- Já percebeu que o silêncio faz um barulho?
(silêncio)
- Se você conseguir ficar quieta posso
perceber.
- Ouvir o silêncio é coisa de letra do Gil ou efeito de drogas,
como ouvir cores.
- É sinestesia.
- O som do silêncio?
- Isso é título de filme mal traduzido. Ouvir cores é sinestesia.
- É LSD.
- Eu tomaria microdoses de LSD como experiência, existem estudos
sobre os benefícios do uso de substâncias psicodélicas em tratamentos guiados
por profissionais.
- Eu tomaria macrodoses de qualquer psicodélico no café da manhã
se isso libertasse minha mente de 2020.
- Eu seguiria o Mestre dos Magos se ele prometesse isso.
- E se estivermos presos num mundo como o da Caverna do Dragão
achando que é 2020, mas na verdade é um universo paralelo?
- Poderiam ao menos me dar a capa da invisibilidade da Sheila.
- A capa da invisibilidade é o “desligar vídeo” do Zoom.
- Ou fingir que a internet caiu.
- Não sei voltar a uma socialização presencial sem esses
recursos, é como regredir na versão do aplicativo.
- O aplicativo que mostra coisas para fazer por perto indicou um
alambique com visitas guiadas a dez quilômetros daqui.
- Dez quilômetros daqui não é meio longe? Já estou isolada no
meio do mato.
- Meio longe é a Ásia, onde eu estaria agora se não precisasse
ficar isolada porque comeram um primo de tatu.
- Você sabe que essas visitas guiadas no alambique não são como viagens
guiadas de LSD, certo?
- Seria só para conhecer um lugar diferente, como se eu estivesse
de férias.
- Você está de férias. Longe de casa! Malas! Reparou? Mas não sei
se precisa beber cachaça às dez da manhã.
- Fazíamos isso às sete em fevereiro fantasiados no Centro, por
que não pode em setembro mascarada no mato?
- Pelo mesmo motivo que só comemos rabanadas no Natal e ovos de
chocolate na Páscoa. E é outro conceito de máscara, um bem sem graça.
- No novo normal eu vou comer rabanadas em maio. Quando ele
começa mesmo?
- Não vai configurar alcoolismo ir em um alambique de manhã?
- Acho que configura pandemia. Estou há dias cercada de
jacus e livros, vou incentivar a produção local.
- Temo que ao beber cachaça no sol meu corpo pense que é Carnaval
e se decepcione quando ninguém mais dançar.
- Não existem muito mais jacus atualmente? Não lembro de jacus na
infância, a serra tinha só maria sem vergonha, bodinhos, charretes e hortênsias.
Pelo meu controle, o número de jacus disparou.
- Como os micos nas cidades.
- Deve ser desequilíbrio ecológico. São espécies invasoras.
- Nós somos as espécies invasoras.
- E agora vou invadir um alambique às dez da manhã de uma
quarta-feira. Vão me deixar entrar por compaixão.
- Se fossem vinhedos na Toscana ninguém questionaria, seria chique
e normal.
- Se esse alambique fosse um vinhedo de Montalcino aquela ponte
de madeira sobre o brejo seria Giverny.
- Se eu tirar uma foto dela e olhar sem óculos vira uma obra do
Monet, tudo borrado mas até que bonito.
- Porém essa ponte está cheia de cocô de jacu.
- Posso catar e vender para amantes de café.
- Quem toma café de cocô de jacu?
- Quem na Ásia tomaria café de cocô de luwak.
- É estranho que beber cocô seja chique e normal.
- As pessoas fazem coisas estranhas e ninguém questiona.
- Dona Bruna, estamos indo, mas se precisar de alguma coisa é
só chamar na recepção, tá?
- Obrigada, Jamile.
- Está tudo bem?
- Sim, tudo ótimo.
- A senhora costuma viajar muito sozinha?
- Pois é, o tempo todo. Sorte que eu escrevo, assim ninguém questiona.