25.12.25

Apenas contigo e migo

 - Você organiza a sua fileira de Elo Monsters e eu a minha, como se os bonequinhos fossem times de um jogo de Queimado na mesa. O objetivo é arremessar um bonequinho em direção à fileira da outra para derrubar os oponentes, quem conseguir ganha o bonequinho derrubado para a sua fileira.

- Só isso, petelecos para derrubar bonequinhos?  Como bolinhas de gude.

- Petelecos e não pensamos em mais nada. Zerinho ou um? Mamãe Noel começa.

- E eu faço o quê?

- Você vai entregar os presentes que já está na hora, o trenó está carregado lá fora com as renas.

- Cadê meus óculos? E os endereços das cartinhas?

- As duendes sabem. Calça sua botas, se alguém te vir de Havaianas vai dar um quiprocó danado e tenho mais o que fazer. Leva seu saco com água e mix nuts. Bom trabalho, Amor!

Papai Noel não está conseguindo comer nada. Monjaro.

- Mas o contrato com a Coca Cola não exige que ele seja gordinho?

- Mudei, quero bebidas funcionais agora, estou pensando em fechar com uma marca de sodas adaptógenas.

Fico em silêncio. Mamãe Noel está sempre tão atualizada nas tendências que me perco, começou a assistir microdramas nos anos 90 quando eu ainda achava que não poderia viver sem meu primeiro crush. Que não era crush.

- Cogumelos, Bruna. Cogumelos adaptógenos. Em NY só tomam isso em cápsulas, drinks, e maconha. Podemos usar uma luva para brincar de Elo Monsters? Esses petelecos vão acabar com a nossa unha, não tem biotina que salve.

- Você também está com as unhas fracas?

- Meu bem, se fosse só isso. Outro dia até lembrar a palavra “Lapônia” fiz mímica de todos os países nórdicos  para alguém descobrir, virei a sua mãe quando ficava “aquela atriz daquela novela daquele canal” ou soltava o nome de todos os filhos até acertar o seu.

- Sempre achei que um dia ela me chamaria pelo nome do cachorro. E achei também que esses efeitos de estrogênio desabando...

- O quê?

- Não posso perguntar quantos anos você tem.

- Não me sinto mal com isso, meu bem, meu colágeno e bunda caem na proporção que me liberto então olho o copo meio cheio. E o trabalho que me deu chegar até aqui? Quero mais é contar sobre cada ano, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo minha idade. Ninguém nem sabe quando é o Natal, não é mesmo?

- Amanhã, dia 25.

- Isso é inventado, querida.

- Não, Mamãe Noel, Corpus Christi é que ninguém sabe o que é, quando cai. Natal é...

- Você acha que naquela manjedoura tinha um calendário? Se quiser acreditar no seu horário de nascimento para fazer mapa astral ainda vai, mas que Maria e José tiraram uma foto da chegada de Jesus e postaram com legenda “Vem, JHS!” exatamente na noite do dia 24 de dezembro é mais alucinação do que IA com prompt ruim.

- Eles não sabiam que dia era aquele? Não contavam as luas ou, sei lá, observavam o sol?

Mamãe Noel faz uma expressão de “sinto muito por te dizer isso”.

- Então tudo é inventado?

- Tudo.

Fico paralisada.

- Alguém inventou o Natal? Como criou a monogamia, a definição de sucesso, criou o tempo...

- Alguém criou tudo o que você entende por realidade, meu amor. E não é trecho de The Chosen, aqui é mais Sapiens mesmo. Seu smart watch contador de passos está indicando uma data que parte da humanidade concordou em definir que seguiria, mas o tempo pode ser ao mesmo tempo.

- Estou um pouco tonta, minha cabeça está latejando.

- Isso é bem real, é seu estrogênio. Toma um Dramin B6.

- Agora é merchan? Não sei mais no que acreditar.

- Ótimo! É a sua chance de criar, inventa o que for melhor para você. Quem topar embarcar junto virá junto, com quem não topar você inventa outra relação, relação nenhuma, o que funcionar, pode escolher. Vamos escolher, por exemplo, ligar o ar condicionado? Às vezes não sei se é verão, fogacho ou crise climática mas está mais quente e isso não é invenção, é sensação física.

- Tenho a sensação física de querer um abraço.

Mamãe Noel me abraça.

- Tantas coisas mudaram, não podia deixar o Natal no Natal?

- Não se chama mudança, meu amor, se chama Vida. É inerente a ela o movimento, o começo-meio-fim-começo, não são só seus hormônios que flutuam. Se te faz bem acreditar que o Natal é no dia 25, acredite, apenas saiba que é sua escolha e que você não controla o tempo. Você não controla nada. Não se dê tamanha importância, esteja aqui dando petelecos e tudo vai passar da mesma forma, fatiado em 24 horas ou não.  

- Vejo o tempo passar no envelhecimento. No que não é mais, não dá mais, não está mais.

 - Por que você me imaginou como uma velhinha? Olhe de novo. Como você quer que sejamos hoje com o que temos? Invente, meu bem. Ultrapasse o seu mundo físico, com tanto que há você quer ficar restrita a ele? Que desperdício! Que diferença faria se os Três Reis Magos tivessem chegado em fevereiro ao invés de janeiro? Não muda a história. A não ser que por lá também fosse Carnaval e ao invés da Estrela Guia eles tivessem seguido um estandarte de bloco qualquer, distribuído mirra para os foliões, passado ouro no corpo, perdido a fantasia no caminho...  

- Eles estariam pelo mundo atrás do Boitolo e essa história não existiria.

- Não sabemos. Por isso as pessoas criam e são feitas dessas histórias como são feitas do DNA dos pais e antepassados e das conversas que tiveram, do que aprenderam e viveram juntos e assim se moldaram. Olha o tempo aí: as pessoas que nós amamos não existem apenas no corpo delas mesmas, elas existem em nós e nisso seguem no nosso tempo. As memórias e a presença delas estão em você não como algo que passou, mas como o que são agora. É mais real e importante o presente embrulhado que  Papai Noel deixou na sua janela ou nós aqui brincando de Elo Monster e tendo essa conversa?     

- Talvez eu esteja só imaginando essa conversa.

- O que a faz existir para você. Você é uma criadora de histórias, todos somos. Qual história quer contar sobre esse tempo chamado de ‘seu ano’?

Passa para cá esse Monstro.

- O quê?

- Esse Monstro que derrubei com meu peteleco, não é assim o jogo? Ele não é mais seu, me dá. E vamos fazer uma pausa na brincadeira e rever a Paolla dançando Água de Chuva. Isso é ter um Feliz Natal.

   


Ainda assim acredito

Ser possível reunirmo-nos

Tempo, tempo, tempo, tempo

Num outro nível de vínculo

(Oração ao Tempo, Caetano Veloso)

 

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Transformai as velhas formas do viver

Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

(Tempo Rei, Gilberto Gil)

 

 

Nenhum comentário: