Eu também tô só vendo, Chico.
Sabendo, sentindo, escutando e não posso deixar de falar. Já não quero mais
pisar nessas avenidas.
Tinha gente quase em cima do
carro e eu, que já fui às touradas em Madri (pa-ra-ra-tim-bum), no Clube Condomínio
– que falha - nunca consegui entrar. Mas no dia, o tal primeiro do resto de
nossas vidas de folia, no Planetário, eu estava lá. E na foto que o repórter
fez de cima do caminhão, razão da nossa preocupação em arrumar uma explicação para
dar ao namorado dela, congelado em Boston: por aqui estávamos pulando Carnaval
na rua. Depois da praia, no Monobloco. M-o-n-o-b-l-o-c-o, que beleza uh
Mono-blocô.
No canto / na dança / no pecado
ou na fé / vou seguir no arrasta-pé / deixa o povo aplaudir
Palmas pra ala dos super-heróis, dos alemães complexados e nunca pacificados, da Alice no País das Maravilhas, dos piratas, malandros e alvas-mulatas, palmas pra Arca de Noé no dilúvio do Boitatá! É carnaval, não me diga mais quem eu achei que deveria ser.
Palmas pra ala dos super-heróis, dos alemães complexados e nunca pacificados, da Alice no País das Maravilhas, dos piratas, malandros e alvas-mulatas, palmas pra Arca de Noé no dilúvio do Boitatá! É carnaval, não me diga mais quem eu achei que deveria ser.
Foi ali pela Cinelândia, um pouco
depois de fazermos a curva, que o temporal desabou no Bola Preta encharcando de
emoção o mais gritado Explode Coração. Você já foi ao Bola, nega? Todos eram,
de coração, foliões naquele e nos seguintes Carnavais! Agora já não é normal, o
que dá de folião regular profissional atiça em mim um ciúme que sai promovendo desfile
de pronomes possessivos metidos a abre-alas de memórias. Ei, você aí, levanta
Lamartine, Lupicinio, eu sou tão menina, meu tempo passou? Minha turma do funil
- alô povão, agora é sério - dá a chupeta que elas decoraram a letra e estão a
cantar “Mamãe eu quero... ser”! Nos anos que vem tá combinado, ensinaremos as
filhas das Chiquitas a dançar o iê iê iê. Dos cabelos não sei, mas o samba não
nega: mulatas!
As minhas pernas, de
meia-arrastão, sobre sapatilhas, ainda podem aguentar levar meu corpo pra junto
desse samba por muitos anos até o sol raiar, mas meu anel de foliã de rua entrego
hoje a quem mereça usar. Quem cedinho
acorda, Maria Bonita, de bom humor pra pular. Quem gosta de concentração,
cachaça com mel e perdoa os mais de mil palhaços do salão (não me leve a mal).
Quem entende que o arlequim vai chorar e nem é pelo amor da colombina, tem
jardineira que nem está tão triste, é só pra aliviar o peito no meio da
multidão e a canoa, no resto do ano, não virar. Pra quem não se importa se ele
é Maomé ou bossa nova, cai no huly guly e só dá ele. Quem sabe que, se quisesse, madame antes do nome teria agora, mas isso não teria sido sincero, Aurora. Quem
compra fantasia no Saara e não na sex shop, que deixa o bloco passar pra ver o
gari, vassoura de estandarte, rodopiar, barão da ralé. Quem leva ainda uns
domingos para entender que cachaça (vai por mim) não é água não! Quem se
encanta com as cantigas que fazem sonhar sem pensar em como será o amanhã. Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a praça virar um salão que no
a-b-c dos Orixás Anastácia puxa um paticumbum prugurundum, ôô, Clementina traz
Silas de Oliveira, chama Paulo da Portela para cantar sua alegria em tempo de
Carnaval. É “oguntê, marabô, caiala, sobá, oloxum, ynaê, Janaína, Iemanjá”. Oke
o quê? Oxossi, essa sopa de letrinha transforma a gente em pastorinha e a
Kizomba vira nossa Constituição. Joga um verso
pra iaiá, epa hey, Iansã, abre os braços, um sorriso, aceita a dança do moço, é
dois pra lá, dois pra cá. Mas chega cedo, olha a hora, em Santa Tereza
se sobe ladeira, desce ladeira, vira à direita, aproveita que o vizinho tá
dando banho de mangueira em quem passa, o Céu na Terra fica mais perto
se for a pé.
Foi lá em dois mil e seis que
eles passaram em bando, trompete em punho, uma banda, cantando o refrão de
alguém que em mais um ano vinha de pirraça e eu nem imaginava que faria parte
daquela massa. Eles foram zoando na frente, eu fui correndo atrás. Ê, boi ápis!
Fura o fundo da garrafa de agua para aliviar o calor, alá lá ô, levanta as mãos
em “ó que beleza máscara negra nesse baile de Veneza” e não se esquece de
aplaudir o cancioneiro nos versos “é Carnaval, é Rio de Janeiro”. Aprende que
perdemos celulares, câmeras, estribeiras, amores e a vergonha, perdemos a razão
e do tempo nem temos noção, só paramos para a apuração e é na quinta-feira que
ressurge o verdadeiro sanatório geral. De sexta a terça é feito uma reza, um
ritual, é a procissão do samba abençoando, tenta não mudar muito a inocência profana
do meu Carnaval.
Vou deixar guardadas no fundo do
armário as saias de filó já um pouco amassadas e as rosas de plástico jogadas
do carro de som, as botas brancas, os pares de sapatilhas douradas, um chapéu
da mesma cor, o outro de pirata, um verde-e-rosa, o de malandro e não mais o de
vaqueira, que se perdeu por aí igual à cartola de mágico vermelha. Vou guardar
as diversas camisas da Mangueira junto com a lembrança feliz e aliviante de ter
voltado a tempo para cantar entre as campeãs o samba que eu decorei nas tantas
idas à quadra, ano em que conheci o Delegado, a linha do trem e o teto
retrátil. Vou guardar para a qualquer momento usar a fantasia de “bailarina do
Imaginô”, aposto que com mais gosto um dia me classificou.
Que gente longe viva na lembrança
/ Que gente triste possa entrar na dança / Que gente grande saiba ser criança.
Eu vejo a barra do dia surgindo,
pedindo pra gente cantar
Eu tenho tanta alegria, adiada,
abafada, quem dera gritar
Eu tô deixando essas ruas, são
suas, mas não vá se enganar: estarei sempre, para na manhã do sábado antes ou
na noite do seguinte me acabar,
me guardando pra quando o
carnaval chegar.