19.2.13

Quarta-feira (ou Último Gole)

Quem me vê sempre distante garante que eu não sei sambar.
Eu também tô só vendo, Chico. Sabendo, sentindo, escutando e não posso deixar de falar. Já não quero mais pisar nessas avenidas.

Tinha gente quase em cima do carro e eu, que já fui às touradas em Madri (pa-ra-ra-tim-bum), no Clube Condomínio – que falha - nunca consegui entrar. Mas no dia, o tal primeiro do resto de nossas vidas de folia, no Planetário, eu estava lá. E na foto que o repórter fez de cima do caminhão, razão da nossa preocupação em arrumar uma explicação para dar ao namorado dela, congelado em Boston: por aqui estávamos pulando Carnaval na rua. Depois da praia, no Monobloco. M-o-n-o-b-l-o-c-o, que beleza uh Mono-blocô.

No canto / na dança / no pecado ou na fé / vou seguir no arrasta-pé / deixa o povo aplaudir

Palmas pra ala dos super-heróis, dos alemães complexados e nunca pacificados, da Alice no País das Maravilhas, dos piratas, malandros e alvas-mulatas, palmas pra Arca de Noé no dilúvio do Boitatá! É carnaval, não me diga mais quem eu achei que deveria ser.


Foi ali pela Cinelândia, um pouco depois de fazermos a curva, que o temporal desabou no Bola Preta encharcando de emoção o mais gritado Explode Coração. Você já foi ao Bola, nega? Todos eram, de coração, foliões naquele e nos seguintes Carnavais! Agora já não é normal, o que dá de folião regular profissional atiça em mim um ciúme que sai promovendo desfile de pronomes possessivos metidos a abre-alas de memórias. Ei, você aí, levanta Lamartine, Lupicinio, eu sou tão menina, meu tempo passou? Minha turma do funil - alô povão, agora é sério - dá a chupeta que elas decoraram a letra e estão a cantar “Mamãe eu quero... ser”! Nos anos que vem tá combinado, ensinaremos as filhas das Chiquitas a dançar o iê iê iê. Dos cabelos não sei, mas o samba não nega: mulatas!

As minhas pernas, de meia-arrastão, sobre sapatilhas, ainda podem aguentar levar meu corpo pra junto desse samba por muitos anos até o sol raiar, mas meu anel de foliã de rua entrego hoje a quem mereça usar.  Quem cedinho acorda, Maria Bonita, de bom humor pra pular. Quem gosta de concentração, cachaça com mel e perdoa os mais de mil palhaços do salão (não me leve a mal). Quem entende que o arlequim vai chorar e nem é pelo amor da colombina, tem jardineira que nem está tão triste, é só pra aliviar o peito no meio da multidão e a canoa, no resto do ano, não virar. Pra quem não se importa se ele é Maomé ou bossa nova, cai no huly guly e só dá ele. Quem sabe que, se quisesse, madame antes do nome teria agora, mas isso não teria sido sincero, Aurora. Quem compra fantasia no Saara e não na sex shop, que deixa o bloco passar pra ver o gari, vassoura de estandarte, rodopiar, barão da ralé. Quem leva ainda uns domingos para entender que cachaça (vai por mim) não é água não! Quem se encanta com as cantigas que fazem sonhar sem pensar em como será o amanhã.  Amanhã tudo volta ao normal.

Deixa a praça virar um salão que no a-b-c dos Orixás Anastácia puxa um paticumbum prugurundum, ôô, Clementina traz Silas de Oliveira, chama Paulo da Portela para cantar sua alegria em tempo de Carnaval. É “oguntê, marabô, caiala, sobá, oloxum, ynaê, Janaína, Iemanjá”. Oke o quê? Oxossi, essa sopa de letrinha transforma a gente em pastorinha e a Kizomba vira nossa Constituição. Joga um verso pra iaiá, epa hey, Iansã, abre os braços, um sorriso, aceita a dança do moço, é dois pra lá, dois pra cá. Mas chega cedo, olha a hora, em Santa Tereza se sobe ladeira, desce ladeira, vira à direita, aproveita que o vizinho tá dando banho de mangueira em quem passa, o Céu na Terra fica mais perto se for a pé.  

Foi lá em dois mil e seis que eles passaram em bando, trompete em punho, uma banda, cantando o refrão de alguém que em mais um ano vinha de pirraça e eu nem imaginava que faria parte daquela massa. Eles foram zoando na frente, eu fui correndo atrás. Ê, boi ápis! Fura o fundo da garrafa de agua para aliviar o calor, alá lá ô, levanta as mãos em “ó que beleza máscara negra nesse baile de Veneza” e não se esquece de aplaudir o cancioneiro nos versos “é Carnaval, é Rio de Janeiro”. Aprende que perdemos celulares, câmeras, estribeiras, amores e a vergonha, perdemos a razão e do tempo nem temos noção, só paramos para a apuração e é na quinta-feira que ressurge o verdadeiro sanatório geral. De sexta a terça é feito uma reza, um ritual, é a procissão do samba abençoando, tenta não mudar muito a inocência profana do meu Carnaval.

Vou deixar guardadas no fundo do armário as saias de filó já um pouco amassadas e as rosas de plástico jogadas do carro de som, as botas brancas, os pares de sapatilhas douradas, um chapéu da mesma cor, o outro de pirata, um verde-e-rosa, o de malandro e não mais o de vaqueira, que se perdeu por aí igual à cartola de mágico vermelha. Vou guardar as diversas camisas da Mangueira junto com a lembrança feliz e aliviante de ter voltado a tempo para cantar entre as campeãs o samba que eu decorei nas tantas idas à quadra, ano em que conheci o Delegado, a linha do trem e o teto retrátil. Vou guardar para a qualquer momento usar a fantasia de “bailarina do Imaginô”, aposto que com mais gosto um dia me classificou.

Que gente longe viva na lembrança / Que gente triste possa entrar na dança / Que gente grande saiba ser criança.

Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar
Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar
Eu tô deixando essas ruas, são suas, mas não vá se enganar: estarei sempre, para na manhã do sábado antes ou na noite do seguinte me acabar,
me guardando pra quando o carnaval chegar.

Um comentário:

Admirador Secreto disse...

Já estava com saudades .....