece. Esses dias que nos
permitem os outros mais de trezentos nos mudam em algo que pode até demorar
para vir à consciência, mas tocam onde tudo em nós nasce. Se ficarmos atentos
no resto do ano permitiremos que floresça a mesma poesia explodida sob o sol
escaldante da Presidente Vargas, quando aqueles gritos libertam o muito contido
aprisionado. Se está tudo ali, não nos guardemos para quando o Carnaval chegar.
Botemos todo dia esse bloco na rua! Que esse ano botamos os corpos, lindos, incandescentes
de purpurina e mais nada a deter. Foi um ano em que todas as mulheres estavam
pelas outras, eu cuido de você e você cuida de mim. Em seios, bundas,
tatuagens, “elas estão ferozes” há quem diga. Elas estão cientes e inteiras, estão
prontas.
Estão no refrão, nas bandeiras
verde-e-rosa, nas vozes das arquibancadas e camarotes, nas notas dez dos
juízes, no Estandarte de Ouro, nas lágrimas explodidas de felicidade e poder
por se ver acompanhado. Na luta a gente se encontrou, ninguém soltou a mão de
ninguém.
Meu nego, deixa eu te contar: não
vem do céu nem das mãos de Isabel a liberdade. Eu quero que essa fantasia seja
eterna.