10.1.21

Refazenda

No dia 31 ele apareceu no picadeiro ao lado da piscina, deu uns vôos tão altos que nos surpreendemos, nem sabíamos que patos voavam daquele jeito. Você vai pensar: é claro que voam, como acha que eles migram? Não acho, nunca tinha pensado em patos. Se aqueles patos também eram capazes de voar por que nunca saíram dali? Eu também não sairia se fosse eles, quase não saí sendo eu, o problema foi que não convenci ninguém a me remunerar para poder ficar.

No dia seguinte ao vôo flagrei o pato no galpão de rações. Levou um susto com a minha presença, saiu apressado disfarçando a invasão, mas vi quando achou que eu tinha sumido e deu meia volta porta adentro.  Eu estava à espreita, segui ele! Sim, eu estava bem à toa seguindo patos. O que um pato fazia no galpão de comida dos cavalos, e sozinho de novo? Uhn, não está lidando bem com reveillon, acontece, tem gente que detesta, fica melancólico nessa época do ano, vai ver ele também. Comecei a desconfiar que aquele pudesse ter problemas de socialização, era o único apartado. Era também um dos poucos patos em um grupo formado majoritariamente por gansos, não sei como é isso entre eles, se rola um “aff, deixa pra lá, são nanicos, patos”, aí do outro lado reviram olhos - “ai, gansos arrogantes, esse pescoço comprido sempre esticado, peito estufado, se acham heteros em sedução”. Talvez eu pudesse ler uns dois ou três livros “Freud para patos” e ajudá-lo. Fazer uma Constelação, um Tethahealing, uma Barra de Access no pato! Não quiseram me contratar para nenhuma terapia.

Com a fazenda inteira para viver, o grupo de gansos repetia todos os dias o mesmo circuito: estrada, lago, estrada. Sempre em bando, só se separavam um pouco quando iam boiar. Será que nunca se cansam da mesma rotina? Precisam expandir os horizontes, vamos exercitar esses pezinhos e cruzar até a outra margem! Quis promover excursões, levar patos e gansos até o rio lá em cima, organizar passeios para as jabuticabeiras com parada nas casas de João de Barro, visitas-guiadas às cocheiras. Não demonstraram nenhum interesse em me seguir, estavam muito bem ali. O pato voador, inclusive, vai ver era só um pato que curtia sua própria companhia, precisava de uns momentos para si. Bloco do pato sozinho. Meu empreendedorismo com aves teve o% de eficácia.

As galinhas d´Angola eram mais equilibradas e exploradoras, davam seus rolezinhos às vezes por conta própria, às vezes se agrupavam. Entravam nos estábulos, se metiam pelos pastos, tenho muita simpatia por elas, adoro o look, a escolha das cores, só discordamos depois de uns dias daquela gritaria “tôfraco-tôfraco”. Parou o drama! Fraca tô eu, vocês viveram 2020? Toma um Targifor, um banho de chuva, um vinho com amigos, dá um mergulho e muda esse disco. Adiantou, acho que já na manhã seguinte ouvi algumas gritando “tôótima-tôótima”. Coaching de galinha d´Angola! Até postei, mas além de umas duas curtidas não rendeu nada.

Um quadro no espaço dos veterinários com o controle dos casais de cavalos e éguas parecia o banco de dados do Tinder: Faísca + Damasco, Gafieira + Atrevido, Brisa + Lótus, Escócia + Doutor, e na sequência Gafieira + Doutor, Faísca + Lótus, Brisa + Atrevido... Os cruzamentos no haras seguem a mesma lógica de suruba com delay do Baixo Gávea da minha memória pré-Covid: todo mundo pega todo mundo, só não ao mesmo tempo.

Dos tantos cruzamentos nascem potrinhos fofíssimos, magrinhos com uns gambitinhos onde se equilibram com o esforço da pouca prática. Em dois dias de vida um potrinho já tinha mais condições de se locomover e arrumar comida do que eu depois de algumas taças e faço isso há mais de vinte anos. Eu poderia ficar por lá promovendo matches, formaria os casais, organizaria os dates, faço isso tão bem com a minha própria vida, seria altruísta oferecer esse dom ao reino equino. Discordaram. Não entendi bem se da minha auto-percepção ou da necessidade do meu serviço, reagiram com umas risadas, entendi que fui mais bem sucedida como coach de galinha d´Angola.

Os dias de descanso estavam acabando, minhas ideias profissionais se esgotando, nem uma live da banda dos sapos martelo consegui emplacar. Era uma sinfonia à noite, talvez fossem martelo, com certeza eram sapos. De vez em quando ouvíamos um relinchar de cavalo, às vezes outros respondiam, não sei o que conversavam. As fontes mantinham um barulho contínuo de água corrente. A partir das três da tarde começavam os trovões, um tempo depois vinha a chuva, as gotas batendo nas claraboias e nas folhas das palmeiras. A madeira da casa rangia aos passos e as cristaleiras trepidavam anunciando alguém que se aproximava. O barulho dos gansos, maritacas, galinhas, no começo da manhã e fim da tarde as dobradiças e trincas, sempre alguém abrindo ou fechando as tantas janelas na única marcação de tempo permitida. Um dia uns uivos. Uma noite uma moto, lá longe. Muitas risadas.

Voltei para a cidade, de onde vejo o mundo por uma tela ao som de Makitas e interfone anunciando IFood, mas no último minuto colei num poste o cartaz “Trago o equino amado em 3 dias”. Vai que aquela pegação deixa uns corações partidos pelo caminho...