19.9.25

Essa bendita felicidade

Para escrever cordel são sextilhas e redondilhas mas o que eu sei fazer é prosear.

Que três homens reuniram poeta, fotógrafo e raparigas e assim eu fui parar lá – no sertão de Alagoas.

 

“Tudo certo com a minha reserva para a volta?

Olha, até então tá ok sim.”

Fiquei olhando para o homem na recepção do hotel. Ele sustentava um sorriso de frase completa que desmanchou meu universo corporativo sempre planejado. Estávamos no ‘hoje’, como saberíamos sobre o depois de depois de amanhã?

Às seis saímos na van.

 

23 mil pessoas moram em Pão de Açúcar e seus povoados ao redor - Palestina, Niterói, Japão. A disposição do mundo mudou, foi? Um Cristo acima de nós lembrava o de perto da minha casa e era só isso mesmo que se assemelhava ali. De resto era o tempo ficando cada vez mais calmo e pirão. Uma tacinha de vinho branco?

 

“O sertão é verde? É que no livro de Geografia...

Deixa o livro de Geografia. Jogue fora o de História também. Olhe: aquele ali na foto é Virgulino, o Lampião. Tá vendo Curisco? Dadá, Maria Bonita.

Lampião afinal é herói ou bandido?

Você afinal vai definir tudo ou viver?

Mas a Ilha do Ferro não é ilha.

É isolada, é ilha.

Pronto.”

 

Foi de barco que Carmem chegou na ilha no começo dos anos 80. Não foi o começo da Ilha do Ferro, foi o começo da história que a Carmem começou pra Ilha do Ferro.

Fazer curadoria é que nem se apaixonar? No meio de um mundaréu de gente alguém de repente olha no fundo do nosso olho e o que já estava ali sendo desenhado sem que ninguém percebesse grande valor... muda. O curador enxerga a possibilidade de uma tradução do mundo que está diante de todo mundo, mas só alguns captam. A representação dele em uma língua própria, grafia, traço, cor, talhar, o mundo visto e esculpido pelo olhar de quem faz dele mais bonito, mais confortável, um olhar atento.  

Foi Seu Fernando quem abriu caminho para um povoado de artesãos ao entalhar móveis com tanto carisma quanto talento. Foi ele quem abriu também o portal por onde passamos naquele rio? O realismo mágico de cadeiras com cabeça de pássaros e bailarinos em paredes me faz não poder garantir que tudo o que vou contar aconteceu, mas foi assim.

 

Das obras do Seu Fernando brotaram nas casinhas coloridas de platibandas uma corrente de artistas, como o Petronio. Dos seus ex-votos iniciais às atuais caveiras, ele hoje planeja abrir uma escola. E não vender sua terra. Na cozinha da casa, Celia achava que não sabia fazer queijo, ela ‘ajudava’ o marido na pescaria, limpava o peixe, olhava a transformação do leite, criava os garotos, um dia Petronio comprou uma vaca tão boa que era ordenha de manhã, de tarde, de noite e era tanto leite que empenou a Celia que já tinha descoberto que também era capaz de produzir queijo mas tira essa vaca daqui e não traz cabrito que cabrito parece filho de Satanás! Comemos queijo, tomamos café com rapadura, chá de gengibre e ervas e aprendemos a esculpir madeira, ou quase. Teve passarinho esculpido na aula com jeito de tamanduá, mas reforcei mesmo foi a lição de que temos que educar os meninos para mudar a vida das Célias enquanto ela faz a contabilidade do marido.  

 

Depois dos quarenta anos, sete filhos crescidos, muita brita quebrada e rua varrida foi que Dona Roxinha começou a desenhar. Desenhava nos cadernos, dali passou pra tudo - parede, porta, placa, pedaço de madeira, banco, tampas de vaso, pilão, um dia um homem bateu em sua porta e ela abriu. Ele perguntou se ela vendia os trabalhos, comprou todos. Seus quadros passaram a ocupar galerias. “Nesses quatro anos você já se acostumou com a fama?  Eu me acostumo com tudo”, ela respondeu, e voltou a negociar o que vende e o que não sai dali de jeito nenhum porque é de Binga, seu marido primo. Mas isso ela não sabia quando ele botou reparo nela cinquenta anos atrás. Todo mundo desenha nessa casa? Na casa do lado também, que ela comprou com a renda das obras.  Deixa a porta aberta então que os visitantes vão entrando, vão gostando, vão voltando, a gente vai crescendo. O Binga teve ciúme, diz que é coisa de quem sente amor. Ô, Dona Roxinha, se eu soubesse desenhar e escrever como a senhora pintava que o amor não faz dono não, a gente fica porque ama, que todo mundo que sinta medo peça também ao rio para levar embora o seu e assim possa amar em paz.

