2.5.20

Diário de uma pandemia - vol VII (Detalhes de uma vida, histórias que eu contei aqui)

Dia 52
Pressure pushing down on me
Pressing down on you, no man ask for
It's the terror of knowing what the world is about
Watching some good friends screaming
"Let me out!"
Insanity laughs under pressure we're breaking


A casa dos meus pais onde cresci sempre foi muito animada, nunca era um ambiente monótono. Eram quatro filhos, duas funcionárias, hóspedes eventuais, agregados fixos, um entra e sai de gente a qualquer hora, ali já voou jabuti pela janela, entregador de pizza já foi recebido por homem vestindo capacete medieval e empunhando espada de ferro, duas crianças já quebraram os braços ao mesmo tempo, o cachorro jantava medalhão ao molho madeira com arroz à piamontese, até incêndios alheios figuram no álbum de feitos daquela casa.

Eu estudava no escritório, comecei a sentir um cheio de queimado forte vindo pela janela, ao olhar para baixo vi o telhado da pequena escola ao lado em chamas. Uma rua inteira podia ter notado, mas fomos nós. Descemos correndo pelas escadas com extintores em mãos, o porteiro tentava fazer funcionar a mangueira de incêndio da garagem, pai e irmão tentavam pular o muro, mãe ligava para os bombeiros, salvamos o lugar. Uma semana depois, meus irmãos viam TV no quarto quando comentaram: ‘cheiro de queimado de novo, né? Também estou sentindo, acho que a Bruna está secando o cabelo”. Pela janela, uma fumaça negra entrava que, se fosse dos meus fios, significaria que eu estava carbonizada. Foi minha mãe quem deu o alerta – fogo na escola de novo! Mais uma vez corremos pelas escadas, já não havia mais extintores carregados pelo curto espaço de tempo entre os dois incêndios, gritaria na rua, pai e irmão de novo pulando o muro – pelo menos já tinham experiência naquele espaço. Claramente alguém traçara um plano para ganhar o dinheiro do seguro, e no desenho do Scoobydoo essa historia terminaria com “o que teria acontecido se não fosse aquela maldita família vizinha.”
Assim era o cotidiano bucólico na casa dos meus pais. Eu creditava ao excesso de gente, era isso que provocava as estripulias, mas hoje percebo que não – aqueles dois, sozinhos, tem mais capacidade de se meter em altas confusões e aventuras do que todos os personagens da Sessão da Tarde reunidos. E foi assim que, munidos desse know how e impedidos pelos filhos de abrir a porta de casa para qualquer coisa além de buscar comida e descartar lixo, ligaram dizendo haver “uma coisa estranha no hall”.
- Não tem nada de estranho no hall, vocês não vão abrir a porta, não sairão de casa. Já aprendeu a costurar máscaras?
- Tem um pratinho no móvel em frente ao elevador, acho que é uma comida embrulhada.
Respirei fundo. Tanta coisa para lidar e agora meus pais estão delirando ou alguém está fazendo macumba no corredor deles.
- Deve ser do porteiro, ele esqueceu aí. Não coloca a mão!
- O porteiro não sobe aqui.
- Então algum moço do Ifood subiu e deixou para o vizinho.
- Ah não, eles não sobem também. Eu sou o sindico, proibi.
- Seu pai está indo lá!
- Não! É pra Exu, não pode mexer.
- Quem é Exu? Foi você?
Fui, pensei. Tenho que trabalhar, fazer comida, faxina, unha, depilação, exercícios, tudo na mesma sala, faria despacho no corredor alheio.  Os dois estavam com a porta aberta, me mostravam por Facetime o embrulho de papel laminado, eu já pensava em terrorismo com antraz, de repente percebo gargalhadas da minha mãe. Meu pai, mais de quarenta anos naquele casamento, nem se abalou. Olhava imóvel para ela.
- Estou vendo aqui uma mensagem da vizinha! Foi aniversário dela, deixou esse pedaço de bolo para nós! Que amor.
