25.12.24

Esse turu-turu-turu aqui dentro II (Um conto cardíaco de Natal)

 - Bruna, acorda!

- Quem é você? (olhos arregalados como o emoji)

- Sou o Elfo.

- Juro: isso nunca me aconteceu antes. Tenho tido problemas de memória - nos conhecemos? Já é Carnaval?

- Sou o elfo do Natal, vim com o Papai Noel.

- Me drogaram. Eu sou bradicárdica, não posso tomar MD!

- Viemos entregar seus presentes, mas Noel está se sentindo mal, algo no coração. Precisamos que você nos leve ao hospital.

- Vou chamar uma ambulância.

- Ele não quer ambulância, o trenó está aí fora.

- Aí fora na janela? Como não quer ambulância? Eu nunca dirigi renas, ele tem plano de saúde?

**************

 

- Vão examiná-lo, mas isso demora.

- Como faremos com o Natal? Já lidamos com crise de credibilidade, se entrarmos nas casas de dia imagina o caos.

- Vocês conseguem entregar os presentes sem ele?

- Natal sem Noel?

- Buchecha sem Claudinho? Não tenho expertise em entrar em casas pela chaminé principalmente em uma cidade sem chaminés. Vamos nos dividir, fico aqui.

- Você é um pouco mandona.

 - Achei que na elfolândia isso já estivesse superado. Você entende o propósito de mantermos o Natal? Revisão de planejamento? Divisão de tarefas?

- Estamos indo.

 

***************

- Já me sinto melhor, acho que foi a pressão do prazo, a expectativa de todos, um cansaço enorme. Não tenho mais vinte anos.

- Não sei que tipo de skincare o senhor faz nem quero ser etarista, mas me parece que já não tinha vinte anos lá em 1800.

- Antes eram só cartinhas, agora mandam email, DM, acredita que mandam até áudio?

- Espero que na ordem de prioridades esses fiquem por último.

- Devo amar a todos igualmente, todos cabem no meu coração. Quer dizer, 'todes'.

- Agora não estou acreditando em você.

- Nem eu. E o seu, posso olhar? Bate mesmo tão devagar.

Tem umas barricadas em volta, vou tirá-las.

- Não! Pode explodir, às vezes parece que não cabe em mim. Ou pode quebrar de novo, acontece à toa, é mal feito.

- Ele é tão grande, mas não parece indefeso. Tem bastante coisa dentro mas está até  bem organizado.

- Porque tem muitas mulheres, elas fazem isso.

- Elas que colocaram essas crianças na parte da Sabedoria? São seus filhos?

- O senhor não deveria saber?

- Esse que tudo vê é outro, eu tenho mais o que fazer.

- Eu poderia ter me comportado mal esse ano então? Não estava prestando atenção em mim?

- Querida, seja forte: ninguém está tanto assim, faz o que quiser.

- São minhas sobrinhas. Muitas irmãs, amigas, não tenho filhos.

- Mas seu coração está inteiro, não falta pedaço.

- Quem disse que faltaria?

- Tem umas pessoas no alto de um armário e parecem quebradas. É para mantê-las?

- Acho que tem conserto algum dia, deixa aí. Ocupam muito espaço?

- Não tanto quanto esses sacos de lixo aqui... tem umas verdades fora da validade, outras pessoas dentro! Credo, parecem péssimos.

- Putz, pode me ajudar a descartá-los? A toda hora me planejo para isso, acontece alguma coisa e não faço. Fico achando que vai ser como moda que volta, sabe? Aí vou querer e não terei.

- Livramento, isso é mais inútil do que guardar calça clochard. E, se me permite dizer, não combinam em nada com você mais, não tem moda que volte.

Tem centenas de monitores ligados aqui, uma barulheira.

- É minha central, monitoro tudo. Não viu Divertidamente?

- Aquilo era o cérebro. Ops...

- O que você fez?! Não pode desligá-los, vou perder o controle!

- Você está em uma emergência com Papai Noel, chegou com elfos, dirigiu renas, dizer que tem a ilusão de que domina a realidade e controla alguma coisa... Está difícil de acreditar em você.

- Sei como se sente.

- Olha como melhorou, ouve-se até um samba aqui dentro agora! Playlist excelente. Vamos dar uma volta, será que tem um bar aberto ainda?

- Você frequenta bares?

