Para escrever cordel são sextilhas e redondilhas mas o que eu sei fazer é prosear.
Que
três homens reuniram poeta, fotógrafo e raparigas e assim eu fui parar lá – no sertão
de Alagoas.
“Tudo
certo com a minha reserva para a volta?
Olha,
até então tá ok sim.”
Fiquei
olhando para o homem na recepção do hotel. Ele sustentava um sorriso de frase
completa que desmanchou meu universo corporativo sempre planejado. Estávamos no
‘hoje’, como saberíamos sobre o depois de depois de amanhã?
Às
seis saímos na van.
23
mil pessoas moram em Pão de Açúcar e seus povoados ao redor - Palestina,
Niterói, Japão. A disposição do mundo mudou, foi? Um Cristo acima de nós lembrava
o de perto da minha casa e era só isso mesmo que se assemelhava ali. De resto era
o tempo ficando cada vez mais calmo e pirão. Uma tacinha de vinho branco?
“O
sertão é verde? É que no livro de Geografia...
Deixa
o livro de Geografia. Jogue fora o de História também. Olhe: aquele ali na foto
é Virgulino, o Lampião. Tá vendo Curisco? Dadá, Maria Bonita.
Lampião
afinal é herói ou bandido?
Você
afinal vai definir tudo ou viver?
Mas
a Ilha do Ferro não é ilha.
É
isolada, é ilha.
Pronto.”
Foi
de barco que Carmem chegou na ilha no começo dos anos 80. Não foi o começo da Ilha
do Ferro, foi o começo da história que a Carmem começou pra Ilha do Ferro.
Fazer
curadoria é que nem se apaixonar? No meio de um mundaréu de gente alguém de
repente olha no fundo do nosso olho e o que já estava ali sendo desenhado sem
que ninguém percebesse grande valor... muda. O curador enxerga a possibilidade
de uma tradução do mundo que está diante de todo mundo, mas só alguns captam. A
representação dele em uma língua própria, grafia, traço, cor, talhar, o mundo visto
e esculpido pelo olhar de quem faz dele mais bonito, mais confortável, um olhar
atento.
Foi
Seu Fernando quem abriu caminho para um povoado de artesãos ao entalhar móveis
com tanto carisma quanto talento. Foi ele quem abriu também o portal por onde passamos
naquele rio? O realismo mágico de cadeiras com cabeça de pássaros e bailarinos
em paredes me faz não poder garantir que tudo o que vou contar aconteceu, mas foi
assim.
Das
obras do Seu Fernando brotaram nas casinhas coloridas de platibandas uma
corrente de artistas, como o Petronio. Dos seus ex-votos iniciais às atuais caveiras,
ele hoje planeja abrir uma escola. E não vender sua terra. Na cozinha da casa,
Celia achava que não sabia fazer queijo, ela ‘ajudava’ o marido na pescaria, limpava
o peixe, olhava a transformação do leite, criava os garotos, um dia Petronio
comprou uma vaca tão boa que era ordenha de manhã, de tarde, de noite e era tanto
leite que empenou a Celia que já tinha descoberto que também era capaz de produzir
queijo mas tira essa vaca daqui e não traz cabrito que cabrito parece filho de Satanás!
Comemos queijo, tomamos café com rapadura, chá de gengibre e ervas e aprendemos
a esculpir madeira, ou quase. Teve passarinho esculpido na aula com jeito de
tamanduá, mas reforcei mesmo foi a lição de que temos que educar os meninos para
mudar a vida das Célias enquanto ela faz a contabilidade do marido.
Depois
dos quarenta anos, sete filhos crescidos, muita brita quebrada e rua varrida foi
que Dona Roxinha começou a desenhar. Desenhava nos cadernos, dali passou pra
tudo - parede, porta, placa, pedaço de madeira, banco, tampas de vaso, pilão, um
dia um homem bateu em sua porta e ela abriu. Ele perguntou se ela vendia os
trabalhos, comprou todos. Seus quadros passaram a ocupar galerias. “Nesses
quatro anos você já se acostumou com a fama?
