Dia 595
Não era meu aniversário, aquele
grupo enorme de amigos na porta de casa não podia ser uma festa surpresa
delivery.
- Que inesperado, vão entrando.
Opa, sapatos não. Eita, dois beijinhos? Não era soquinho, super gêmeos?
- Trouxemos bebida, vou colocar
na geladeira.
- Passa álcool, tem na pia, tem
na mesa também, que surpresa, pessoal! Legal. Quer dizer, mais ou menos, não me
lembro se antigamente aparecíamos assim na casa dos outros, bum, todo mundo
junto! É o novo normal? Eu cancelei o jornal...
- Viemos conversar com você.
- Está tudo bem? Cadê meus
pais?
- Estamos aqui. Essa é a
questão: está ficando tudo bem. Lá fora.
- E, como seus melhores amigos,
achamos que você precisa de ajuda na ressocialização então viemos te buscar
para voltar ao mundo como antes.
- Entendi. É que “como antes”
não vai ser possível, passou tempo, né? Nem enxergo mais as coisas como antes e
não é modo de dizer, é vista cansada mesmo, cansadíssima. Aliás, eu não sei se
não nos vemos há tanto tempo que alguns de vocês não estou reconhecendo. Esses homens
aqui, a gente se conhece?
- Somos os seus futuros
crushes.
- Nunca vi vocês na vida.
- Porque ainda não aparecemos
nela, precisamos que você vá a lugares para isso. Não usa nem Tinder...
- Crush, querido, eu não uso nem
Uber. Não pego táxi que não conheço, quiçá gente nessa situação.
- Por isso viemos, amiga. Você
precisa começar a sair de casa.
- Agora que ela ficou super bem
decorada? Internet com giga velocidade, sofá perfeito, esse sofá levou oito
meses para chegar. Inclusive eu acho que vocês estão um pouco aglomerados nele,
mantenham-se, por favor, a um metro e meio de distância, pelo menos de mim.
Exceto esse futuro crush de camisa preta, que pode se aproximar com PCR
negativo em mãos para agilizar, por favor.
- Chegamos a 70% da população
vacinada, deu certo! Os hospitais desativaram as UTIs de Covid!
- Achei que fôssemos cantar nas
ruas, abraçados, quando isso acontecesse.
- Podemos cantar nas ruas, o
Circo reabriu, vamos de novo nos encontrar do lado direito do palco, imagina!
- Essa parte do “imagina” é
que... Tia, você está com uma máscara de pano?
- Sim! Tomei a terceira dose
já. Ao ar livre fico até sem.
- Estou achando tudo um pouco
intempestivo.
- Tem quase dois anos!
- Exatamente! E agora vamos
alopradamente despir nossas bocas, espirrar livremente? Imagina uma plateia lotada de gente sem
máscara cantando, arremessando vírus em todas as direções, minhas duas narinas expostas
como um aspirador robô catando tudo.
- Vamos começar indo a shows em
espaços abertos.
- Com bandas que toquem mais
baixo? Não sei se tem necessidade daquele volume do som tão alto. E não tenho
mais condições de passar horas em pé, envelheci dezenove meses desde aquela
Orquestra Imperial. Estou sentada em reunião todo esse tempo.
- Então vamos à praia nesse fim
de semana, você ia à praia até com chuva.
- Acho que não tem mais
necessidade também, aquela falação, né? Uma falta de privacidade, era queijo
coalho passando, frescobol, a maré subia, vinha criança embrulhada na
arrebentação, posso seguir indo à cachoeira, é mais civilizado. Cada um espera
a vez do outro para se molhar, não tem aquilo de co-existir banhado pelo mesmo
líquido que traz resíduos sabe-se lá de qual origem. E ninguém leva caixinha
bluetooth para a cachoeira.
- Esse é um bom argumento, vamos
à cachoeira então, mas depois vamos almoçar fora. Comida direto da cozinha para
a mesa, garçom ao invés de entregador, ver gente, dividir conta, saideira.
- Esse fim de semana não vou
poder, estou pesquisando casas na serra para alugar.
- Mas agora todos estão
voltando, acabou o home office.
- Olha aí, grande valor de
negociação.
- Vamos ver o filme que estreou
daquele diretor que você adora, está todo mundo comentando.
- Tenho acompanhado. E acompanhado também a curva de crescimento dos Imutáveis, adoecidos pelo vírus do “deixa tudo como era”, está aumentando. Eles são muito agressivos e parecem imunes ao que combinamos. Íamos "rever nossas posturas e valores"*, “o abraço vai ser mais verdadeiro, a conversa, mais sincera, o olhar, mais sensível, a vida, mais simples e solidária”**, lembra?
- Eles não são imunes, são apenas
muito resistentes, mas nunca são assintomáticos então é fácil identificá-los e
se proteger.
- Eles se isolam? Porque não criei
novos protocolos para isso, não sei a distância segura, as pessoas que não testei,
estão mesmo vivendo sem máscara lá fora? No momento em que sairmos dessa casa é o mundo
que nos engole. Acordaremos com a ânsia de aonde ir, como se ocupar, o que
parecer, o que postar, uma roda viva de estímulos e atrações e voltaremos a
viver como hamsters atrás da cenourinha de felicidade buscando lá fora o que só
existe aqui dentro.
- De casa ou de nós? Se for de
nós é mais fácil porque basta levarmos conosco.
- Tem sempre outro palco onde
não estamos, outra festa para a qual não fomos convidados, são sempre ingressos
esgotados, o novo restaurante que não conhecemos, a nova música que não ouvimos
nem ninguém ouviu, só passaram por ela. Como passarão por mim, como passarei
por eles sem nunca mais saber como realmente estão. E não daremos mais os
abraços que queríamos tanto, daremos um tapinha nas costas e falaremos por cima
sem atenção, ninguém nunca mais ficará mudo, mas ninguém vai mais se ouvir. E
seremos contaminados com a mesma doença de antes.
- Estamos imunizados por uma experiência
que jamais esqueceremos. Existem negacionistas, mas são como a minoria
barulhenta.
- Será? Eu sou grupo de risco.
Vão indo e me contem. Estou me guardando para quando o Carnaval chegar.
- Esperamos por você na Sapucaí
então.
- Combinado. Enquanto isso, deixa
o crush de camisa preta aqui. Aprendi a fazer risoto.