23.6.24

Are we human?

Por alguma razão a afilhada estuda em uma escola alemã, fala frases que não entendo e por isso – a escola, não a linguagem - me convidou para vê-la dançar na Festa do Colono Alemão. “Nosso tema são os Irmãos Grimm, Dinda”. Encontrei-a com as amigas na coxia, todas vestidas com saias compridas de tule azul claro, ensaiando próximas aos meninos-príncipes. Que seguravam cavalos de pau. 

“É sério isso?”. A mãe da criança rapidamente aponta para meia arrastão por baixo da saia, um símbolo de transgressão que poderia evitar que a madrinha não-fada inflamasse ali uma revolta feminista anticolonial. “Toma esse salsichão, senta e aplaude”. Na abertura da dança, Rapunzel, Cinderela sem um tênis e Branca de Neve se encontram em um fim de... resenha (?), não sabem onde estão seus pares e decidem sair para comer uma pizza.

 

I was always there for you, oh, I was always on time and I gave you my all so now you call, I decline

 

Em um reino não tão distante dali, ex-princesas e ex-príncipes que saíram da escola uns 30 anos antes também dançavam numa festa. Elas dançavam, em roda. Eles fumavam charuto, um garçom oferecia tequila aos que ignoravam a voz interna sábia que dizia “você vai se arrepender desse shot em poucas horas”, ressaca depois dos quarenta tem sintomas de chicungunha. 'Lembra quando tomávamos Sol com uma rodela de limão? E fumávamos Goudan.'

“Três pessoas da nossa turma foram presas. Como presas, estelionato? Assalto em residência. Eu achava que cometeríamos crimes mais discretos.”

Aos sete anos um dos assaltantes cometeu chegar com um buquê de rosas vermelhas no meu aniversário no play, um pânico que carrego na memória por não saber de que forma arremessaria o garoto ou as flores pela janela. Incrível como tão nova eu tinha a capacidade de avaliar bem os homens que escolhia.

 

Heartbraker you´ve got the best of me, I should have known right from the start you were gonna break my heart.

 

Vai ficar tudo bem, princesa.

 

“Você não acha que a gente muda? Somos iguaizinhos. Acho que mudei um bocado nesse tempo. Você sempre foi a roteirista. Mas me tornei um pouco comunista. Não teria sobrevivido lá fora se não fosse assim”.

 

I still believe in your eyes. I just don't care what you've done in your life.

 

E como bons amigos de adolescência que se reencontram, combinamos de comprar o terreno de Itaipava em um sistema de cotas e construir nossa ecovila comunitária com espaço para pouso de aeronaves alienígenas. Alguns passaram a acreditar em ETs, outras passaram a acreditar.

 

How I wish

How I wish you were here?

 

As pessoas que não vemos morrer parece que sumiram e que ainda estão ali.

“Como você está? É difícil. Posso te dar um abraço? Demoramos para nos dar esse abraço, não é? Levou o tempo que precisava levar. Passamos a vida achando que nós éramos o perigo. Eu queria ser aquela mulher que ele via em mim, mas ela era uma ilusão, perfeita, levamos uma vida para se deixar ser o contrário. Levou o tempo que precisava levar.”

 

Aos primeiros acordes da nona de Beethoven a música se tornou um mash up de Macarena. Aquela que dançávamos com os braços em uma coreografia pre-Tik Tok, em roda, na night. A princesa de meia arrastão abriu um sorriso de alegria infantil que derreteu o coração da Dinda, as saias de tule passaram a se divertir jogando o corpo no mundo em movimentos ainda meio descoordenados. Os príncipes entraram depois.

 

And sometimes I get nervous when I see an open door

Close your eyes clear your heart

Cut the cord

22.3.24

Hear it on my window pane (Rain, I feel it)

A culpa da chuva é do Lollapalooza e ninguém tira isso da minha cabeça. “Mas, Bruna, são as águas de março fechando o verão desde os festivais da canção”. Não interessa, o Lollapalooza atrai situações extremas, foram anos de transmissão temendo sair para almoçar e voltar para encontrar a equipe toda dentro de uma van, público montadíssimo nos looks super cool atordoado sem saber o que fazer, shows cancelados, foi o Lollapalooza que causou o furdunço da chuva no Rio. Talvez eu não devesse escrever isso, posso parecer negacionista climática.

