6.1.23

Que o encontro das águas

De manhã o rio enche e venta pouco, a água fica lisinha, o mangue afogado. À tarde, desce. As prainhas aparecem, o caiaque encalha. Dá para atravessar remando e caminhar pela areia meio lodo, ver os siris se esconderem e retornarem sincronizadamente assustados com os nossos passos. Ou só conscientes mesmo, um “se esconde aí” sem nenhum sobressalto, sabem que daqui a pouco a gente passa.

Uliana contou que a ilha do outro lado pertence a um sheik. Nossas hipóteses passearam por um líder espiritual libanês que promove sacrifícios em uma seita ou só um brasileiro-árabe metido em falcatruas mesmo, de certeza só o gosto duvidoso por pintar de vermelho os sete bangalôs e um portal que parecia forca ou guilhotina. “Ele não é como nós, é ó...”, e fez o gesto de nariz para cima. “Nunca aparece por aqui”.

Aqui é a cidade que tem uma rua e meia. A casa da Gil é na meia rua que alagou. O rapaz do Odair disse que lá não tem nada para fazer, mas não deu tempo de comermos as cocadas da Lete. Atrás da placa da Lete, escondido dos salmos espalhados pelo perímetro da igreja evangélica, uma bruxa local anuncia jogos de cartas. “Jesus te ama mesmo assim”, diz uma das placas escritas à mão.

O apresentador famoso discorre sobre o livro que não leio na mesa ao lado, é muita coisa pra fazer, tem sempre um pôr do sol, um almoço que sai, alguém correndo. Um dia correu por horas porque a praia estava tão bonita que chegou em outra cidade. Uma correria. Comemos polvo. O apresentador volta no dia seguinte para comer mais brigadeiro de capim limão na casquinha de sorvete. Saímos sem concluir se a moça do brigadeiro é francesa, mineira ou esquece o sotaque vez em quando. Se é francesa, não é a que fica pelada tomando sol porque essa mora lá em cima e ela mora aqui embaixo, na casa com trailer e o cachorro  que vai nadar às dez da noite. O menino de cabelos compridos tenta convencê-lo a voltar, “tá se amostrando, Hulk?”. Hulk pára para um carinho, nem se abala. O menino também nem se esforça em pegar a coleira, deixa Hulk passear. Os poucos carros desviam dos buracos, as bicicletas desviam de nós, a lua está quase totalmente cheia. Amanhã o rio vai subir, talvez desse para ir a Araripe.

Carluxo disse que Araripe depende da maré. Tudo depende da maré, mas não aprendi a ler, só sei que é mais fácil remar na água lisinha onde não bate vento e que, se a correnteza nos levar no mergulho, ele acelera o barco para nos resgatar. Mas fomos sendo levados todos juntos, lentamente, o barco e nós. “Agora vou desligar o motor e vamos ouvir o rio”, ele falou. Mas a gente não para de falar.  “2 minutos!”, disse a Carla. Eles tem nomes quase iguais. E 3 minutos,  4... o barulho da mão na água porque não dá pé. Os papagaios não param de falar, passam em alvoroço e eu achei que fossem maritacas. A minha casa tem maritacas, mas não tem rio. Nem silêncio. Nem passarinho vermelho ou beija-flor que expulsa as outras aves da árvore com ninho. Não tem sapo que salta por cima da nossa cabeça, mas não tem a Maroca, tem especulação imobiliária e construções na minha praia não consigo respirar.

O José ficou tocando percussão na praia com a menina, Arlindo acha que ele está apaixonado. “Já ensinei tudo que podia, agora deixo escolher o caminho dele”. O outro filho é marinheiro da balsa.  Os alemães ficaram aqui a Copa toda e pegavam a balsa a cada jogo? Sim. Não sei se eles perdiam a balsa e tomavam cerveja, nem se foram a Belmonte. Será que comeram pastel na Dedé e entenderam a história da tilápia? Acho que não dançaram forró no paredão. Eles teriam adorado. Não sei como essa gente das letras do forró sofre tanto por amor. Dedé falou que a festa junina ali na praça é filé. Ou filé é o fim de tarde no Jequitinhonha? A família do Kevin tem uma companhia de artesãos em Belmonte, às margens do Jequitinhonha. Fazem vasos enormes que mandam até para o exterior, mas Kevin estava fora na auto escola.

Jequitinhonha é uma palavra boa como marola. Ah, marola? Boa como doce de maracujá lotado de leite condensado. Doce de limão, kiwi, mamão, morango. Espumante no mar. Vinho vindo na prancha em banco de areia. Tem banco de areia no meio do mar, pertinho de onde chegaram as caravelas. Foi por ali que rezaram a primeira missa. Eu perguntei onde tinha um terreiro, “lá em Belmonte”. Tem praia em Belmonte? Tem mas é perigosa. (Pensamos em milícia). As ondas são fortes. Ah, tá. Não fomos a Belmonte, tínhamos um rio e nosso rio estava clareando, subindo e descendo e encontrando o mar. Tinha uma criança no rio, acho que ela queria ser nossa amiga. Mas somos do Rio, não damos bom dia nem conhecemos as amigas do João. Maravilhosas. Eu daria bom dia e faria yoga no centro cultural onde os pataxós vendem artesanato e o bêbado esbraveja no makulele “quando ferir a mão não me chama”. Eu ri. O bêbado sentou, os turistas fizeram Stories num Iphone 12. A lua encheu, a maré também. Todo o medo foi embora.  

Co-memorar é criar memórias com alguém.

Feliz ano novo. Geraldo, beija a Lu.

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