Setembro de 2020.
- Está ocupada?
- Em reunião.
- É urgente, preciso falar. O
porteiro está com Covid.
- Putz! Ele está bem?
- Está bem sem olfato, mas o
pior não é isso. O vizinho que se mudou daqui na semana passada também está com
Covid. Foi o vetor da contaminação, nos informou ontem.
- O porteiro tem 70 anos, é
diabético, não tem plano de saúde, mora com a esposa, filho e neto em dois
quartos aí. Como o pior é o vizinho, ele trabalha em um asilo?
- Eu estive com ele.
- Mas você estava de máscara,
esteve com ele à distância, protegido, certo?
- Eu abracei o vizinho.
Silêncio.
- Você abraçou o vizinho?
- Abracei o vizinho.
- Eu sou sua filha e você não
me abraça há meses, me abraçou umas 3 ou 4 vezes na vida inteira. Por que você
abraçou um vizinho, de quem jamais ouvi falar, em plena pandemia?
- Ele estava indo embora.
- Da Terra?
- Fui pego de surpresa.
- Ele se jogou nos seus braços?
- Ele tocou a campainha, achei
que fosse reclamar, mas veio se despedir de mim.
- Porque estava sendo abduzido?
- Ficamos muito próximos esse
ano, o prédio todo se ajudou.
- Extremamente próximos, já
percebi, menos de dois metros.
- Ele me trouxe uma caixa de
bombons!
- Você desinfetou a caixa imediatamente?
- Eu abracei o vizinho.
- Não sei mais lidar. Vou me
oferecer como cobaia na Fiocruz.
Abril de 2021
Fico atualizando a aba aberta
com o perfil do prefeito esperando a divulgação das novas datas de vacinação.
Sabemos a origem das vacinas, falamos sobre insumos, cepas, percentual de
proteção. Quando entram no posto
improvisado do bairro, a agente de saúde explica que será aplicada a primeira
dose de Coronavac e eles deverão retornar em vinte e oito dias para a última
etapa de imunização.
- Vinte e oito dias úteis? Ou corridos? Vinte e oito dias como no fim desse mês agora?
- Sim, senhora, eles podem
voltar no dia 30 já.
- E estarão protegidos?
Eu sei que a moça pensou “por
favor, senhora, me poupe de perguntas óbvias, a senhora assiste a Globonews o dia
inteiro, lê jornais, stalkeia Margareth Dalcolmo & Dimas Covas, acompanhe
seus pais até a cadeira para que sejam vacinados e vá para casa”, mas ela,
gentilmente, apenas sorriu. Minutos depois o Lulu Santos entraria naquele posto
e cantaria uma versão de A Cura homenageando o SUS.
Eles se revoltam, enviam textinhos
emotivos “encaminhados com frequência” no WhatsApp para nos convencer de que são adultos de
posse das suas faculdades mentais e responsáveis por seus atos, o que não nos
tranquiliza nem remotamente. Repetem à exaustão “eu sei o que estou fazendo”,
“não estou me colocando em risco”, “lá não tinha ninguém” e quase nos convencem
de que enlouquecemos acometidos pela paranoia de que um vírus matará nossos
pais e por isso precisamos guardá-los em uma redoma, até que somos puxados de
volta pelo William Bonner ou quando captamos a fonte da informação que eles
trazem serelepes e seguros: “eu li no Facebook! Uma amiga mandou no grupo”. É o
gatilho para o ímpeto de invadir os servidores do Zuckerberg e desconfigurá-los
de forma definitiva. O YouTube tem a versão “Infantil”, pleiteamos que o
Facebook disponibilize a versão “Nossos Pais”.
Já dominaram a arte da
faxina, zeraram todas as plataformas de streaming, incorporaram expressões
turcas à fala depois de devorar infinitos episódios de séries estranhíssimas,
lavaram os cabides dos armários três vezes, desmontaram e montaram todos os
eletrodomésticos que quebraram nesse período e revelaram talentos artísticos na
criação de videos para aniversariantes que os tornariam celebridades no TikTok.
Apelando para a mais baixa chantagem emocional ganharam permissão para rever os
netos: “e se eu morrer sem ter vivido com eles?”. Confeccionamos uma
indumentária plástica composta por capa de chuva, luvas de borracha, óculos,
camadas sobre camadas de máscara, ensinamos técnica de apneia para usarem
durante o abraço. Olho admirada a capacidade de adaptação e recuperação deles,
de nós, de um mundo inteiro gastando o significado de reinvenção.
Meire prepara a seringa, explica
que aquela quantidade é referente a uma dose. Confiro cem vezes se a agulha
está nos braços deles, se o líquido foi totalmente aplicado, tento não chorar
de alegria, deixar ali a tonelada de medo que pesa em mim há 1 ano, mantenho
uma cara de normalidade, mas não resisto no final.
Eu abracei a enfermeira.