2.9.10

Sobre chineses e fadas

Aquele chinesinho me apaixonou. Era um momento em que eu estava muito propícia a me apaixonar por coisas que se fossem pessoas seriam descritas como “as que não fazem mal a uma mosca”, ainda que classificasse moscas como criaturas de nível 4 na escala de potenciais alvos de maus tratos. Não fazer mal a uma barata na pia de mármore do banheiro é indicativo de extrema bondade, moscas só ultrapassam os limites quando zumbem nos ouvidos de quem dorme ou pousam em nossas comidas, e quem dorme ou come em um lugar com moscas deveria repensar seus hábitos. Logo, não fazer mal a moscas não me dizia muito, quero ver alguém tratar com delicadeza um sujeito que conversa em excessivos decibéis no banco de trás.

Entre uma frase e outra o sujeito coçava a garganta fazendo aquele barulho de porco, e foram quarenta e sete minutos de ligações até chegar ao nosso destino: “Faaaala, Menoti!”, e nenhuma pessoa sã poderia corresponder àquela agitação tão cedo de manhã, independentemente de estar acordando ou prestes a dormir. O sujeito no entanto não se abalava. “Quinta-feira tem aquela gravação do DVD, como é aquele lugar na Barra? Sertanejo bomba, muita mulé, se bem que nem rola muita pegação, mas po%$@ 5 mil pessoas naquele lugar da Barra! É, Hard Rock.” Deveras heavy, pensei eu, e apesar de ter tido o olhar  percebido somente pelos demais espectadores daquele cena no coletivo, e cem porcento ignorado pelo amigo do Menoti, não quis evitá-lo. Era a minha contribuição a um mundo melhor do dia. Há quem se imponha a meta de três elogios a cada duas dúzias de horas, atenho-me a ações menos forçadas como olhares de reprovação.

Ela insistia em provar que sua teoria não incentivava a mentira, e baseada na reação satisfeita do elogiado seguia com a técnica, sempre acompanhada de um sorrisinho na minha direção a fim de enfatizar seu ponto. "Fazer três elogios por dia melhora o clima do ambiente", pregava.

Começamos a conversar porque ambas admitiram, depois do ataque do touro à platéia em Navarra, que sentíamos mais pena dos bichos do que das crianças. Não é lá algo que se revele assim sem medo de retaliações, e nenhuma das duas dava de ombros para os pequenos com barriga estufada e insetos ao redor de si estampados nos jornais, só tinham apertos no coração em comerciais da Suipa e ímpetos de revolta contra os que culpavam a baleia que atacou a treinadora no parque aquático.

O nome dela era Carol, feminino de Zé. Nutria certo ódio por porteiros e zeladores que a chamavam de Caroline, e não por errarem o nome mas porque a troca da última letra alterava completamente a cor da sua aura, que assim passava de lilás para amarela. Quando pequena, para incômodo da mãe, Carol queria ser caixa de supermercado. Não qualquer supermercado, queria trabalhar nas Casas da Banha. Era muito pequena para entender a relação com o tal de bacalhau que Chacrinha lançava na platéia, tinha medo do Arnaldo Antunes e, orientada pelos pais, colocava seus dentinhos debaixo do travesseiro a fim de serem levados pela fada.

Além de sentirmos mais penas dos bichos do que das crianças também compartilhávamos o título de doadoras de dentes para fadas - eu, os que não engolia, e ela, os que a avó arrancava amarrando-os com um barbante à porta. Várias vezes temi que os engolidos gerassem uma plantação de dentes na minha barriga, mas para jamais alarmar os pais sobre o perigo preferia nem perguntar. Ocupada em disfarçar a questão, nunca parei para pensar no que a fada fazia com tantos dentes!

Carol pensava bastante sobre o espaço livre no mundo das fadas, e como além de nós mais gente acreditava na tradição mas nem todos questionavam tudo enquanto esperavam seus dentes cairem uma delas, ao crescer, montou uma história, e como era um momento em que eu estava muito propícia a me apaixonar por coisas esbarrei com a história e aqueles dentinhos me apaixonaram.

Deixei-me assim, por um tempo só me apaixonando por coisas que se fossem pessoas seriam descritas como “as que não fazem mal a uma mosca”. Como um inseto viveria voando por aí, fazendo meu trabalho, e isso não causaria mal a mim, à minha barriga, ao mundo da fada, à Carol, platéia, touro, passageiros de transportes coletivos ou ao amigo do Menotti. Das coisas voltaria para as pessoas e um dia esbarraria com mais gente que ao invés de questionar cria historias, e eu viraria o chinesinho.

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