23.2.12

Das cinzas, coração


Ele disse que já não se fazem mais crônicas de quarta-feira de cinzas, que não há mais Adalgisa enfezada esperando marido no portão. Que este foi engolido pelo tempo e pela irrelevância. Que isso é coisa do tempo antigo. De outros pós-carnavais.
Talvez daqueles em que pela casa ficava uma purpurina, plumas rosas, no tanque uma sapatilha dourada e botas brancas. De quando ele perguntou o que era meia-arrastão e apontei para suas próprias pernas cabeludas sob o vestido de bolinha. Do tempo em que pagávamos para usar calças, jaquetas e chapéus de soldado em amenas noites de trinta e muitos graus. Esperávamos umas duas horas tomando cerveja no meio da rua em frente à Central do Brasil sem nos preocuparmos com a pouca quantidade de banheiros químicos disponíveis, levávamos mais broncas de um desconhecido do que suportaria a mais elevada autoestima para atravessarmos uma avenida em trinta minutos dançando ao som de uma música que mal conhecíamos sob os olhos de uma platéia indiferente aos nossos esforços e sede. Como não estaríamos felizes? Alcançando o final, suados e famintos, andaríamos um bocado torcendo para que o ônibus estivesse no lugar marcado e, dando certo, passaríamos toda a volta implicando com os bêbados, os sonolentos, casados e solteiros, os inteiros ou semi-mortos. Desse errado agiríamos da mesma forma, por mais tempo. No dia seguinte acordaríamos cedo porque bloco bom é na concentração. E por que andar?, perguntaria Adalgisa. Porque assim a gente chega lá, chega até no mar. E de bloco em bloco acabaríamos de bar em bar. De pirata, marinheiro, de coração partido ou inteiro. De repente, cantando pelos bairros no meio de toda aquela gente. Normalmente. Até nunca cansar. Até a quarta-feira chegar. Até a vida real mandar a gente voltar.
Ele disse que como gênero literário as crônicas da Quarta-feira de Cinzas perderam toda a legitimidade. Viraram anacrônicas. Talvez como uma colombina que cisma em achar mais graça no pierrot mesmo sendo tão bonzinho o arlequim. Como uma coleção de máscaras. Saias de filó. Como quem tem tanta alegria adiada, abafada, quem dera gritar, e está se guardando pra quando o carnaval chegar.

Um comentário:

Bruno Quintella disse...

Você sabe que sou adepto dos comentários elaborados e inspirados, mas hoje cabe uma contradição: perfeito. Ah, e o título é ótimo.
Beijos, xará.