“Não sei se vejo o prefeito ou a Kate”, me diz um enclausurado. O governante está acampado em uma central de controle reportando hora a hora o volume de água que cai, rezando para que nenhuma desgraça aconteça e sua popularidade tenha o mesmo destino. A princesa britânica reapareceu depois das mais fantásticas teorias sobre seu sumiço, que incluíam até Caverna do Dragão e o Uni. Nada me distrai. A médica desmarca minha consulta, o músico desmarca a roda de samba, o professor cancela a aula até do dia seguinte, meu coração começa a palpitar em um deja vu que não parece bom. Eu presa nesse apartamento, me comunicando com outros na mesma situação por aí. Respondo três emails e checo o celular, duas mensagens e abro a geladeira, meia página de roteiro e dou uma volta pela casa. Esse dia não vai acabar logo. Visto minha super capa de chuva e vou ao mercado comprar entorpecentes.

Uma lata de Leite Moça, chocolate em pó, pãezinhos de queijo...

“O macarrão”.

“Oi?”

“E o atum. Não vai levar macarrão e atum?”

Era o atendente, bastante atento pelo visto.

“Na greve dos caminhoneiros você ficou sem gasolina, na crise da geosmina sem água mineral, começou a pandemia sem papel higiênico. Não aprendeu nada sobre fim do mundo?”

“Não como gluten”, respondi, pegando uma lata de atum ralado por puro constrangimento e pensando que ter amigas escritoras estava deixando minha vida muito exposta. “E não é o fim do mundo”, deveria ter dito, mas éramos os únicos no local em uma sexta-feira à tarde. A angústia só aumentava. Sigo para casa já planejando desinfetar todas as compras, gatilhos são estranhíssimos.

Uma cascata de água desaba do céu. O ex-Twitter-que-só-chamo-assim mostra imagens preocupantes de Petrópolis, de onde a madrinha que se recusou a sair nos acalma dizendo que estocou comida. Realmente não aprendi nada. Percebo que nem reunião marcaram, desde março de 2020 não passo um dia útil sem entrar no Teams.  Passaram trinta e oito minutos desde o mercado.

“Poderemos sair amanhã?”, debato virtualmente. “Um encontro com amigos do mesmo bairro depois de medirmos a profundidade das poças”, que tal? Os grupos começam a recomendar séries, filmes, livros, se alguém propuser uma festa online vou gritar na janela. Não, não farei nada na janela. “Vamos ficar transando”, uma fala. É excluída do grupo, já existia ansiedade demais no ar para alguém com reposição hormonal se manifestar.  Outra manda a recordação do Facebook (?) onde aparecemos de vestidos tomara que caia que não se chamam mais tomara que caia e bronzeadíssimas em um verão 14 anos atrás. Não sei se sinto mais falta de ter colágeno ou produzir melanina, e lembro dos verões passados alagados. Não dos alagamentos trágicos, das chuvas em que sorrimos. O Carnaval onde nos fantasiamos de Arca de Noé, um de cada bicho envoltos por uma boia inflável gigante – era tanto espaço no Boitatá que ficávamos assim dançando no temporal. O show da Madonna no Maracanã em que a cada vez que abríamos a boca para cantar engolíamos alguns litros d´agua, mas amamos. O show do Roberto Carlos no mesmo Maracanã, onde parecíamos camisinhas gigantes usando aquelas Capuchas, como era grande meu amor. Somos ecléticas musicalmente, e incansáveis: no último Rock in Rio assisti a Iza pelo pequeno espaço para meus olhos que restava de fora no casaco náutico que peguei do meu pai, cinco vezes meu tamanho, mas estava lá – Pesadão Pesadão dão. Assim como na Marina da Gloria para Los Hermanos, Marisa Monte. Caetano? Não, fui tão esperta nessa doce maravilha, me perdoa, Caetano. Não saia do meu lado, segure o meu pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixo, acho que a chuva ajuda a gente a se ver...

Nada. Peço que caia devagar.