O item mais estranho é um gel higienizador de mãos que passou a fazer parte da minha vida desde que calculei a quantidade de pessoas que seguram os postezinhos do metrô (os que me fazem pensar em como seria legal se alguém fizesse um pole dance inesperado). Tem sempre papéis, odeio-os, não é possível que eu precise receber tantos. Os óbvios: carteira, telefone, chaves de casa, cada vez mais raramente chaves e documento do carro, corretivo pras inseparáveis olheiras e moleskine pras inseparáveis inspirações, o crachá do trabalho – objeto inversamente proporcional ao moleskine – duas ou três canetas sei lá por que, guarda-chuva devido à quantidade de dias nublados e um floral devido à quantidade de dias em que eu estive nublada recentemente.
Rio muito do politicamente incorreto, você mesmo diz que sem sarcasmo não sou eu. A rotina na lente de aumento comentada por quem tem sinapses rápidas e línguas mordazes me faz virar o Flipper dando piruetas , eu poderia viver com o Fabio Porchat. Tenho medo de ficar sozinha. Não em casa ou nos sábados à noite, na vida. Velhinha. Mais velha ou amanhã. Amo filhotes. Cachorros em geral, praia e talvez você. Amar você e ficar sozinha podem estar relacionados – eu poderia estar sozinha por amar você ou inventar de amar você pra não ficar sozinha - mas acho que não é isso não, nem tenho me sentido sozinha e se o arrebatamento de alegria por ter você por perto é amar eu te amo, senão é só bom mesmo e o que amo com certeza são os filhotes. E vento! Amo vento. Entendo bem cachorros nas janelas dos carros.
Agora vem o snapshot do meu dia, escolhi hoje porque em 24/07/2010 não me lembrei de você, ontem foi bom, anteontem ótimo, mas estou num momento presente e acabei de saber do filme, vai ser hoje. Eu deveria explicar sobre o filme antes: Ridley Scott e Kevin Macdonald pediram no You Tube vídeos sobre um dia na Terra, uma passagem qualquer de 24 de julho de 2010. Receberam 80 mil e vão montar um longa-metragem, registro histórico, trabalho colaborativo, lançamento em Sundance 2011. Fizeram as perguntas acima: o que tem no seu bolso, o que faz você rir, do que tem medo e o que ama.
Gravando: (trilha a definir)
Espreguiço-Nescau-caminho-escritório-conversinhas-email pra você (“já desistiu de ficar sem mim? carinha feliz”)- power points banais-plano geral da sala gigante.
Enquanto você não responder continuará um dia feliz, depois volta ao normal ou fica muito mais feliz por mais tempo.
I just did it.
Fim.
27.9.10
23.9.10
*Miss that plane
Expresso Darjeeling, identificado por mim como “tenembaums”, não vi, assim como não vi I´m not there, “Death Proof-Tarantino”, O outro lado da cama, A Captura dos Friedman nem Fay Grim, traduzido como “henry fool”. Eram tantos filmes selecionados que às vezes nem eu mesma sabia por que tinha marcado aquele se não rabiscasse uma dica ao lado. O disputadíssimo Paranoid Park, do famooooso Gus van Sant, nunca nem procurei na locadora. Tem filme que é de cinema, e essa opinião não mudou.
Encantada por Albergue Espanhol, me enfiei no São Luiz no meio de uma tarde pra ver Bonecas Russas, só tinha lá, estava esgotado em todos os outros lugares. Esgotado como Os Sonhadores, Aos Treze, Pieces of April, só Encontros e Desencontros consegui comprar com a antecedência precavida que revelava a solenidade da ocasião. E Antes do Pôr-do-Sol. Pra explicar o calafrio que a perda daquele avião no final causou seria preciso revelar a Teoria do Elástico, e se já nem me lembro mais às voltas com qual fantasma eu andava posso deixar essa memória pra trás. Já exorcizei Caché, que até hoje não entendi, e fique à vontade quem quiser explicar tanto entusiasmo por aquela galinha.
O suplemento do Globo publicado na véspera da abertura ajudava muito, mas antes disso já começávamos a confecção e comparação das planilhas com opções de lugares, dias e as cores indicando o grau de preferência de cada filme que queríamos assistir. Era legal dizer “o do Almodovar” ao invés de “Má Educação”, sendo que “La Mala Educacion” no original também valia. Ou vale ainda, não sei mais.