- Não acerto fazer em casa um bom Fitzgerald.   

- Vamos assim sem disfarce?

- Consertamos nossos corações, vamos como quisermos. Sem tralhas e funções inúteis talvez o seu passe até a disparar de novo.

- Não quero borboletas!

- Pede isso em uma cartinha para mim e penso.  Vamos ver se alguém acredita em nós.

23.6.24

Are we human?

Por alguma razão a afilhada estuda em uma escola alemã, fala frases que não entendo e por isso – a escola, não a linguagem - me convidou para vê-la dançar na Festa do Colono Alemão. “Nosso tema são os Irmãos Grimm, Dinda”. Encontrei-a com as amigas na coxia, todas vestidas com saias compridas de tule azul claro, ensaiando próximas aos meninos-príncipes. Que seguravam cavalos de pau. 

“É sério isso?”. A mãe da criança rapidamente aponta para meia arrastão por baixo da saia, um símbolo de transgressão que poderia evitar que a madrinha não-fada inflamasse ali uma revolta feminista anticolonial. “Toma esse salsichão, senta e aplaude”. Na abertura da dança, Rapunzel, Cinderela sem um tênis e Branca de Neve se encontram em um fim de... resenha (?), não sabem onde estão seus pares e decidem sair para comer uma pizza.

 

I was always there for you, oh, I was always on time and I gave you my all so now you call, I decline

 

Em um reino não tão distante dali, ex-princesas e ex-príncipes que saíram da escola uns 30 anos antes também dançavam numa festa. Elas dançavam, em roda. Eles fumavam charuto, um garçom oferecia tequila aos que ignoravam a voz interna sábia que dizia “você vai se arrepender desse shot em poucas horas”, ressaca depois dos quarenta tem sintomas de chicungunha. 'Lembra quando tomávamos Sol com uma rodela de limão? E fumávamos Goudan.'

“Três pessoas da nossa turma foram presas. Como presas, estelionato? Assalto em residência. Eu achava que cometeríamos crimes mais discretos.”

Aos sete anos um dos assaltantes cometeu chegar com um buquê de rosas vermelhas no meu aniversário no play, um pânico que carrego na memória por não saber de que forma arremessaria o garoto ou as flores pela janela. Incrível como tão nova eu tinha a capacidade de avaliar bem os homens que escolhia.

 

Heartbraker you´ve got the best of me, I should have known right from the start you were gonna break my heart.

 

Vai ficar tudo bem, princesa.

 

“Você não acha que a gente muda? Somos iguaizinhos. Acho que mudei um bocado nesse tempo. Você sempre foi a roteirista. Mas me tornei um pouco comunista. Não teria sobrevivido lá fora se não fosse assim”.

 

I still believe in your eyes. I just don't care what you've done in your life.

 

E como bons amigos de adolescência que se reencontram, combinamos de comprar o terreno de Itaipava em um sistema de cotas e construir nossa ecovila comunitária com espaço para pouso de aeronaves alienígenas. Alguns passaram a acreditar em ETs, outras passaram a acreditar.

 

How I wish

How I wish you were here?

 

As pessoas que não vemos morrer parece que sumiram e que ainda estão ali.

“Como você está? É difícil. Posso te dar um abraço? Demoramos para nos dar esse abraço, não é? Levou o tempo que precisava levar. Passamos a vida achando que nós éramos o perigo. Eu queria ser aquela mulher que ele via em mim, mas ela era uma ilusão, perfeita, levamos uma vida para se deixar ser o contrário. Levou o tempo que precisava levar.”

 

Aos primeiros acordes da nona de Beethoven a música se tornou um mash up de Macarena. Aquela que dançávamos com os braços em uma coreografia pre-Tik Tok, em roda, na night. A princesa de meia arrastão abriu um sorriso de alegria infantil que derreteu o coração da Dinda, as saias de tule passaram a se divertir jogando o corpo no mundo em movimentos ainda meio descoordenados. Os príncipes entraram depois.

 

And sometimes I get nervous when I see an open door

Close your eyes clear your heart

Cut the cord

22.3.24

Hear it on my window pane (Rain, I feel it)

A culpa da chuva é do Lollapalooza e ninguém tira isso da minha cabeça. “Mas, Bruna, são as águas de março fechando o verão desde os festivais da canção”. Não interessa, o Lollapalooza atrai situações extremas, foram anos de transmissão temendo sair para almoçar e voltar para encontrar a equipe toda dentro de uma van, público montadíssimo nos looks super cool atordoado sem saber o que fazer, shows cancelados, foi o Lollapalooza que causou o furdunço da chuva no Rio. Talvez eu não devesse escrever isso, posso parecer negacionista climática.

