3.4.21

Diário de uma pandemia – Vol XII (A vacina)

Setembro de 2020.

- Está ocupada?

- Em reunião.

- É urgente, preciso falar. O porteiro está com Covid.

- Putz! Ele está bem?

- Está bem sem olfato, mas o pior não é isso. O vizinho que se mudou daqui na semana passada também está com Covid. Foi o vetor da contaminação, nos informou ontem.

- O porteiro tem 70 anos, é diabético, não tem plano de saúde, mora com a esposa, filho e neto em dois quartos aí. Como o pior é o vizinho, ele trabalha em um asilo?

- Eu estive com ele.

- Mas você estava de máscara, esteve com ele à distância, protegido, certo?

- Eu abracei o vizinho.

Silêncio.

- Você abraçou o vizinho? 

- Abracei o vizinho.

- Eu sou sua filha e você não me abraça há meses, me abraçou umas 3 ou 4 vezes na vida inteira. Por que você abraçou um vizinho, de quem jamais ouvi falar, em plena pandemia?

- Ele estava indo embora.

- Da Terra?

- Fui pego de surpresa.

- Ele se jogou nos seus braços?

- Ele tocou a campainha, achei que fosse reclamar, mas veio se despedir de mim.

- Porque estava sendo abduzido?

- Ficamos muito próximos esse ano, o prédio todo se ajudou.

- Extremamente próximos, já percebi, menos de dois metros.

- Ele me trouxe uma caixa de bombons!

- Você desinfetou a caixa imediatamente?

- Eu abracei o vizinho.

- Não sei mais lidar. Vou me oferecer como cobaia na Fiocruz.

 

Abril de 2021

Fico atualizando a aba aberta com o perfil do prefeito esperando a divulgação das novas datas de vacinação. Sabemos a origem das vacinas, falamos sobre insumos, cepas, percentual de proteção. Quando entram no posto improvisado do bairro, a agente de saúde explica que será aplicada a primeira dose de Coronavac e eles deverão retornar em vinte e oito dias para a última etapa de imunização.

- Vinte e oito dias úteis? Ou corridos? Vinte e oito dias como no fim desse mês agora?

- Sim, senhora, eles podem voltar no dia 30 já.

- E estarão protegidos?

Eu sei que a moça pensou “por favor, senhora, me poupe de perguntas óbvias, a senhora assiste a Globonews o dia inteiro, lê jornais, stalkeia Margareth Dalcolmo & Dimas Covas, acompanhe seus pais até a cadeira para que sejam vacinados e vá para casa”, mas ela, gentilmente, apenas sorriu. Minutos depois o Lulu Santos entraria naquele posto e cantaria uma versão de A Cura homenageando o SUS.

 

Eles se revoltam, enviam textinhos emotivos “encaminhados com frequência” no WhatsApp  para nos convencer de que são adultos de posse das suas faculdades mentais e responsáveis por seus atos, o que não nos tranquiliza nem remotamente. Repetem à exaustão “eu sei o que estou fazendo”, “não estou me colocando em risco”, “lá não tinha ninguém” e quase nos convencem de que enlouquecemos acometidos pela paranoia de que um vírus matará nossos pais e por isso precisamos guardá-los em uma redoma, até que somos puxados de volta pelo William Bonner ou quando captamos a fonte da informação que eles trazem serelepes e seguros: “eu li no Facebook! Uma amiga mandou no grupo”. É o gatilho para o ímpeto de invadir os servidores do Zuckerberg e desconfigurá-los de forma definitiva. O YouTube tem a versão “Infantil”, pleiteamos que o Facebook disponibilize a versão “Nossos Pais”.

Já dominaram a arte da faxina, zeraram todas as plataformas de streaming, incorporaram expressões turcas à fala depois de devorar infinitos episódios de séries estranhíssimas, lavaram os cabides dos armários três vezes, desmontaram e montaram todos os eletrodomésticos que quebraram nesse período e revelaram talentos artísticos na criação de videos para aniversariantes que os tornariam celebridades no TikTok. Apelando para a mais baixa chantagem emocional ganharam permissão para rever os netos: “e se eu morrer sem ter vivido com eles?”. Confeccionamos uma indumentária plástica composta por capa de chuva, luvas de borracha, óculos, camadas sobre camadas de máscara, ensinamos técnica de apneia para usarem durante o abraço. Olho admirada a capacidade de adaptação e recuperação deles, de nós, de um mundo inteiro gastando o significado de reinvenção.  

 

Meire prepara a seringa, explica que aquela quantidade é referente a uma dose. Confiro cem vezes se a agulha está nos braços deles, se o líquido foi totalmente aplicado, tento não chorar de alegria, deixar ali a tonelada de medo que pesa em mim há 1 ano, mantenho uma cara de normalidade, mas não resisto no final.

Eu abracei a enfermeira.