Na frisa você é obrigada a olhar para o céu quando passam os carros alegóricos, é bom para entender nosso tamanho debaixo daqueles Exus e Oxalás. ‘Passa esse defumador aqui mais perto, por favor’.
“Vamos pra Sapucaí, seu João?”
“Vou esse ano não, senhora, agora tem muita macumba no Carnaval, eu gostava
antes, pra quê isso?”.
Tem erva pra defumar, carrego o
meu patuá / Adorei as almas que conduzem meu caminho / É mojubá, marabô,
invoque a Lua / Que o povo da encruza não vai me deixar sozinho
Disse que era o primeiro ano dele
no Carnaval. “Mas você é de onde?” “Aqui do Rio mesmo.” “E estava onde até
hoje?” “Perto da Praça Onze, mas eu era da igreja. Se minha mãe souber que
estou aqui cantando essas macumbas ela me mata.” “Você saiu da igreja e agora
vem?” “Eu venho com ele, meu namorado. Porque ele é do Salgueiro”. O namorado
sorriu para mim, ofereceu um pacote de Doritos, nós da arquibancada vendo o
ensaio do Tuiuti e lá embaixo Markinhos, mestre de chocalho da escola, montado
de salto alto à frente da bateria comandava “Quem Tem Medo de Xica
Manicongo?”, a primeira travesti do Brasil.
Só não venha me julgar, ô-ô /
Pela boca que eu beijo (...) E a fé que eu professar / Não venha me julgar / Eu
conheço o meu desejo / Este dedo que acusa / Não vai me fazer parar
Sempre alguém chora. Eu choro
cachoeiras e acho mesmo que o samba é para lavar então deixo chorar. A gente
que chora no samba se entende, só se olha, oferece a mão, jamais diz ‘não
chora’. Ontem era a Paola. A cada vez que ela batia o pé no chão da avenida
parecia trovejar. Ela parava, chorava, voltava. A plateia respondia com palmas,
gritos e celulares. “Três princesas turcas vieram pro Pará? Erundina?”
É força de caboclo, vodum e orixá
/ Meu povo faz a curva como faz na gira / Chama Jarina, Herondina e
Mariana / Grande Rio firma o samba no Tambor de Mina
O vestido devia pesar uns vinte
quilos mais o adereço da cabeça e ela pequenininha desfilando devagarzinho. O
rapaz do apoio a abanava com um leque que fazia seus cílios postiços enormes
dourados voarem, ela se secava com um lenço e sorria, olhava pra gente, buscava
fôlego, dava mais uns passinhos em direção à Apoteose. Talvez pelos nossos
olhares encantados derramando admiração e respeito, uma diretora de Harmonia me
puxou e disse “87 anos.” Dona Vilma Nascimento estreou aos 13 como
porta-bandeira naquela Portela e se tornou baluarte, o “Cisne da Passarela”. E
eu considerei não ir por gripe?
E foi assim (...) / Novos
destinos no mesmo poema / E nos terreiros, perfume de patchouli / Acende a
brasa do defumador / Pro mestre batucar a sua fé
“Não fazem mais sambas que duram,
que samba que você canta depois que acaba o Carnaval?” Fala, Majeté a cada 15
dias ou quando necessário.
Em 2019 a Mangueira compôs o
argumento “a História que a história não conta”. Foi ali que me dei conta de
que deveria estudar os enredos mais profundamente, que tudo aquilo que ia
assimilando desde criança nas letras e alegorias eram a aula que minhas escolas
particulares e ciclo social não passariam. Levei a vida sem entender que o
chamado daquela batida que me puxava por dentro e jogava no tambor era o toque
de uma bateria para um orixá. Quando cheguei no mundo me apresentaram Deus,
santos, até Buda veio antes de Oxum, foi esse outro mundo que os trouxe. Aos
poucos fui levando mais fevereiro para o resto dos dias, não mais me guardando
para quando o Carnaval chegasse, Chico. Foi o Carnaval quem me ensinou que o
país onde nasci tinha uma religião e uma cultura, outra História. E foi o
Carnaval quem fez bater vida dentro de mim quando ela não pulsava mais, e eu
não entendia.
Toca o adarrum / que meu orixá
responde
Quando desço as escadas da estação Maracanã e vejo a bateria da Mangueira formada para o ensaio de rua. Quando me torno corda de um bloco qualquer só para estar o mais perto possível e me perder (“você sumiu! Estava sozinha?”). Quando os empurradores de carro alegórico fazem suas performances para o público em um riso solto no estrelato de uma rua. Liberto na senzala social / Malandro, arengueiro, marginal. Quando o puxador comanda “Agora é a hora, pé direito, muita sorte, arrepia”. Quando o cortejo passa por um túnel. Quando desce ladeira. Quando a cidade é tomada por gente fantasiada. Quando essa gente embarca na fantasia. Quando se rasga a fantasia. Quando se forma uma roda de gente ao redor de uma mesa cantando com os braços pra cima e pulando porque passou o VLT. Quando eu pulo a grade e vou atrás da escola sem que meus pés sequer encostem no chão. Quando entendo que é preciso pedir licença para entrar. Quando eu era uma criança vendo na TV da sala de madrugada o Cristo proibido de Joãosinho Trinta, equilibrando o medo das fotos em sépia dos meus antepassados nos quadros daquela casa enorme onde fazíamos bailes e um amor por uma festa que nasceu em mim e me aceitou. Quando preciso defender que não é tudo igual e entende quem quer.
De tudo que aprendi / O todo que
reuni / Fez imbatível a força do meu axé
Não acaba na Quarta-feira.
Eu vou seguir
sem esquecer nossa jornada, emocionada.