Eu me acostumo com tudo”, ela respondeu, e voltou a negociar o que vende
e o que não sai dali de jeito nenhum porque é de Binga, seu marido primo. Mas
isso ela não sabia quando ele botou reparo nela cinquenta anos atrás. Todo
mundo desenha nessa casa? Na casa do lado também, que ela comprou com a renda
das obras. Deixa a porta aberta então
que os visitantes vão entrando, vão gostando, vão voltando, a gente vai
crescendo. O Binga teve ciúme, diz que é coisa de quem sente amor. Ô, Dona Roxinha,
se eu soubesse desenhar e escrever como a senhora pintava que o amor não faz
dono não, a gente fica porque ama, que todo mundo que sinta medo peça também ao
rio para levar embora o seu e assim possa amar em paz.
É
tanta paz que parece que consigo tocar. Como é isso de tempo aqui, é outro? A gente
pode se demorar, pode estar, a gente até vê! Tanta tecnologia no mundo e a inteligência
que eu quero é saber enxergar e ouvir. ‘A tecnologia do sertanejo é a fé e a
reza’.
Ouve
só a música que vem da caixa de som na calçada do músico, toma conta da noite
na cidade. Se estiver calor demais traz esse colchão pra rua e dorme aí mesmo
que nessa rua não passa mais vaca do seu Jorge, lugar da vaca não é junto com
turista e ele levou as dele pra Mata da Onça onde não tem onça mas pode vaca. Naquele
dia seu Jorge nem saiu de carro porque eram tantos outros que podia estragar, bater,
a esposa alertou. Diz que tinha mais uns três circulando então ele foi de moto.
Nós
saímos de barco para a casa do Clemilton e Amilton. Clemilton, pinta uma janela
para eu olhar vocês sempre que precisar? Pinta nela uma menina de frente para a
vida. Quem pinta bonequinhos de lado é o irmão, Amilton, e escultura nem tem
mais ali que tá tudo pelo mundo. Galinha tem, uma pro almoço que eu vi os meninos
correndo atrás para matar. A minha galinha vem da prateleira do mercado. Minha tilápia
também. Tem galinha pro almoço e tem renda Boa Noite, mas não sei por quanto
tempo ainda porque as crianças não querem aprender mais, estão no celular. Nem
a TV está mais em frente aos bancos de cimento embaixo da árvore que mata os
insetos. Eu reparei porque estava ali olhando quando choveu. Aprendi que é bonito
chover no sertão, disseram que floreia rapidinho. Aprendi a ficar feliz com a
chuva que cai sem medo que tudo desabe.
Já
foi mais água. Já teve mais peixe. A água levou meu brinco, mas o barqueiro Dão mergulhou e me devolveu. “Posso aceitar? Vai que é oferenda, o rio
levou. A gente tem um combinado: o que eu trago no barco, levo de volta.” Eu não
sei até agora quem entregou ou como foi que ele achou, só aceitei. Quem cuida
dessa gente desse rio, aqui tem sereia? Tem lendas, crenças? Reza pra quem? Tem
Jesus por toda parte. Mas quem sou eu pra saber se esse Jesus é igual ao que imagino?
Nem sei se todo mundo vê o mesmo que eu.
Eu
vi o arco íris, dois! Vi o PC cantar no alto dos cânions a saudade dos pais. Vi
o velho barqueiro levar o leme da canoa de tolda com as cascas dos pés que
o sol faz couraça na pele desses homens e eles adoram gritar num barco, mas o
coração paneja igual a vela em vento fraco. Vi as mãozinhas da bordadeirinha
subindo e descendo a linha numa bainha aberta e Miguel misturando todos os
pontos para criar um traçado só seu e mostrar pra mãe que foi melhor do que ele
fazer Direito. Vi São Francisco, vários, a fé materializada em imagens de santos
depositados nas fendas da rocha. Mergulhei nele e nadei até sentir silêncio e a
água caindo do céu me envolvendo inteira na fluidez doce da natureza da qual
sou parte, minúscula diante daquelas paredes e gigante perante quem um dia supus
ser.
