1.5.11

Com a cabeça no lugar

Foi falando sobre a Toscana que chegamos a Assis e, assim, a São Francisco. Estava contando a ele, devoto do santo desde criança, como eu, atéia descrente, não tirava da cabeça a preocupação pelo meu pequeno Francisco ter ficado sem a dele.

A oração eu repetia desde pequena,mecanicamente, nas aulas de religião e musicas que cantávamos na hora da entrada no colégio – “é dando que se recebe, perdoando que se é perdoado...”. “Hi-lili Hi-lo’ e “Mariana conta um” eram hits bem mais apreciados pelos alunos nas filas. Foi em uma época ruim, péssima, que ganhei um daqueles papeis com a oração atrás de quem não tinha mais argumentos lógicos pra me convencer de que havia algo de bom em mim.

Francisco nasceu em uma família rica, era popular entre os amigos pelas extravagâncias e aventuras recheadas de bebida, indisciplinas de um garoto que só usava roupas da moda e queria ser famoso. Aí foi aquilo - o tempo trouxe uma imensa angústia, soubesse cantar ele sentiria doer qualquer coisa dentro de si ao ouvir os versos de Liberdade do Camelo ou “acho que não vai dar, tô cansado demais”. O que nos dias de hoje seria tratado com ansioliticos foi não-resolvido com apedrejamento público e gargalhadas, como não podia repor todos os tecidos que vendeu do pai para bancar a reconstrução de uma igreja entregou o que tinha no corpo e seguiu com o bispo local a fim de espalhar compreensão, simplicidade e amor.

Por discordar do modo de vida da Igreja Catolica Francisco fundou sua própria Ordem, ao lado de amigos fieis que compartilhavam a visão de que todas as pessoas são iguais independentemente de raça, sexo, credo ou classe. Poucos anos depois juntou-se aos franciscanos a primeira mulher, Clara d'Offreducci, e talvez por eu ser a última romantica nos litorais desse oceano atlantico ou ignorantemente desconhecer relação assim, imaginei o quanto ela sofreu por aquele louco ou santo homem e acrescentei Santa Clara à minha lista de Mulheres com letra maiúscula. Descontados os radicalismos e entendido o contexto historico, fiquei tão encantada pela vida e obra de Francisco que, já estando por ali, quis ir até Assis agradecer pelo conforto oferecido, e movida pelas tais coisas que existem e nem supõe a nossa vã filosofia ainda trouxe uma pequena imagem como lembrança.

Bem acomodados estávamos eu, a mini-estátua de Francisco e meu cãozinho até o dia em que abro a porta de casa e, entre outros indícios de destruição, avisto o corpo do santo no chão, ao lado do nada arrependido e saltitante cachorro, decapitado. Depois de inúmeras lágrimas, broncas e buscas, do temor de que a cabeça pudesse ter sido engolida pela fera sem coração, a tal foi encontrada! Só faltava Superbonder para que tudo voltasse à paz, e eis que num mistério que desconfio não poder ser classificado como milagre, a cabeça sumiu de novo. Sobrou na Caixinha da Fé o corpo, algumas medalhas, patuás e semelhantes objetos, e mais nenhum sinal do que seria recolocado no corpo. Era isso: vivendo comigo, até São Francisco perde a cabeça.

Então estavamos nós em uma noite comum naquele que é nosso santuário às sextas-feiras quando, falando sobre a Toscana, chegamos a Assis e assim a São Francisco quando ele, devoto do santo desde criança, revela que uma de suas imagens foi danificada durante a limpeza pela empregada e também ficou só com o corpo. E é por essas e outras que eu, ateia e descrente, irei novamente a Assis agradecer por mais essa mensagem de conforto: não acontecem coisas inexplicáveis comigo, não estou fadada a viver com homens sem a cabeça no lugar, não sou tão desesperadora a ponto de até um santo preferir magicamente desaparecer, e mesmo Francisco pode perder a cabeça por qualquer bobagem! Vida que segue.

Um comentário:

Ana Paula W. Demaison Tranjan disse...

Nao sabia que a cabeça tinha sumido de novo!!!!!