Esse ano eu vou. Vai começar o festival. Festival do Rio.
Sempre tinha um Almodovar pra causar rebuliço e os novatos poderem dizer que foram ao Festival. Ok, e os veteranos também, que não se contentavam em assistir à estréia massificada em circuito oficial uma semana depois. Como se Almodovar fosse massificavel... Era glamouroso depois dizer “é bom, vi no Festival”. E sempre tinha o Gael. Gael num filme do Gondry é uma combinação como morango e chocolate, tão delicioso, isso ficou. “Super-fine” é como ele definia se sentir em Science of Sleep, e a expressão virou uma piada interna. Ficou a lembrança tristonha daquela gargalhada a dois no escuro e uma rápida boa herança para espantar o saudosismo – Maggie May ainda toca! E sem danos que nem tudo é tão difícil, desde Lords of Dogtown, agradável surpresa apresentada pela companhia da época no finado Paissandu. Para completar o parágrafo-cemitério ele termina com caipirinha na fila do Odeon esperando a premiere de Noiva Cadáver de Tim Burton. Premiere no Odeon transforma um filme.
Um dia descobrimos que legenda queimada na tela indicava que o filme entraria em circuito depois, e até um site oficial com as estréias do ano era repassado para tranqüilizar quem não tivesse comprado ingresso a tempo na interminável e tensa fila do Estação. Acho que não precisa mais mofar na fila. Não sei.
Foi no Estação que conheci o cinema argentino e aprendi a dizer que, como o italiano, ele é diferente. Bom. Um inteligente, o outro sublime. Com os anos las películas ganharam uma platéia menos uniforme, figurinos além das camisas xadrez e tênis estilosos dos homens e das mulheres de saias largas e blusas sobrepostas fumando na porta. Já se pode tomar banho e fazer a barba antes de ver um filme do Festival. Eu acho.
Pra mim passou a fase de filmes raros com direito a perguntas para cineastas iranianas depois da exibição, uma vez presa em uma sala mínima com uma delas e superei essa necessidade de “coolzice-intelectual”, me permiti admitir que acho chato. Chato é bem diferente de interessante, mesmo em festival. Filme interessante no festival tem avant-premiere nas conversas prévias e só termina nos debates posteriores. Tem que cutucar.
Nunca consegui ver milhares de filmes seguidos e depois de um tempo aceitei nem marcar sessões antes das três da tarde, me tornei sincera e segura. Entrar de sala em sala é como excursão à Europa com dez capitais em sete dias, na volta o turista coloca Notre Dame em Roma e cinema no festival tem que ser a maior imersão, precisa de tempo para assentar.
Pra retrospectiva ficar completa falta preencher as reticências depois do verbo que define Ricardo Darin. Ricardo Darin é... meu “Un certain regard hors-concours”, e essa é a frase mais metida a cinéfila besta desse festival de "era assim". Esse ano ele está lá, talvez com Gael e um Almodóvar? Esse ano eu vou. Sair diferente, quem sabe um pouquinho mais reflexiva ou mais terna por uns pouquinhos minutos. Do cinema, é de onde vou sair diferente, e como se não fosse óbvio só então me dou conta de que ali é o lugar onde realmente estou quando estou em um lugar. Principalmente se tiver Ricardo Darin.
Esse ano quero ver José e Pilar. Porque o festival tem que me lembrar de uma beleza e talvez eu só a absorva ao me trancar em uma sala escura onde nada mais acontece. Por cerca de duas horas não há onde ir. Olhar e ouvir. E reparo na mesa ao lado do livro sobre os quinhentos filmes a serem vistos a gravura com frase do Warhol - “Art is what you can get away with.”.
Eu vou.
Preciso reaprender a ir embora sem medo de nunca mais voltar.
* Antes do pôr-do-sol, cinema Leblon, Festival do Rio 2004
Encantada por Albergue Espanhol, me enfiei no São Luiz no meio de uma tarde pra ver Bonecas Russas, só tinha lá, estava esgotado em todos os outros lugares. Esgotado como Os Sonhadores, Aos Treze, Pieces of April, só Encontros e Desencontros consegui comprar com a antecedência precavida que revelava a solenidade da ocasião. E Antes do Pôr-do-Sol. Pra explicar o calafrio que a perda daquele avião no final causou seria preciso revelar a Teoria do Elástico, e se já nem me lembro mais às voltas com qual fantasma eu andava posso deixar essa memória pra trás. Já exorcizei Caché, que até hoje não entendi, e fique à vontade quem quiser explicar tanto entusiasmo por aquela galinha.