Sabia
que não existia água ali? Essa água que subiu mais de cem metros quando criaram
a hidrelétrica e a represa. Onde o pai do Brian, que era pescador, caiu e foi
salvo pela rede. A água que passa corrente pelas gaiolas de tilápia que a dona
Vilma pescou e fez na brasa com macaxeira e um coquinho bom demais pra gente
comer. Ela me ensinou que carinho nos espinhos do cacto produz som de água. Ensinou
sobre os quarenta anos que viveu naquela terra que conquistou na luta, na
reforma agrária, dormindo em lona, criando filho, pescando peixe, tentando
descobrir quem tinha feito os desenhos nas rochas e como aquela pedra enorme
parou enviesada ali equilibrada. São pinturas rupestres. Foi tanta história que
passou ali. A gente passou pelo assentamento onde a menina segurava balões de
festa, os garotos jogavam sinuca, o velho deitava no sofá, eu vi tudo pelas
portas na janela da van que passava e o Ney cantava “Se essa rua fosse minha”.
Eu não mandava ladrilhar, deixava tudo colorido. Como as flores que a Maria
Helena ajeitou nas almofadas pra gente sentar lá em cima e cantar. Porque cantar
parece com não morrer, é igual a não se esquecer que a vida é que tem razão.
Quando a gente sente “uau” tende a cuidar e aprende a gostar de se deixar
cuidar.
Daqui
a uns dias é aniversário de 80 anos da Carmen. No Carnaval tem Marmotas na Ilha
e bloco “Filhinhos da Mamãe” em Maceió. O Andre, filho da Carmen, me ofereceu
leite do Gererê no Bar Macumba e eu quis saber se gererê era fruta. “Gererê é o
rapaz que mora aqui perto, quem tirou esse leite pra nós hoje”. Leite com nata
igual ao da infância para tomar com o Café do Renato, comer com queijo da Célia
ouvindo a música da Baby Consuelo do disco do Sitio do Pica Pau Amarelo. Era manhã
em um mundo mágico. Para o aniversário da Carmem a Cintia comprou um megafone e
elas vão sair pelas ruas convidando toda a Ilha! Eu queria ver as Marmotas e comemorar
a Carmem porque ela mora em uma casa verde e rosa com bandeira na cama e ímã na
geladeira escrito “Toda mulher merece amar outra mulher”. Eram tantas mulheres
comigo, tanto amor. O material do amor é a pessoa ou o que vemos em nós a
partir dela? O tempo que vai passando no tempo dele e nos transformando em nós
mesmas, mesmo naqueles poucos dias. Talvez com mais tempo não consigamos mais
seguir um bloco de salto alto, talvez os hormônios caiam, o cabelo embranqueça,
doenças apareçam, talvez a gente perca alguém, mas aí descobre que o material não
é o que dá o valor. Em alvenaria, cimento queimado e maçanetas da loja de
ferragem é tudo muito mais simples e lindo por estar ali inteiro pertencendo
presente.
Edilene,
desce desse pole dance e vem mergulhar comigo! Bota uma cadeira aqui ao lado da minha e venha ver Sergipe ali do outro lado do São Francisco, vem
velejar! Vem visitar a Dani e a Valeria no São Chico e comer outro milho cozido
no fogo de tijolo com suco de jenipapo naquele quintal. Ou quintéo. Vem olhar
as diferenças pelo afeto e fugir gargalhando de uma invasão alienígena da CVC,
os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas. Quando a realidade prescinde
de qualquer alucinógeno por já ser tudo o que precisa de maravilhosa para
alucinar, se entregue ao rio, Edilene, e deixe que ele transborde o que
entender necessário e bonito em você. Também o desencaminharam e nem assim
conseguiram tirar dele a força e os encantos existentes.
Eu
não sou de despedida então digo até breve como os peruanos e com o sorriso
comovido de quem admira o pôr do sol com calma por saber que ele volta pra
gente no dia seguinte. No dia seguinte saberemos sentir de novo essa bendita
felicidade. É só lembrar.
--- Para Thiago, Pablo, Ronaldo e, claro, Edilene
Músicas:
Enquanto Engoma a Calça, Ednardo
Nhem nhem nhem
Meu Amorzim, PC Silva
Nenhum comentário:
Postar um comentário