23.10.10

Lar, salgado lar (ou FormiguinhaZ)

Decidi sempre deixar duas formigas vivas. Uma seria muita carga para a pobre, três construiria uma relação triangular fadada a turbulências, dois garante um suporte emocional, a calma de olhar pro lado e ter quem já passou pelo mesmo, dividirão o peso.
Sempre evito matá-las, temos um acordo sobre limites, aceito que co-habitem meu espaço ainda que de graça, mas quando é inevitável costumava afogar todas ou Matoxiza-las. Mal-humorada dia desses, descobri a casa delas debaixo do mármore da pia e pronto, exterminei-as. Cuidei para que quem não estava em casa morresse também, assim a minha cozinha não viraria o antro das lamentações e eu não viveria com aquela energia pesada de formigas em luto. Dias depois, atraídas pela aguinha de um tomate, elas voltaram.
Não acredito que a tomada de novos territórios pelas formigas seja rápido como de morros por facções, então calculei que aquelas eram sobreviventes da população chacinada, os dias em que habitei sozinha o apartamento deve ter sido o tempo que elas levaram para se refazer da perda. Há muito que observo nas formigas essa capacidade de lidar com a perda, pense em como estão acostumadas com isso! Foi daí que instituí a lei própria de nunca deixar uma em pé para ser a arauta da desgraça, a que entra no formigueiro em horário inesperado, já causando apreensão, e dá a notícia. No entanto hoje de manhã, ao ver as poucas retornadas, pensei na dor das famílias sem notícias sobre seus entes desaparecidos e concluí que a dúvida é pior do que a mais cruel das certezas ainda que a primeira permita uma confortável ilusão, e julguei mais humano sempre poupar duas.
Não estou certa de que a chegada da noticia na comunidade cause drama, acredito na aceitação desse povo às baixas, imagino que sejam bem-resolvidas e sigam outros códigos, mas, baseada no relato de mães de soldados mortos em combate e nas cenas da Norah Walker em Brothers and Sisters, dentro dos meus domínios quero que o relato chegue àquelas sociedades. Seja para chorar uma ausência ou condecorar seus heróis, é preciso que haja um rito de passagem bem marcado para a vida seguir adiante, e assim anuncio que sempre pouparei duas formigas.
É como repetiu John Lennon: pense globalmente, aja localmente.

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