 

É tanta paz que parece que consigo tocar. Como é isso de tempo aqui, é outro? A gente pode se demorar, pode estar, a gente até vê! Tanta tecnologia no mundo e a inteligência que eu quero é saber enxergar e ouvir. ‘A tecnologia do sertanejo é a fé e a reza’.

Ouve só a música que vem da caixa de som na calçada do músico, toma conta da noite na cidade. Se estiver calor demais traz esse colchão pra rua e dorme aí mesmo que nessa rua não passa mais vaca do seu Jorge, lugar da vaca não é junto com turista e ele levou as dele pra Mata da Onça onde não tem onça mas pode vaca. Naquele dia seu Jorge nem saiu de carro porque eram tantos outros que podia estragar, bater, a esposa alertou. Diz que tinha mais uns três circulando então ele foi de moto.

Nós saímos de barco para a casa do Clemilton e Amilton. Clemilton, pinta uma janela para eu olhar vocês sempre que precisar? Pinta nela uma menina de frente para a vida. Quem pinta bonequinhos de lado é o irmão, Amilton, e escultura nem tem mais ali que tá tudo pelo mundo. Galinha tem, uma pro almoço que eu vi os meninos correndo atrás para matar. A minha galinha vem da prateleira do mercado. Minha tilápia também. Tem galinha pro almoço e tem renda Boa Noite, mas não sei por quanto tempo ainda porque as crianças não querem aprender mais, estão no celular. Nem a TV está mais em frente aos bancos de cimento embaixo da árvore que mata os insetos. Eu reparei porque estava ali olhando quando choveu. Aprendi que é bonito chover no sertão, disseram que floreia rapidinho. Aprendi a ficar feliz com a chuva que cai sem medo que tudo desabe.

 

Já foi mais água. Já teve mais peixe. A água levou meu brinco, mas o barqueiro Dão mergulhou e me devolveu. “Posso aceitar? Vai que é oferenda, o rio levou. A gente tem um combinado: o que eu trago no barco, levo de volta.” Eu não sei até agora quem entregou ou como foi que ele achou, só aceitei. Quem cuida dessa gente desse rio, aqui tem sereia? Tem lendas, crenças? Reza pra quem? Tem Jesus por toda parte. Mas quem sou eu pra saber se esse Jesus é igual ao que imagino? Nem sei se todo mundo vê o mesmo que eu.

Eu vi o arco íris, dois! Vi o PC cantar no alto dos cânions a saudade dos pais. Vi o velho barqueiro levar o leme da canoa de tolda com as cascas dos pés que o sol faz couraça na pele desses homens e eles adoram gritar num barco, mas o coração paneja igual a vela em vento fraco. Vi as mãozinhas da bordadeirinha subindo e descendo a linha numa bainha aberta e Miguel misturando todos os pontos para criar um traçado só seu e mostrar pra mãe que foi melhor do que ele fazer Direito. Vi São Francisco, vários, a fé materializada em imagens de santos depositados nas fendas da rocha. Mergulhei nele e nadei até sentir silêncio e a água caindo do céu me envolvendo inteira na fluidez doce da natureza da qual sou parte, minúscula diante daquelas paredes e gigante perante quem um dia supus ser.

 

Sabia que não existia água ali? Essa água que subiu mais de cem metros quando criaram a hidrelétrica e a represa. Onde o pai do Brian, que era pescador, caiu e foi salvo pela rede. A água que passa corrente pelas gaiolas de tilápia que a dona Vilma pescou e fez na brasa com macaxeira e um coquinho bom demais pra gente comer. Ela me ensinou que carinho nos espinhos do cacto produz som de água. Ensinou sobre os quarenta anos que viveu naquela terra que conquistou na luta, na reforma agrária, dormindo em lona, criando filho, pescando peixe, tentando descobrir quem tinha feito os desenhos nas rochas e como aquela pedra enorme parou enviesada ali equilibrada. São pinturas rupestres. Foi tanta história que passou ali. A gente passou pelo assentamento onde a menina segurava balões de festa, os garotos jogavam sinuca, o velho deitava no sofá, eu vi tudo pelas portas na janela da van que passava e o Ney cantava “Se essa rua fosse minha”. Eu não mandava ladrilhar, deixava tudo colorido. Como as flores que a Maria Helena ajeitou nas almofadas pra gente sentar lá em cima e cantar. Porque cantar parece com não morrer, é igual a não se esquecer que a vida é que tem razão. Quando a gente sente “uau” tende a cuidar e aprende a gostar de se deixar cuidar.

 

Daqui a uns dias é aniversário de 80 anos da Carmen. No Carnaval tem Marmotas na Ilha e bloco “Filhinhos da Mamãe” em Maceió. O Andre, filho da Carmen, e a Patrícia me ofereceram leite do Gererê no Bar Macumba e eu quis saber se gererê era fruta. “Gererê é o rapaz que mora aqui perto, quem tirou esse leite pra nós hoje”. Leite com nata igual ao da infância para tomar com o Café do Renato, comer com queijo da Célia ouvindo a música da Baby Consuelo do disco do Sitio do Pica Pau Amarelo. Era manhã em um mundo mágico. Para o aniversário da Carmem, sua esposa Cintia comprou um megafone e elas vão sair pelas ruas convidando toda a Ilha! Eu queria ver as Marmotas e comemorar com elas a Carmem porque ela e Cintia moram em uma casa verde e rosa com bandeira na cama e ímã na geladeira escrito “Toda mulher merece amar outra mulher”. Eram tantas mulheres comigo, tanto amor. O material do amor é a pessoa ou o que vemos em nós a partir dela? O tempo que vai passando no tempo dele e nos transformando em nós mesmas, mesmo naqueles poucos dias. Talvez com mais tempo não consigamos mais seguir um bloco de salto alto, talvez os hormônios caiam, o cabelo embranqueça, doenças apareçam, talvez a gente perca alguém, mas aí descobre que o material não é o que dá o valor. Em alvenaria, cimento queimado e maçanetas da loja de ferragem é tudo muito mais simples e lindo por estar ali inteiro pertencendo presente.

 

Edilene, desce desse pole dance e vem mergulhar comigo! Bota uma cadeira aqui ao lado da minha e venha ver Sergipe ali do outro lado do São Francisco, vem velejar! Vem visitar a Dani e a Valeria no São Chico e comer outro milho cozido no fogo de tijolo com suco de jenipapo naquele quintal. Ou quintéo. Vem olhar as diferenças pelo afeto e fugir gargalhando de uma invasão alienígena da CVC, os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas. Quando a realidade prescinde de qualquer alucinógeno por já ser tudo o que precisa de maravilhosa para alucinar, se entregue ao rio, Edilene, e deixe que ele transborde o que entender necessário e bonito em você. Também o desencaminharam e nem assim conseguiram tirar dele a força e os encantos existentes.

 

Eu não sou de despedida então digo até breve como os peruanos e com o sorriso comovido de quem admira o pôr do sol com calma por saber que ele volta pra gente no dia seguinte. No dia seguinte saberemos sentir de novo essa bendita felicidade. É só lembrar.


--- Para Thiago, Pablo, Ronaldo e, claro, Edilene. E para essas mulheres lindas que viveram comigo esses dias


Músicas: 

Enquanto Engoma a Calça,  Ednardo

Nhem nhem nhem

Meu Amorzim, PC Silva

Edilene

9.3.25

Acenda tudo o que for de acender

Na frisa você é obrigada a olhar para o céu quando passam os carros alegóricos, é bom para entender nosso tamanho debaixo daqueles Exus e Oxalás. ‘Passa esse defumador aqui mais perto, por favor’. 

“Vamos pra Sapucaí, seu João?” “Vou esse ano não, senhora, agora tem muita macumba no Carnaval, eu gostava antes, pra quê isso?”.

 

Tem erva pra defumar, carrego o meu patuá / Adorei as almas que conduzem meu caminho / É mojubá, marabô, invoque a Lua / Que o povo da encruza não vai me deixar sozinho  


Disse que era o primeiro ano dele no Carnaval. “Mas você é de onde?” “Aqui do Rio mesmo.” “E estava onde até hoje?” “Perto da Praça Onze, mas eu era da igreja. Se minha mãe souber que estou aqui cantando essas macumbas ela me mata.” “Você saiu da igreja e agora vem?” “Eu venho com ele, meu namorado. Porque ele é do Salgueiro”. O namorado sorriu para mim, ofereceu um pacote de Doritos, nós da arquibancada vendo o ensaio do Tuiuti e lá embaixo Markinhos, mestre de chocalho da escola, montado de salto alto à frente da bateria comandava “Quem Tem Medo de Xica Manicongo?”, a primeira travesti do Brasil.

 

Só não venha me julgar, ô-ô / Pela boca que eu beijo (...) E a fé que eu professar / Não venha me julgar / Eu conheço o meu desejo / Este dedo que acusa / Não vai me fazer parar

 

Sempre alguém chora. Eu choro cachoeiras e acho mesmo que o samba é para lavar então deixo chorar. A gente que chora no samba se entende, só se olha, oferece a mão, jamais diz ‘não chora’. Ontem era a Paola. A cada vez que ela batia o pé no chão da avenida parecia trovejar. Ela parava, chorava, voltava. A plateia respondia com palmas, gritos e celulares. “Três princesas turcas vieram pro Pará? Erundina?”

 

É força de caboclo, vodum e orixá / Meu povo faz a curva como faz na gira  / Chama Jarina, Herondina e Mariana / Grande Rio firma o samba no Tambor de Mina

 

O vestido devia pesar uns vinte quilos mais o adereço da cabeça e ela pequenininha desfilando devagarzinho. O rapaz do apoio a abanava com um leque que fazia seus cílios postiços enormes dourados voarem, ela se secava com um lenço e sorria, olhava pra gente, buscava fôlego, dava mais uns passinhos em direção à Apoteose. Talvez pelos nossos olhares encantados derramando admiração e respeito, uma diretora de Harmonia me puxou e disse “87 anos.” Dona Vilma Nascimento estreou aos 13 como porta-bandeira naquela Portela e se tornou baluarte, o “Cisne da Passarela”. E eu considerei não ir por gripe?

 

E foi assim (...) / Novos destinos no mesmo poema / E nos terreiros, perfume de patchouli / Acende a brasa do defumador / Pro mestre batucar a sua fé

 

“Não fazem mais sambas que duram, que samba que você canta depois que acaba o Carnaval?” Fala, Majeté a cada 15 dias ou quando necessário.  

 

Em 2019 a Mangueira compôs o argumento “a História que a história não conta”. Foi ali que me dei conta de que deveria estudar os enredos mais profundamente, que tudo aquilo que ia assimilando desde criança nas letras e alegorias eram a aula que minhas escolas particulares e ciclo social não passariam. Levei a vida sem entender que o chamado daquela batida que me puxava por dentro e jogava no tambor era o toque de uma bateria para um orixá. Quando cheguei no mundo me apresentaram Deus, santos, até Buda veio antes de Oxum, foi esse outro mundo que os trouxe. Aos poucos fui levando mais fevereiro para o resto dos dias, não mais me guardando para quando o Carnaval chegasse, Chico. Foi o Carnaval quem me ensinou que o país onde nasci tinha uma religião e uma cultura, outra História. E foi o Carnaval quem fez bater vida dentro de mim quando ela não pulsava mais, e eu não entendia.

 

Toca o adarrum / que meu orixá responde

 

Quando desço as escadas da estação Maracanã e vejo a bateria da Mangueira formada para o ensaio de rua. Quando me torno corda de um bloco qualquer só para estar o mais perto possível e me perder (“você sumiu! Estava sozinha?”). Quando os empurradores de carro alegórico fazem suas performances para o público em um riso solto no estrelato de uma rua. Liberto na senzala social / Malandro, arengueiro, marginal. Quando o puxador comanda “Agora é a hora, pé direito, muita sorte, arrepia”. Quando o cortejo passa por um túnel. Quando desce ladeira. Quando a cidade é tomada por gente fantasiada. Quando essa gente embarca na fantasia. Quando se rasga a fantasia. Quando se forma uma roda de gente ao redor de uma mesa cantando com os braços pra cima e pulando porque passou o VLT. Quando eu pulo a grade e vou atrás da escola sem que meus pés sequer encostem no chão. Quando entendo que é preciso pedir licença para entrar. Quando eu era uma criança vendo na TV da sala de madrugada o Cristo proibido de Joãosinho Trinta, equilibrando o medo das fotos em sépia dos meus antepassados nos quadros daquela casa enorme onde fazíamos bailes e um amor por uma festa que nasceu em mim e me aceitou. Quando preciso defender que não é tudo igual e entende quem quer.

 

De tudo que aprendi / O todo que reuni / Fez imbatível a força do meu axé


Não acaba na Quarta-feira.


Eu vou seguir sem esquecer nossa jornada, emocionada.