“Até meia-noite tem bondinho, saltem na 2a estação. Todo mundo sabe onde é!”. O “todo mundo” ao qual o convite se referia eram as pessoas para quem poderíamos pedir informações pelo caminho, mas no caso do grupo no taxi comigo o “todo mundo” era eu mesma, cidadã que pelo segundo fim de semana seguido se dirigia para um programinha cool no Santa Marta. Sempre chamei a favela de Dona Marta, e sei lá se o nome mudou por efeito da pacificação ou da mesma moda que transformou Chernobyl em Chernóbyl e o Nálbert em Nalbér, essa era a questão menos importante ali. “Se chegarem depois da meia-noite subam a pé, é super tranquilo. Uns garotinhos vão cobrar dois reais pra guiar vocês”. O problema maior nem era explorar o trabalho infantil na madrugada, o que não me agradava muito era a idéia de subir sabe-se lá até onde, de meia-calça e jaqueta de couro, para uma festa.
“Vocês vem sempre aqui?”, perguntou o paulista amigo do amigo, realmente interessado na resposta e não sacando o primeiro clichê da cartilha de aproximação. “Vim na quadra da escola, mas nunca subi”, respondi, enquanto no balãozinho de lembrança que saía da minha cabeça modernamente penteada aparecia a cena da semana anterior: a juventude dourada do Leblon descendo até o chão ao som de eu só quero é ser feliz e andar tranquilamente na favela onde eu nasci.
Lá vinha o bondinho, um funicular pequenininho onde deviam caber cerca de dez pessoas, e o senhor na nossa frente grunhiu palavras: “quero nem saber, prioridade é de morador, que trabalhei o dia todo, aê”. Pensei em argumentar que nós também havíamos trabalhado durante aquele dia e que uma vez que o transporte gratuito havia sido instalado e mantido graças aos impostos que pagamos nos encontrávamos todos em igualdade de direito, mas achei melhor deixar pra outra hora. A moça responsável por abrir e fechar a porta do bondinho já berrava para que as pessoas entrassem logo que ela não iria subir outra vez. Com um “anda logo, garota” motivou uma de nós a se abraçar com uma plácida senhora que carregava sacolas e lá fomos todos para o alto e avante sem que o enfezado trabalhador precisasse lançar um “vai subir ninguém não, vai ficar todo mundo quietinho aqui”.
Conforme o funicular se movia descortinava-se aos nossos olhos ela – a cidade maravilhosa. Botafogo, Humaitá, Copacabana, aquele quadrado iluminado eu reconheço, Marina comporia que o Hotel Othon quando acende não é por nós dez. “A festa é aqui”, anunciou a doce funcionária, e avistamos as estrelas brilhantes que decoravam o lugar. Pelas vielas estreitíssimas seguimos o som e lá estava o point do momento: a laje do morro.
A trilha eletro-oriental invadia as milhares de casinhas de janelas grudadas na nossa, um cheiro alucinante de cachorro-quente denunciava o cardápio do evento e provava que aquele ali não era mesmo um evento “legalize”, como avisava o convite: “a festinha acaba às três horas em ponto por causa da UPP e vamos consumir álcool, que é a droga legalizada no país!”. O amigo iniciante nas artes etilicas, preocupado com os efeitos que a estupidamente gelada cerveja disponível poderia causar ao se misturar com o whisky pré-consumido, pedia ajuda: “não me deixem vomitar na comunidade”. É nóis, parceiro, tranquilidade.
O DJ lança mão de Sara Jane: “vamos abrir a roda, enlarguecer”. Uma convidada confessa: “tô me sentindo num filme”. A equipe estava inteira ali: roteiristas, diretores, produtores, atrizes e atores com seus All Stars e galochas coloridas fashionmente descombinadas com calças skinny e chapéus improvisavam coreografias – “ô meu neguinho eu tô ligada em você, tá ficando apertadinho, por favor, abra a rodinha, meu amor”. Take da fila do banheiro e eu penso: tragam a grande angular. Novo balãozinho de lembrança traz a cena do banheiro na semana anterior, quando meninas lindas e louras repetiam os movimentos pélvicos exibidos na pista da quadra a fim de usar o mictório invadido – há de ser feita uma pesquisa sanitária em locais de folia. No caso da laje o imprevisto se deu porque o vizinho que alugava o lavabo extra se zangara ao ser barrado e fez uso duvidoso da cláusula de reciprocidade: “também ninguém vai sair pra ir no meu banheiro”, decretou, e eu fiz questão que checassem se realmente ele havia proibido a saída com aquela finalidade específica ou generalizado a restrição já que a idosa aqui não aguentaria esperar até as três badaladas do sino da Igreja Matriz para descer.
“Tem problema nenhum, é só ir sempre pra baixo”. E lá fomos nós, grupo desfalcado que pediu pra sair, caminhando tranquilamente no meio da noite entre os varais das familias que sabe-se lá como dormiam com um barulho daquele, passando pelo curso de inglês, pela barbearia que tem faixa espalhada em todo canto chamando pra inauguração, as milhares de antenas de TV que mostram uma cidade pra outra e refrescam a arte de viver da fé.
É que daqui do litoral não dá pra ver tão legal o que acontece aí no seu morro, e mais do que um bom baseado parece que a galera do BG quer ficar do seu lado.
2 comentários:
Sou louca por uma programa desses....
Nós precisamos que você atualize isso aqui hein..
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