O suplemento do Globo publicado na véspera da abertura ajudava muito, mas antes disso já começávamos a confecção e comparação das planilhas com opções de lugares, dias e as cores indicando o grau de preferência de cada filme que queríamos assistir. Era legal dizer “o do Almodovar” ao invés de “Má Educação”, sendo que “La Mala Educacion” no original também valia. Ou vale ainda, não sei mais.
Esse ano eu vou. Vai começar o festival. Festival do Rio.
Sempre tinha um Almodovar pra causar rebuliço e os novatos poderem dizer que foram ao Festival. Ok, e os veteranos também, que não se contentavam em assistir à estréia massificada em circuito oficial uma semana depois. Como se Almodovar fosse massificavel... Era glamouroso depois dizer “é bom, vi no Festival”. E sempre tinha o Gael. Gael num filme do Gondry é uma combinação como morango e chocolate, tão delicioso, isso ficou. “Super-fine” é como ele definia se sentir em Science of Sleep, e a expressão virou uma piada interna. Ficou a lembrança tristonha daquela gargalhada a dois no escuro e uma rápida boa herança para espantar o saudosismo – Maggie May ainda toca! E sem danos que nem tudo é tão difícil, desde Lords of Dogtown, agradável surpresa apresentada pela companhia da época no finado Paissandu. Para completar o parágrafo-cemitério ele termina com caipirinha na fila do Odeon esperando a premiere de Noiva Cadáver de Tim Burton. Premiere no Odeon transforma um filme.
Um dia descobrimos que legenda queimada na tela indicava que o filme entraria em circuito depois, e até um site oficial com as estréias do ano era repassado para tranqüilizar quem não tivesse comprado ingresso a tempo na interminável e tensa fila do Estação. Acho que não precisa mais mofar na fila. Não sei.
Foi no Estação que conheci o cinema argentino e aprendi a dizer que, como o italiano, ele é diferente. Bom. Um inteligente, o outro sublime. Com os anos las películas ganharam uma platéia menos uniforme, figurinos além das camisas xadrez e tênis estilosos dos homens e das mulheres de saias largas e blusas sobrepostas fumando na porta. Já se pode tomar banho e fazer a barba antes de ver um filme do Festival. Eu acho.
Pra mim passou a fase de filmes raros com direito a perguntas para cineastas iranianas depois da exibição, uma vez presa em uma sala mínima com uma delas e superei essa necessidade de “coolzice-intelectual”, me permiti admitir que acho chato. Chato é bem diferente de interessante, mesmo em festival. Filme interessante no festival tem avant-premiere nas conversas prévias e só termina nos debates posteriores. Tem que cutucar.
Nunca consegui ver milhares de filmes seguidos e depois de um tempo aceitei nem marcar sessões antes das três da tarde, me tornei sincera e segura. Entrar de sala em sala é como excursão à Europa com dez capitais em sete dias, na volta o turista coloca Notre Dame em Roma e cinema no festival tem que ser a maior imersão, precisa de tempo para assentar.
Pra retrospectiva ficar completa falta preencher as reticências depois do verbo que define Ricardo Darin. Ricardo Darin é... meu “Un certain regard hors-concours”, e essa é a frase mais metida a cinéfila besta desse festival de "era assim". Esse ano ele está lá, talvez com Gael e um Almodóvar? Esse ano eu vou. Sair diferente, quem sabe um pouquinho mais reflexiva ou mais terna por uns pouquinhos minutos. Do cinema, é de onde vou sair diferente, e como se não fosse óbvio só então me dou conta de que ali é o lugar onde realmente estou quando estou em um lugar. Principalmente se tiver Ricardo Darin.
Esse ano quero ver José e Pilar. Porque o festival tem que me lembrar de uma beleza e talvez eu só a absorva ao me trancar em uma sala escura onde nada mais acontece. Por cerca de duas horas não há onde ir. Olhar e ouvir. E reparo na mesa ao lado do livro sobre os quinhentos filmes a serem vistos a gravura com frase do Warhol - “Art is what you can get away with.”.
Eu vou.
Preciso reaprender a ir embora sem medo de nunca mais voltar.
* Antes do pôr-do-sol, cinema Leblon, Festival do Rio 2004
15.9.10
Bebo
(...)