Me jogo no sofá. Fim de ato. Se ao menos eu soubesse fazer bolo...
Horas depois recebo uma mensagem de L, quer um vaso de planta emprestado.
- Que legal, você vai começar uma horta em casa? Essa semana nasceu um manjericão no meu vaso de pimenta, os passarinhos fazem a maior bagunça na plantação!
Não exatamente uma horta, ele quer empreender.
- Está nascendo um pé de maconha no meu cactus.
Eu não sei por quanto tempo viveremos nessa quarentena, mas me preocupo no quão mudados sairemos dela.
C quer se divorciar, não suporta mais o marido, liga aos prantos, diz que aquele homem por quem se apaixonou e parecia incrível no palco agora passa as noites no sofá fazendo lives, ela não suporta aquele repertorio,  teme que ele esteja obcecado pelos coraçõezinhos subindo na tela. Nas primeiras semanas de reclusão eu cantaria Queen – why dont we give love one more chance? Tantos dias depois jogo logo argumentos práticos:
- Você tem uma filha pequena, uma casa de três quartos, vasos sanitários amarelando, um escritório para gerenciar, prefere arrumar tudo sozinha ou dá para amá-lo um pouco mais?
Nunca fui tão convincente. Próxima ligação, por favor.
Minha mãe está comendo o bolo da vizinha, meu pai segue seus comandos separando os parafusos do armário de ferramentas por modelo e tamanho, mas está preocupado com o barco, um veleiro de 27 pés visto pela última vez quando achávamos que tinha uma gripe lá na China. Diz que o barco pode estar perto da água e em risco no caso de uma imprevista ressaca, alagado pela chuva podendo tombar da carreta, pode ter criado vida e fugido pra Dinamarca onde a situação está melhorando!
Finjo sacrifício, decido ir até o clube checar. Preparo um figurino Chernobyl e uma lista de justificativas como se alguém fosse me interpelar no caminho e cobrar explicações sobre o que eu fazia na rua. “Identidade, por favor. A senhora não sabe que tem live do Raça Negra hoje?”.
Atravesso o clube estranhando até o sol na pele - já era quente assim? De repente ouço mini-ondas batendo na parede do cais. Fico ali por minutos longuíssimos, apreciando. Que som deslumbrante proporcionado por uma água negra, destruída com sacos plásticos, garrafas pet, mochila despedaçada e tudo mais de imundície humana produzida!
Existe uma tartaruga que vive no cais do clube, uma guerreira. Tenho enorme afeto por ela, o que passa na cabeça miúda de uma tartaruga que tem o mar inteiro para viver e escolhe o Rio de Janeiro? Consegue nadar e respirar naquele mar de lixo, nunca sei se feliz ou como as moscas que ficam batendo no vidro tentando sair sem perceber que é só chegar para o lado porque a janela está aberta. Somos muito parecidas nesse aspecto habitacional.
Fico pensando na tartaruga quando vem até mim um gato, dos muitos que circulam por ali. São todos vacinados, usam coleirinhas de miçangas, estão presentes na minha vida  desde que sou criança e minha mãe se desesperava: não mexe no gato! Ele arranha! Solta o gato! O bicho traça uma reta em minha direção miando aos gritos quase correndo em duas patas com as outras em forma de braços abertos, como nós faremos ao reencontrar os amigos – peloamordesaofrancisco, fala comigo! Abro meus braços para ele, desobedeço a minha mãe. Sento no chão, máscara no rosto, álcool gel no bolso, sol no corpo, vento do mar, eu e o gato. E de repente avistamos ela, acompanhada de amigas. Ficamos ali vivendo aquele momento lindo - eu, o gato, as tartarugas. #TamoJunto, amiguinhos.
E às vezes eu deixarei
Você me ver chorar, sorrindo

And love (people on streets) dares you to change our way of
Caring about ourselves
This is our last dance
This is ourselves under pressure