O
Parque tem dois canos enormes que nos últimos tempos sofrem uma crise hídrica e
não nos refrescam mais, um terceiro que parece que vai furar nossos crânios com
a força da água, macacos eternamente famintos e muitos cachorros. Tem a Gabi,
que conhecemos um dia descendo a mini-trilha dos canos, os vinte e um pugs que andam
com o passeador e sempre nos fazem rir e os que vão surgindo a cada dia. Foi em
um desses que conhecemos Simba.
Os
dois cãezinhos subiam a ladeira com a metade das línguas para fora, caminhando
com aquele rebolado de quem tem as patinhas curtas e sem pressa de chegar a
nenhum lugar. O caramelo parecia um salsichinha avantajado, corpo comprido parrudo
e aquela estatura rebaixada que os torna engraçados. “Acho que esse cachorro é
lá do Horto”, notou J, “sempre o vejo solto por lá”. Ainda não sabíamos que se
chamava Simba e que até aquela manhã estava por aí em um estado emocional tão
ruim, se sentindo muito mal, quando cruzou o teu caminho e te mudou a direção o
Outro.
O
Outro era uma graça, preto, peludinho, pequenino e assustado quando chamávamos para
dar carinho e água, oferta que ambos esnobaram, e entendemos que Simba estava
mais interessado em seguir o companheiro do que se hidratar ou ganhar festinha na
cabeça. “Espero que essa relação seja consensual”, pensamos ao vê-lo subir no
amigo ali mesmo na frente de todos que esperavam por um café. Nenhuma intenção
de esconder ou deixar subentendido. A diferença de tamanhos tornava o
encaixe um pouco complicado, mas não quisemos ficar analisando. Mergulhamos na
cafeína, eles na luxúria, vai, Simba, consideramos justa e invejável toda forma
de amor. Inveja boa, que isso valha pra qualquer pessoa. Vamos nos permitir.
No
dia seguinte, J soube pelas redes sociais que Simba tinha uma dona que pedia
informação a quem quer que pudesse tê-lo visto. De
tanto fugir, já dera meia volta ao mundo levitando de tesão, não tinha mais dedos nas
patinhas para contar de quantas janelas se atirou e quanto rastro de
incompreensão já deixou. Talvez Simba fosse o último cão romântico dos litorais
desse oceano Atlantico. Sempre volta para casa, caminha pronta e rango na
tigela, mas, dessa vez, estava demorando demais.
J
quis mandar um direct para ajudar a Dona no reencontro. “Mas não sabemos como é
a relação deles, vai que ela fica contrariada”, ponderei, “diz que ele estava perdido, sozinho, errando de
bar em bar”. “Não tem bar no parque, ela não vai acreditar”. “Vai que Simba quis evitar os olhos do Outro, não pôde
resistir e agora a Dona vai atrapalhar essa aventura? Vai que o Outro demonstrou
tanto prazer de estar na companhia dele que experimentou uma sensação que até
então não conhecia e você vai estragar por uma tolice de resgatá-lo?" Eu já via Simba
como um flagelado da paixão, retirante do amor, desempregado do coração.
J mandou o direct, a dona resgatou Simba no parque, não soubemos mais do Outro. Fiquei imaginando Simba em uma casa agora gradeada, preso a uma coleira, sangrando pelo sonho de viver. Talvez seja eu a última romântica, a voz nunca rouca mas o coração na mão. Talvez falte eu acordar. Talvez tenha ido a shows demais do Lulu Santos desde o Metropolitan com Milton Guedes no sax. Talvez eu ache que a explicação para o vigor e animação daquele homem de 70 anos seja o amor por Clebson exposto publicamente em palcos e parques e queira isso para Simba e o Outro.
J
demolirá toda certeza vã e dirá: Simba só quer transar. E se isso for algum
defeito, por mim, tudo bem.