Mas o texto que fez a amiga se lembrar de mim falava sobre ansiedade - algo totalmente aplicável à minha pessoa e, ao que parece, à Fernanda Young.
(...)
Em pé na areia escaldante do Leblon, música alta, sal secando ao sol, um garotinho se aproxima de mim, típico personagem. Ele me oferece a cerveja que segura, eu faço que não com a cabeça, ele começa a mexer os lábios, eu tiro um fone do ouvido: Você não bebe? Não, sorriso amarelo de ponto final. Mas posso lhe conhicê? - me estende a mão - eu sou Rénan. Olhei ao redor - não tinha uma gangue por perto, não era para me distrair. Não tinham câmeras por perto, não era uma pegadinha. Há tanto tempo não ouvia alguém usar o pronome “lhe” que chacoalhei a mão de Renan e quase invejei aquele estufar de peito nordestino do conquistador neo-carioca. Como carioca-com-muitos-anos-de-praia, rapidinho recolhi minhas coisas e fui embora meditar em outro canto sobre a minha condição de pior que Fernanda Young.
Voltei para casa derretendo, pensando que até em avião os conversadores respeitam fones de música, agora nem controlar a ansiedade em paz é possível. E de repente ri da cara-de-pau do jaguncinho. Rénan podia achar que é numa dessas que se começa uma grande amizade, que assim nasce um romance, que não há melhor companhia para uma tarde na praia. Ele podia estar deprimido e resolveu chutar o balde, podia estar feliz da vida e quis compartilhar, podia estar numa terça-feira na praia sozinho tomando uma cerveja e resolveu puxar papo com a menina sozinha ao lado que ouvia música. Simples assim. Mas para alcançar essa simplicidade ele precisou de um desapego, de uma esperança, uma ingenuidade, uma segurança, uma tranqüilidade, uma determinação! Ou não, precisou de um gole, um mergulho e nada a perder.
A Fernanda Young otimista tem razão. Por causa dessa interminável agonia nem perdemos só pessoas e oportunidades, perdemos tempo. Desperdiçamos muita energia com uma obstinação às vezes desmedida. Uma coisa é correr atrás, a outra é rastejar, se esgoelar, achar que a vida não tem sentido sem aquilo. Tem. A vida só não tem sentido sem graça. E para ter graça, é preciso leveza de espírito. Para o resto dar-se-á um jeito.
****************
(recorte dos tempos Tribuneiros, e terças de sol.)
Mas o texto que fez a amiga se lembrar de mim falava sobre ansiedade - algo totalmente aplicável à minha pessoa e, ao que parece, à Fernanda Young.
(...)
Em pé na areia escaldante do Leblon, música alta, sal secando ao sol, um garotinho se aproxima de mim, típico personagem. Ele me oferece a cerveja que segura, eu faço que não com a cabeça, ele começa a mexer os lábios, eu tiro um fone do ouvido: Você não bebe? Não, sorriso amarelo de ponto final. Mas posso lhe conhicê? - me estende a mão - eu sou Rénan. Olhei ao redor - não tinha uma gangue por perto, não era para me distrair. Não tinham câmeras por perto, não era uma pegadinha. Há tanto tempo não ouvia alguém usar o pronome “lhe” que chacoalhei a mão de Renan e quase invejei aquele estufar de peito nordestino do conquistador neo-carioca. Como carioca-com-muitos-anos-de-praia, rapidinho recolhi minhas coisas e fui embora meditar em outro canto sobre a minha condição de pior que Fernanda Young.
Voltei para casa derretendo, pensando que até em avião os conversadores respeitam fones de música, agora nem controlar a ansiedade em paz é possível. E de repente ri da cara-de-pau do jaguncinho. Rénan podia achar que é numa dessas que se começa uma grande amizade, que assim nasce um romance, que não há melhor companhia para uma tarde na praia. Ele podia estar deprimido e resolveu chutar o balde, podia estar feliz da vida e quis compartilhar, podia estar numa terça-feira na praia sozinho tomando uma cerveja e resolveu puxar papo com a menina sozinha ao lado que ouvia música. Simples assim. Mas para alcançar essa simplicidade ele precisou de um desapego, de uma esperança, uma ingenuidade, uma segurança, uma tranqüilidade, uma determinação! Ou não, precisou de um gole, um mergulho e nada a perder.
