Tenho mania de apagar as luzes dos espaços vazios - das salas de reunião, da copa. É pelo tanto que meu pai reclamava “vocês acham que são sócios da Light?”. Não saio fazendo isso na casa dos outros, só na minha. Ajeito objetos também, a parede de troféus que vivem fora do lugar. O escritório era tão barulhento, agora fica um silêncio. Noite dessas, disse para uma pessoa que estava por lá: estou acostumada a ouvir meus próprios passos nessa sala.
“O
que ter na mesa em tempos de demissão sumária” é o título de um dos capítulos
do livro que peguei para reler essa semana. “Manual da Demissão”, de Julia
Wahmann, fevereiro de 2018. Sempre digo a ela que esse livro deveria ter uma
publicação contínua em fascículos ou atualizações anuais como faziam com o
Almanaque Abril. Ela lista “lenços de papel, calendário de mesa, colírio
lubrificante, carregador de celular” e mais 2 páginas de coisas onde conclui
que “você precisa de apenas três itens sobre a mesa em tempos de demissão sumária:
um maiô, uma droga e o telefone de um bom psiquiatra”. Meu impulso de atualizar
a lista acabou em um pensamento: não temos mais mesa no escritório.
“Quer
que eu pegue suas coisas no armário para não precisar voltar aqui?”, escrevi, segundos
depois de ter mandado outra mensagem perguntando se ele não preferia ir de Uber
para casa, eu poderia levar o carro mais tarde. Na minha cabeça giratória, o
homem estaria vagando pelas ruas ao redor da empresa atravessando entre os
carros que buzinavam, desorientado como nos filmes. Mas essa era eu,
mentalmente. Ele estava calmo. “Estou na moto, parei para te atender”. Eu já
tinha roubado o momento dele de cair em prantos quando agi assim ao saber o que
tinha acontecido, agora o impedia de cumprir reflexivamente seu caminho para
casa. “Fica calma”. “Desculpa, era eu quem deveria dizer essa frase ao ouvir sua
notícia”. A notícia era “acabei de ser demitido”.
Como
achávamos que voltaríamos poucas semanas depois, levamos conosco somente o
essencial para seguir trabalhando. Era março de 2020, deixamos nas mesas canetas,
grampeadores, clipes, post its, papéis impressos, bolinhas anti-stress, calendários,
porta-trecos cheios de trecos, bonequinhos, souvenirs que os colegas traziam
das férias, fotos que insistíamos em prender nas baias mesmo contrariando as
regras do ‘open space’. Nossa tralha ali configurava “nosso lugar”. “Nosso
lugar” era onde passávamos enorme parte da nossa vida, e nossa vida era apegadíssima.
Quando o prédio ficou pronto, já tínhamos escolhido os lugares na sala nova: pessoas
da mesma equipe sentariam próximas, tínhamos que ficar perto para funcionar. Era
tão perto que participávamos de qualquer conversa que o outro tivesse, de questões
dos filhos no telefone a assuntos de trabalho mesmo. A nova sala não podia ter
gaveta, seríamos modernos e modernidade eram os armarinhos. Em inglês, lockers.
E acabava ali a era de computador nas mesas, ganhamos notebooks. Não podia deixar
nada nas mesas, teria blitz da tralha! “Ao ir embora, guardem seus notes nos
lockers”. Na primeira semana teve gente indo na Tok Stok comprar gaveteiros
clandestinos, até cabideiro alguém adaptou na decoração. A iluminação também
teve uma leve alteração, na calada de uma noite mudaram uma lâmpada por outra
mais potente, ninguém pode trabalhar
direito à meia luz. Na refrigeração também mexemos um pouquinho, uma rápida
construção de canaleta plástica para o vento do ar condicionado não nos matar
de rinite. E vivíamos assim, arrastando tina de gelo pela sala em noite de
festa não-autorizada, o general da Segurança que lutasse depois para nos punir.
Já tínhamos sido um pouco multados anos antes por formar um bloco de Carnaval,
nada muito grave aconteceria que não valesse a pena.
Em
uma versão filme de terror do lema “the show must go on”, guardei o celular, ele
seguiria o caminho para casa e eu para as reuniões. Um pouco de água no rosto, um
sorriso e, voilá, o piloto do novo programa despertava boas risadas, tínhamos
em mãos um potencial sucesso de audiência! De views. O que for, um bom produto.
A perspectiva animadora da criação coexistia no meu corpo com outra parte de
mim que soluçava ainda. A gente tinha tempo de chorar quando escritórios tinham
gavetas? Quando eram tão perto as telas dos nossos computadores que eu o via
pagando o IPVA e não precisava saber o calendário do Detran, desvendar os sites
para os pagamentos, ele mandava cada link, as datas e “toma aí, Maria, paga
teus boletos” (nem para pagar meus boletos, hein?). Quando, entre pizzas e
Doritos em noites geladas no controle de transmissão, comentamos que passávamos
mais horas uns com os outros do que com as nossas famílias.
Um
tal de novo normal se anunciava no planeta e um dia avisaram que teríamos que
buscar nossas caixas no escritório. Não se previa um retorno, recolheram tudo o
que deixamos lá e guardaram em papelão. Foi como abrir uma cápsula do tempo, com
a estranheza de que não haviam se passado tantos anos assim, mas nada daquilo servia
mais: a tinta das canetas tinha secado, as informações dos papéis expirado, não
imprimíamos mais nada para precisar de clipes e Lumicolors, não havia suporte para
as recordações porque não teríamos mais lugar fixo na volta. Bastariam fones e
copos para beber água nos lockers sem nossas tralhas.
O
que não deixamos nas mesas nem guardamos nas caixas, nos lockers ou salvamos nos notes é o intangível: o que aprendemos, as piadas internas, o saber a quem recorrer, a segurança de contar com a experiência e o
talento que se somam nas horas mais arriscadas, o apoio, a complementariedade, a
confiança, o saber antecipar o que o outro vai achar, o “vai por mim e depois me fala”, o “liga quando puder que quero
saber sua opinião”, o sorriso ao se encontrar no mundo ainda não reajeitado para
os tais novos tempos que parecem sempre tão transitórios.
Porque eles são. O estável somos nós, constituídos pelas nossas tralhas de histórias,
e amor.