“Não sei se vejo o prefeito ou a Kate”, me diz um enclausurado. O governante está acampado em uma central de controle reportando hora a hora o volume de água que cai, rezando para que nenhuma desgraça aconteça e sua popularidade tenha o mesmo destino. A princesa britânica reapareceu depois das mais fantásticas teorias sobre seu sumiço, que incluíam até Caverna do Dragão e o Uni. Nada me distrai. A médica desmarca minha consulta, o músico desmarca a roda de samba, o professor cancela a aula até do dia seguinte, meu coração começa a palpitar em um deja vu que não parece bom. Eu presa nesse apartamento, me comunicando com outros na mesma situação por aí. Respondo três emails e checo o celular, duas mensagens e abro a geladeira, meia página de roteiro e dou uma volta pela casa. Esse dia não vai acabar logo. Visto minha super capa de chuva e vou ao mercado comprar entorpecentes.

Uma lata de Leite Moça, chocolate em pó, pãezinhos de queijo...

“O macarrão”.

“Oi?”

“E o atum. Não vai levar macarrão e atum?”

Era o atendente, bastante atento pelo visto.

“Na greve dos caminhoneiros você ficou sem gasolina, na crise da geosmina sem água mineral, começou a pandemia sem papel higiênico. Não aprendeu nada sobre fim do mundo?”

“Não como gluten”, respondi, pegando uma lata de atum ralado por puro constrangimento e pensando que ter amigas escritoras estava deixando minha vida muito exposta. “E não é o fim do mundo”, deveria ter dito, mas éramos os únicos no local em uma sexta-feira à tarde. A angústia só aumentava. Sigo para casa já planejando desinfetar todas as compras, gatilhos são estranhíssimos.

Uma cascata de água desaba do céu. O ex-Twitter-que-só-chamo-assim mostra imagens preocupantes de Petrópolis, de onde a madrinha que se recusou a sair nos acalma dizendo que estocou comida. Realmente não aprendi nada. Percebo que nem reunião marcaram, desde março de 2020 não passo um dia útil sem entrar no Teams.  Passaram trinta e oito minutos desde o mercado.

“Poderemos sair amanhã?”, debato virtualmente. “Um encontro com amigos do mesmo bairro depois de medirmos a profundidade das poças”, que tal? Os grupos começam a recomendar séries, filmes, livros, se alguém propuser uma festa online vou gritar na janela. Não, não farei nada na janela. “Vamos ficar transando”, uma fala. É excluída do grupo, já existia ansiedade demais no ar para alguém com reposição hormonal se manifestar.  Outra manda a recordação do Facebook (?) onde aparecemos de vestidos tomara que caia que não se chamam mais tomara que caia e bronzeadíssimas em um verão 14 anos atrás. Não sei se sinto mais falta de ter colágeno ou produzir melanina, e lembro dos verões passados alagados. Não dos alagamentos trágicos, das chuvas em que sorrimos. O Carnaval onde nos fantasiamos de Arca de Noé, um de cada bicho envoltos por uma boia inflável gigante – era tanto espaço no Boitatá que ficávamos assim dançando no temporal. O show da Madonna no Maracanã em que a cada vez que abríamos a boca para cantar engolíamos alguns litros d´agua, mas amamos. O show do Roberto Carlos no mesmo Maracanã, onde parecíamos camisinhas gigantes usando aquelas Capuchas, como era grande meu amor. Somos ecléticas musicalmente, e incansáveis: no último Rock in Rio assisti a Iza pelo pequeno espaço para meus olhos que restava de fora no casaco náutico que peguei do meu pai, cinco vezes meu tamanho, mas estava lá – Pesadão Pesadão dão. Assim como na Marina da Gloria para Los Hermanos, Marisa Monte. Caetano? Não, fui tão esperta nessa doce maravilha, me perdoa, Caetano. Não saia do meu lado, segure o meu pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixo, acho que a chuva ajuda a gente a se ver...

Nada. Peço que caia devagar.