De manhã o rio enche e venta pouco, a água fica lisinha, o mangue afogado. À tarde, desce. As prainhas aparecem, o caiaque encalha. Dá para atravessar remando e caminhar pela areia meio lodo, ver os siris se esconderem e retornarem sincronizadamente assustados com os nossos passos. Ou só conscientes mesmo, um “se esconde aí” sem nenhum sobressalto, sabem que daqui a pouco a gente passa.
Uliana contou que a ilha do outro
lado pertence a um sheik. Nossas hipóteses passearam por um líder espiritual libanês
que promove sacrifícios em uma seita ou só um brasileiro-árabe metido em
falcatruas mesmo, de certeza só o gosto duvidoso por pintar de vermelho os sete
bangalôs e um portal que parecia forca ou guilhotina. “Ele não é como nós, é ó...”,
e fez o gesto de nariz para cima. “Nunca aparece por aqui”.
Aqui é a cidade que tem uma rua e
meia. A casa da Gil é na meia rua que alagou. O rapaz do Odair disse que lá não
tem nada para fazer, mas não deu tempo de comermos as cocadas da Lete. Atrás da
placa da Lete, escondido dos salmos espalhados pelo perímetro da igreja evangélica,
uma bruxa local anuncia jogos de cartas. “Jesus te ama mesmo assim”, diz uma das
placas escritas à mão.
O apresentador famoso discorre
sobre o livro que não leio na mesa ao lado, é muita coisa pra fazer, tem sempre
um pôr do sol, um almoço que sai, alguém correndo. Um dia correu por horas
porque a praia estava tão bonita que chegou em outra cidade. Uma correria. Comemos polvo. O apresentador volta
no dia seguinte para comer mais brigadeiro de capim limão na casquinha de
sorvete. Saímos sem concluir se a moça do brigadeiro é francesa, mineira ou
esquece o sotaque vez em quando. Se é francesa, não é a que fica pelada tomando
sol porque essa mora lá em cima e ela mora aqui embaixo, na casa com trailer e
o cachorro que vai nadar às dez da
noite. O menino de cabelos compridos tenta convencê-lo a voltar, “tá se
amostrando, Hulk?”. Hulk pára para um carinho, nem se abala. O menino também nem
se esforça em pegar a coleira, deixa Hulk passear. Os poucos carros desviam dos
buracos, as bicicletas desviam de nós, a lua está quase totalmente cheia. Amanhã
o rio vai subir, talvez desse para ir a Araripe.
Carluxo disse que Araripe depende
da maré. Tudo depende da maré, mas não aprendi a ler, só sei que é mais fácil remar
na água lisinha onde não bate vento e que, se a correnteza nos levar no
mergulho, ele acelera o barco para nos resgatar. Mas fomos sendo levados todos juntos,
lentamente, o barco e nós. “Agora vou desligar o motor e vamos ouvir o rio”, ele
falou. Mas a gente não para de falar. “2
minutos!”, disse a Carla. Eles tem nomes quase iguais. E 3 minutos, 4... o barulho da mão na água porque não dá pé. Os
papagaios não param de falar, passam em alvoroço e eu achei que fossem maritacas.
A minha casa tem maritacas, mas não tem rio. Nem silêncio. Nem passarinho
vermelho ou beija-flor que expulsa as outras aves da árvore com ninho. Não tem
sapo que salta por cima da nossa cabeça, mas não tem a Maroca, tem especulação imobiliária
e construções na minha praia não consigo respirar.
O José ficou tocando percussão na
praia com a menina, Arlindo acha que ele está apaixonado. “Já ensinei tudo que
podia, agora deixo escolher o caminho dele”. O outro filho é marinheiro da
balsa. Os alemães ficaram aqui a Copa
toda e pegavam a balsa a cada jogo? Sim. Não sei se eles perdiam a balsa e tomavam cerveja, nem se foram a Belmonte. Será que comeram pastel na Dedé e
entenderam a história da tilápia? Acho que não dançaram forró no paredão. Eles
teriam adorado. Não sei como essa gente das letras do forró sofre tanto por amor.
Dedé falou que a festa junina ali na praça é filé. Ou filé é o fim de tarde no Jequitinhonha? A família do Kevin tem uma companhia de artesãos em
Belmonte, às margens do Jequitinhonha. Fazem vasos enormes que mandam até para
o exterior, mas Kevin estava fora na auto escola.
Jequitinhonha é uma palavra boa
como marola. Ah, marola? Boa como doce de maracujá lotado de leite condensado.
Doce de limão, kiwi, mamão, morango. Espumante no mar. Vinho vindo na prancha
em banco de areia. Tem banco de areia no meio do mar, pertinho de onde chegaram
as caravelas. Foi por ali que rezaram a primeira missa. Eu perguntei onde tinha
um terreiro, “lá em Belmonte”. Tem praia em Belmonte? Tem mas é perigosa. (Pensamos
em milícia). As ondas são fortes. Ah, tá. Não fomos a Belmonte, tínhamos um rio
e nosso rio estava clareando, subindo e descendo e encontrando o mar. Tinha uma
criança no rio, acho que ela queria ser nossa amiga. Mas somos do Rio, não damos
bom dia nem conhecemos as amigas do João. Maravilhosas. Eu daria bom dia e
faria yoga no centro cultural onde os pataxós vendem artesanato e o bêbado esbraveja
no makulele “quando ferir a mão não me chama”. Eu ri. O bêbado sentou, os
turistas fizeram Stories num Iphone 12. A lua encheu, a maré também. Todo o
medo foi embora.
Co-memorar é criar memórias com alguém.
Feliz ano novo. Geraldo, beija a
Lu.
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