14.5.12

Delas

As cartelas de comprimidos são desafiadoras, sempre penso qual pastilha destacar de maneira que o buraco deixado construa uma forma harmoniosa. Raras são as cartelas com fileiras certinhas de comprimidos, a maioria é levemente desalinhada e isso me obriga a calcular como ficará a disposição de espaços com e sem remédios antes de simplesmente pegar um e engolir com água. Essa inofensiva estranheza herdei do meu pai, para quem o universo com seus continentes mal recortados exige uma dupla de réguas para ordená-lo simetricamente, mas sempre penso na sorte que é conseguir engolir comprimidos inteiros ou os remédios gerariam outro problema. Minha avó, por exemplo, tinha certeza de que aquele pó industrialmente compactado não passaria pela sua garganta e incluiu nos objetos pessoais um kit formado por copinho e mini-socador para amassar os medicamentos, vários consumidos diariamente. Essa malgostosa estranheza não herdei de madame Leão Veloso, para quem as baratas eram motivo de escândalos impublicáveis e todos os aparelhos e eletrodomésticos deveriam ser desligados da tomadas em caso de viagem da família. Como alguém sai de casa com esse perigo explosivo?! E sempre saio eu desligando equipamentos.

Perigo, aliás, é algo mais presente no mundo do que átomos, escoteiros são criaturas negligentes se comparadas à minha mãe, cujo lema “sempre alerta” está escrito na entrada de casa como “INRI” nos altares das igrejas. “Não toma banho depois de comer!”, “não brinca com o gato que você não conhece” até a máxima “cuidado com a geladeira!” – esses refrigeradores dissimulados parecem estar fechados, mas rááá!... a Super Mãe sabe que nem sempre estão! Assim como ela sempre sabe diagnosticar qualquer doença e o tratamento mais adequado. A formação em Medicina Materna não a impede de, vez ou outra, confundir a dose ou mesmo o principio ativo, mas os engamos nunca foram fatais. Tanto que aqui estou eu carregando a irresponsável estranheza  de invariavelmente alterar a prescrição seguindo meus instintos curandeiros.

É tanta ameaça terrena, cármica e cósmica que a melhor estratégia é cercar-se de proteção divina. Bruxinhas de todos os modelos e tamanhos, por exemplo, são divinas! As bruxas são intuitivas, não temem desafios, e não bastam elas, há que se reforçar o exército da salvação com santos, patuás, caroços de romã e folhas de louro, objetos herdados e quailquer outra espécie de amuleto mágico. A kind of magic, com ou sem chapéu, caldeirão e capa, é imprescindível . Essa sincrética crença, de forma discreta e branda, herdei da madrinha que se despede com “beijocas mágicas”, só não batizo sapos e desde criança não me afeiçoo mais por girinos. 

Nem o mais poderoso feiticeiro da Terra desfazia meu nariz sempre torcido para o prato de feijão - era uma criança fofinha contra todos e a preocupação do trio de tias-avós de que lá em casa faltasse comida era furada. Não só tinha sempre meu bife especial com batata frita como sorrateiramente a tia acrescentava ovo, Sustagen, biscoitos Maria e sabe-se lá mais o que ao copo de Nescau matutino com o propósito de me fortalecer. Tal alquimia, mel e limão livrariam-me de todos os males, amém. Estranho que hoje, sem pensar, tenha me pego receitando uma colherzinha da mistura para a tosse dela. 


Os anos por si só nos fortalecem, apesar da protetora vontade contrária das mães somos jogados no mundo igualzinho aos paraquedistas dos aviões: "bóra, mermão, voa aí que do chão não passa". Pelo caminho já engoli coisas bem mais indigestas do que Nescau turbinado, duro mesmo tem sido encarar a vida nem sempre fácil com esse coração mole - herança mais preciosa recebida de mulheres tão fortes. Como tentativa, sigo os passos delas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Não dá para escrever ,pois as lágrimas não deixam. Mãe