A Fernanda Young otimista tem razão. Por causa dessa interminável agonia nem perdemos só pessoas e oportunidades, perdemos tempo. Desperdiçamos muita energia com uma obstinação às vezes desmedida. Uma coisa é correr atrás, a outra é rastejar, se esgoelar, achar que a vida não tem sentido sem aquilo. Tem. A vida só não tem sentido sem graça. E para ter graça, é preciso leveza de espírito. Para o resto dar-se-á um jeito.
****************
(recorte dos tempos Tribuneiros, e terças de sol.)
2.9.10
Sobre chineses e fadas
Aquele chinesinho me apaixonou. Era um momento em que eu estava muito propícia a me apaixonar por coisas que se fossem pessoas seriam descritas como “as que não fazem mal a uma mosca”, ainda que classificasse moscas como criaturas de nível 4 na escala de potenciais alvos de maus tratos. Não fazer mal a uma barata na pia de mármore do banheiro é indicativo de extrema bondade, moscas só ultrapassam os limites quando zumbem nos ouvidos de quem dorme ou pousam em nossas comidas, e quem dorme ou come em um lugar com moscas deveria repensar seus hábitos. Logo, não fazer mal a moscas não me dizia muito, quero ver alguém tratar com delicadeza um sujeito que conversa em excessivos decibéis no banco de trás.
Entre uma frase e outra o sujeito coçava a garganta fazendo aquele barulho de porco, e foram quarenta e sete minutos de ligações até chegar ao nosso destino: “Faaaala, Menoti!”, e nenhuma pessoa sã poderia corresponder àquela agitação tão cedo de manhã, independentemente de estar acordando ou prestes a dormir. O sujeito no entanto não se abalava. “Quinta-feira tem aquela gravação do DVD, como é aquele lugar na Barra? Sertanejo bomba, muita mulé, se bem que nem rola muita pegação, mas po%$@ 5 mil pessoas naquele lugar da Barra! É, Hard Rock.” Deveras heavy, pensei eu, e apesar de ter tido o olhar percebido somente pelos demais espectadores daquele cena no coletivo, e cem porcento ignorado pelo amigo do Menoti, não quis evitá-lo. Era a minha contribuição a um mundo melhor do dia. Há quem se imponha a meta de três elogios a cada duas dúzias de horas, atenho-me a ações menos forçadas como olhares de reprovação.
Ela insistia em provar que sua teoria não incentivava a mentira, e baseada na reação satisfeita do elogiado seguia com a técnica, sempre acompanhada de um sorrisinho na minha direção a fim de enfatizar seu ponto. "Fazer três elogios por dia melhora o clima do ambiente", pregava.
Começamos a conversar porque ambas admitiram, depois do ataque do touro à platéia em Navarra, que sentíamos mais pena dos bichos do que das crianças. Não é lá algo que se revele assim sem medo de retaliações, e nenhuma das duas dava de ombros para os pequenos com barriga estufada e insetos ao redor de si estampados nos jornais, só tinham apertos no coração em comerciais da Suipa e ímpetos de revolta contra os que culpavam a baleia que atacou a treinadora no parque aquático.
O nome dela era Carol, feminino de Zé. Nutria certo ódio por porteiros e zeladores que a chamavam de Caroline, e não por errarem o nome mas porque a troca da última letra alterava completamente a cor da sua aura, que assim passava de lilás para amarela. Quando pequena, para incômodo da mãe, Carol queria ser caixa de supermercado. Não qualquer supermercado, queria trabalhar nas Casas da Banha. Era muito pequena para entender a relação com o tal de bacalhau que Chacrinha lançava na platéia, tinha medo do Arnaldo Antunes e, orientada pelos pais, colocava seus dentinhos debaixo do travesseiro a fim de serem levados pela fada.
Além de sentirmos mais penas dos bichos do que das crianças também compartilhávamos o título de doadoras de dentes para fadas - eu, os que não engolia, e ela, os que a avó arrancava amarrando-os com um barbante à porta. Várias vezes temi que os engolidos gerassem uma plantação de dentes na minha barriga, mas para jamais alarmar os pais sobre o perigo preferia nem perguntar. Ocupada em disfarçar a questão, nunca parei para pensar no que a fada fazia com tantos dentes!
Carol pensava bastante sobre o espaço livre no mundo das fadas, e como além de nós mais gente acreditava na tradição mas nem todos questionavam tudo enquanto esperavam seus dentes cairem uma delas, ao crescer, montou uma história, e como era um momento em que eu estava muito propícia a me apaixonar por coisas esbarrei com a história e aqueles dentinhos me apaixonaram.
Deixei-me assim, por um tempo só me apaixonando por coisas que se fossem pessoas seriam descritas como “as que não fazem mal a uma mosca”. Como um inseto viveria voando por aí, fazendo meu trabalho, e isso não causaria mal a mim, à minha barriga, ao mundo da fada, à Carol, platéia, touro, passageiros de transportes coletivos ou ao amigo do Menotti. Das coisas voltaria para as pessoas e um dia esbarraria com mais gente que ao invés de questionar cria historias, e eu viraria o chinesinho.
Entre uma frase e outra o sujeito coçava a garganta fazendo aquele barulho de porco, e foram quarenta e sete minutos de ligações até chegar ao nosso destino: “Faaaala, Menoti!”, e nenhuma pessoa sã poderia corresponder àquela agitação tão cedo de manhã, independentemente de estar acordando ou prestes a dormir. O sujeito no entanto não se abalava. “Quinta-feira tem aquela gravação do DVD, como é aquele lugar na Barra? Sertanejo bomba, muita mulé, se bem que nem rola muita pegação, mas po%$@ 5 mil pessoas naquele lugar da Barra! É, Hard Rock.” Deveras heavy, pensei eu, e apesar de ter tido o olhar percebido somente pelos demais espectadores daquele cena no coletivo, e cem porcento ignorado pelo amigo do Menoti, não quis evitá-lo. Era a minha contribuição a um mundo melhor do dia. Há quem se imponha a meta de três elogios a cada duas dúzias de horas, atenho-me a ações menos forçadas como olhares de reprovação.
Ela insistia em provar que sua teoria não incentivava a mentira, e baseada na reação satisfeita do elogiado seguia com a técnica, sempre acompanhada de um sorrisinho na minha direção a fim de enfatizar seu ponto. "Fazer três elogios por dia melhora o clima do ambiente", pregava.
Começamos a conversar porque ambas admitiram, depois do ataque do touro à platéia em Navarra, que sentíamos mais pena dos bichos do que das crianças. Não é lá algo que se revele assim sem medo de retaliações, e nenhuma das duas dava de ombros para os pequenos com barriga estufada e insetos ao redor de si estampados nos jornais, só tinham apertos no coração em comerciais da Suipa e ímpetos de revolta contra os que culpavam a baleia que atacou a treinadora no parque aquático.
O nome dela era Carol, feminino de Zé. Nutria certo ódio por porteiros e zeladores que a chamavam de Caroline, e não por errarem o nome mas porque a troca da última letra alterava completamente a cor da sua aura, que assim passava de lilás para amarela. Quando pequena, para incômodo da mãe, Carol queria ser caixa de supermercado. Não qualquer supermercado, queria trabalhar nas Casas da Banha. Era muito pequena para entender a relação com o tal de bacalhau que Chacrinha lançava na platéia, tinha medo do Arnaldo Antunes e, orientada pelos pais, colocava seus dentinhos debaixo do travesseiro a fim de serem levados pela fada.
Além de sentirmos mais penas dos bichos do que das crianças também compartilhávamos o título de doadoras de dentes para fadas - eu, os que não engolia, e ela, os que a avó arrancava amarrando-os com um barbante à porta. Várias vezes temi que os engolidos gerassem uma plantação de dentes na minha barriga, mas para jamais alarmar os pais sobre o perigo preferia nem perguntar. Ocupada em disfarçar a questão, nunca parei para pensar no que a fada fazia com tantos dentes!
Carol pensava bastante sobre o espaço livre no mundo das fadas, e como além de nós mais gente acreditava na tradição mas nem todos questionavam tudo enquanto esperavam seus dentes cairem uma delas, ao crescer, montou uma história, e como era um momento em que eu estava muito propícia a me apaixonar por coisas esbarrei com a história e aqueles dentinhos me apaixonaram.
Deixei-me assim, por um tempo só me apaixonando por coisas que se fossem pessoas seriam descritas como “as que não fazem mal a uma mosca”. Como um inseto viveria voando por aí, fazendo meu trabalho, e isso não causaria mal a mim, à minha barriga, ao mundo da fada, à Carol, platéia, touro, passageiros de transportes coletivos ou ao amigo do Menotti. Das coisas voltaria para as pessoas e um dia esbarraria com mais gente que ao invés de questionar cria historias, e eu viraria o chinesinho.
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